As Múltiplas Inteligências E Inteligência Musical



As Múltiplas Inteligências e inteligência musical

1- Quem somos nós?

Qual seria a melhor indagação para começarmos a discutir a música como uma das múltiplas inteligências? Perguntar o que é o ser humano ou quem é o ser humano? Perguntar quem somos nós ou o que somos nós?

Na realidade, sempre que discutimos temas relacionados ao ser humano, pretendemos entender a nós mesmos e nossas relações com nossos semelhantes. Por isso nos indagamos: o que e quem somos nós?

Podemos dizer que somos uma espécie de animal completamente diferente dos demais: somos perguntantes. Somos tão interrogantes que até nossa cabeça tem a forma de um ponto de interrogação. E nossas indagações são caminhos que conduzem à nossa essência, na medida em que nos confrontamos conosco e com nossos comportamentos.

Podemos dizer que o ser humano, como animal perguntante, vem procurando se conhecer desde os tempos mais remotos. Colocou-se algumas indagações que são, ao mesmo tempo, mobilizadoras e angustiantes: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou?

São indagações mobilizadoras porque impedem ou nos tiram da acomodação e da mesmice; elas nos impelem na direção de nossos anseios, desejos e sonhos. São questões angustiantes porque a busca pela resposta indica que o caminho é imensamente longo e ultrapassa a limitação humana; as respostas já apresentadas ainda são insatisfatórias, pois o ser humano ainda não se explicou, nem se entendeu. E se angustia por ainda não haver se compreendido.

Não se explicou a si mesmo nem há perspectivas de compreensão mutua. O que vemos, constantemente, são desavenças que, entre outras causas, se originam da incompreensão, da intolerância, da ignorância... e tudo isso leva à ampliação da violência...

Essas indagações manifestam a busca pela essência humana. São indagações que, antes de buscar um rumo, querem uma resposta para esse universo chamado ser humano. As indagações sobre as origens e o destino, são balizas para a questão primordial: quem sou? Na busca da resposta para essa indagação foram criadas inúmeras teorias, religiões, mitos. Mas a resposta continua inatingida.

E a questão central continua sem resposta: o ser humano, que realidade é essa?

2- O homem, que realidade é essa?

O Ser Humano ao se perceber no mundo se vê completamente diferente dos demais existentes. É ele quem dá sentido a existência dos existentes. Dá sentido porque pensa, porque se socializa e porque manipula os elementos da realidade; gera cultura e transcende à realidade humana.

Podemos dizer que praticamente todas as correntes de filosofia procuram dar uma explicação para esta realidade à que se chama ser humano. Dessas explicações um ponto parece ser comum e sobre o qual as vozes se fazem unânimes: o fato do homem ser pensante e a partir disso ser capaz de manipular o mundo em que se insere.

Ressaltemos que o Pensar não é só o que se entende etimologicamente: capacidade de pesar, avaliar. Pensar refere-se também à capacidade de fazer escolhas o que implica em ser capaz de agir consciente e responsavelmente. Aliás, o ser humano avalia, justamente, para fazer escolhas e poder agir. Portanto o ser humano é aquele que avalia e escolhe, e faz isso a partir de um processo reflexivo que exige uma postura introspectiva e ativa. A introspecção deriva da capacidade de abstração; e a ação resulta da consciência. Na verdade quando dizemos que o ser humano é capaz de pensar pretendemos afirmar que ele é capaz de se comunicar a respeito das realidades com as quais não está em contato imediato. Ele pode representá-las, mentalmente no processo de reflexão. E uma das formas de representarmos o mundo à nossa volta é a música.

Outra característica do ser humano é a da sociabilidade. A sociabilidade, ou a capacidade de viver, sobreviver e existir em coletividade parece ser o que melhor caracteriza o ser humano. Entretanto aqui precisa se fazer uma ressalva. Não nos parece que o ser humano seja, essencialmente, um ser social, mas se faz social a partir de suas necessidade e para superar seus medos.

Podemos dizer que, embora um ser sectário o ser humano se socializa, não por ser sociável, mas porque se percebe impotente diante da natureza, mais forte que ele. E, por medo de não sobreviver procura a ajuda dos semelhantes. Assim se faz sociável numa atitude tipicamente egocêntrica, medrosa e aproveitadora. Para fugir de seus medos e disfarçar sua fraqueza aproveita-se da fraqueza dos seus semelhantes. Assim sendo a vida social é um meio de tirarmos proveito da ajuda de outros e nos prepararmos para o isolamento.

Com isso também podemos dizer que outra característica do ser humano é a maldade. Essa característica recebe o seguinte comentário de Nietzsche: "ver sofrer; faz bem; fazer sofrer melhor ainda: ai está um duro princípio, mas um principio fundamental antigo, poderoso, humano, demasiadamente humano" (NIETZSCHE, [2005], p. 64). E o pensador alemão ainda acrescenta:

"É verdade que repugna à delicadeza, mais ainda, a hipocrisia de animais domesticados (quero dizer os homens modernos, quero dizer nós) representar-se com todo o rigor até que ponto a crueldade era alegria festiva na humanidade primitiva e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres; por outro lado [...]. Indiquei já de maneira circunspecta a espiritualização e a 'deificação' da crueldade que não cessa de crescer e atravessa toda a história da cultura superior." (NIETZSCHE, [2005], p. 64. Grifo nosso).

Com a referência à "alegria festiva" podemos acrescentar mais uma característica ao ser humano: ser alegre ou festivo. E com isso voltamos à sociabilidade. Desde os primórdios, o ser humano procurou meios de criar artifícios para o agrupamento. Entre eles está a música, utilizada em momentos festivos. O momento festivo, mesmo que fosse para tripudiar o inimigo derrotado, é um momento musical.

Aqui entra a discussão sobre o sentido da produção humana. O ser humano se humaniza produzindo seu mundo: gerando cultura. Ou seja, diferentemente de outras seres, o humano se autoproduz reproduzindo o meio que o circunda; recria o mundo natural e o já criado, criando novo significado.

Essa capacidade re-criadora permite ao ser humano re-produzir o mundo dinamizando a existência dos existentes. E assim está sempre criando ou re-criando a cultura que, talvez, seja uma das marcas mais tipicamente humanas, pois é principalmente pela sua capacidade de recriar o mundo e a cultura que o homem se diferencia dos demais existentes. E isso também nos leva à musicalidade. Assim o "homo culturalis" se manifesta, também como "homo ludens" (MONDIN,1982), pois entre outras a cultura possibilita o divertimento e a musicalidade é uma expressão do divertimento, da alegria.

3- O sentido da existência

O fato é que para se compreender o homem procura entender o mundo...

Estamos de volta com a questão: qual o sentido da existência humana? Se nos limitássemos à dimensão religiosa diríamos que o ser humano existe para cultuar e louvar seu criador. Mas se assim fosse, não seria essa uma forma de minimizar criador que dependeria de sua criatura para receber louvores?

Para interpretar o mundo cria padrões; entre os padrões interpretativos está a música, meio pelo qual o ser humano pode fazer leituras da realidade. E a interpretação da realidade é um dos caminhos para dar sentido à existência.

Estamos de volta com a mesma e intrigante indagação: O que estou fazendo aqui?

E, outra vez, as respostas se emaranham. Principalmente se admitirmos uma explicação religiosa, pois aí teríamos que nos perguntar a partir de qual segmento religioso dar a resposta.

Uma das expressões religiosas mais presentes na sociedade humana é o cristianismo. Para os cristãos o homem está no mundo em busca do seu fim último que é glorificar a Deus; mas por ser impuro (pelo pecado original) deve purificar-se fim de voltar para Deus. E se tende a voltar significa que veio Dele. E com isso fica resolvido o problema não só do fim como da origem. Mas o existir ganha uma conotação angustiante: não lhe coube escolha entre existir ou não e tendo nascido, nasce pecaminoso. A vida é concebida como presente, mas que vem com defeito de fabrica: trás a mancha do pecado original...

Outra expressão religiosa é o budismo. De modo simplificado podemos dizer que para o budismo a existência humana tem outra finalidade. Aqui o processo de purificação tem a finalidade não de voltar, mas de "mergulhar" no absoluto, a partir da meditação. Assim o homem não tende a ir para "outro mundo", encontrar-se com o absoluto, mas a partir da meditação e da contemplação encontraria sua realização no próprio aqui e agora re-significado pela contemplação e pela meditação. Esse processo de meditação deveria conduzir a pessoa a um alheamento em relação às realidades até chegar ao ponto supremo da completa indiferença.

Outra manifestação religiosa é o espiritismo. Também aqui de maneira resumida, podemos dizer que para o espiritismo a existência humana é um processo de aperfeiçoamento. Mas são as atitudes – boas ou más – que produzem a evolução ou regressão. Então a finalidade da permanência do homem no mundo é a purificação. Os atos bons o elevam e os maus provocam declínio, num processo que se pode dizer infindo.

Aqui não podemos deixar de afirmar que, como criatura, enquanto realidade física, o ser humano é limitado, portanto imperfeito. A perfeição, se existe, só existe no criador incriado...

Notemos que as atitudes religiosas dão respostas pré-estabelecidas para o sentido da existência. Refletem sobre o destino humano, mas não discutem a razão do estar no mundo. Daí os questionamentos: Se o homem está no mundo para se purificar, significa que é impuro, ou está impuro. Mas como chegou a essa impureza? Por que se tornou impuro? Se sua origem é uma divindade, por que essa divindade o cria, ou o coloca no mundo com impurezas? Não poderia tê-lo já criado sem pecado? Por que nasce pecador, se a finalidade é a purificação e libertação do pecado? Ou o homem é apenas um marionete nas mãos de uma divindade que gosta de se divertir às custas dos dramas humanos? Que divindade é essa que, aparentemente, se diverte com os dramas e sofrimentos humanos, para, só depois de muito sofrimento, levá-lo à perfeição?

Olhando deste ponto de vista não tem sentido o ser humano ter sido colocado num mundo adverso, viver e sofrer as conseqüências da vida para, só depois da morte, encontrar a realização – isso se tiver vivido de acordo com os planos secretos de seu criador... Portanto, do ponto de vista religioso parece que seria muito mais sensato o homem já ter nascido sem pecado! E sendo puro poderia mais facilmente manter-se em contato com a fonte de sua pureza.

Vemos, portanto, que somente a dimensão religiosa não explica o sentido da existência humana. Mas o homem sabe, de alguma forma não racional, que sua vida não se resume a esta existência material e cotidiana. Por tradição ou por motivação própria, crê em uma vida pós-vida. E, embora sem saber como nem o porquê dirige-se para a morte, que é o caminho ou a entrada na outra dimensão que acredita existir. E que, de alguma forma, dá algum sentido ao existir. Isso significa que "o caminho da vida é a morte" como afirma a música de R. Seixas. Ou seja, o homem existe para morrer; o sentido da vida é a morte. Ou é a morte que dá sentido à vida. Aliás, é o que sugere Paulo de Tarso (Fl, 1,21) ao dizer que viver em Cristo é bom, "mas morrer é lucro"

Mas, e se olharmos para nós mesmos de um ponto de vista material?

Também aí se faz necessário um sentido para sua existência. Mesmo admitindo não haver nada após a morte, permanece a busca pelo sentido do existir. E aqui entra uma questão complementar: se existimos para morrer, por que viver?

Se a vida, tendendo para o transcendente, já é um problema, mais problemática ainda é a existência sem uma perspectiva de pós-existência... Entretanto, não existem meios de comprovar essa pós-existência. Embora a fé exija uma pós-existência do ponto de vista racional, permanece a incógnita... e a dúvida!

O fato é que vivemos e convivemos de forma limitada, mas queremos transcendê-las. Daí a perspectiva de colocar o sentido da existência não nos dissabores, limitações e problemas, mas na busca pela superação de limitações. A razão de existir, portanto poderia ser entendida como caminho em busca das superações das limitações. Tanto das limitações físicas como intelectuais ou aquela impostas pelas convenções e conveniências sociais. E em função disso podemos entender porque dos sacrifícios que as pessoas fazem para atingir pequenos ou grandes objetivos; os esforços hercúleos para a superação ou para a auto-superação.

A razão da existência pode ser vista como um colocar-se e superar desafios, numa corrida constante contra as limitações. Uma das faces dessa luta contra os desafios, em busca da superação é o que se chama de trabalho. O trabalho é um dos meios pelos quais procuramos superar limitações. As conquistas profissionais dão a sensação de vitória, após esse esforço aparece a possibilidade de gozar momentos de lazer e de ociosidade. É o momento de retro-alimentação para a nova batalha, em busca do novo objetivo... numa constante evidenciação de que ser humano é constantemente insatisfeito... E também inacabado?

Pelo fato de vivermos em busca de vitórias e superações constatamos que após cada vitória nós nos alegramos. A busca por superações e o ato de alcançar alguma delas é motivo de alegria. É ocasião de festa. É motivo para cantar e dançar.

4- Inteligências múltiplas

Já que a superação das limitações é ocasião de festa, aqui entra uma outra discussão: como podemos interpretar a nós, ao mundo e as realidades que o cercam? Como nos confrontamos com as adversidades? Como criarmos oportunidades de superar os problemas para nos oferecer oportunidade para a festa?

Aqui entra a capacidade que, como seres humanos, estamos desenvolvendo há milhares de anos. A capacidade de ler por dentro dos problemas. A capacidade de interpretar os sinais e apresentar-lhes respostas. Fazemos isso porque desenvolvemos a capacidade da inteligência.

O que é inteligência? As respostas são as mais diferentes possíveis. E depende do ponto de vista de onde vem a indagação. Inteligência, para o filósofo não tem o mesmo significado que tem para o psicólogo ou para um médico. Por sua vez o professor e uma mães de família terão concepções diferentes de inteligência. entretanto nós, aqui, não vamos nos deter sobre cada uma delas, mas apenas constatar essa distinção.

Em alguns ambientes essa capacidade que chamamos de inteligência é concebida como uma ou várias habilidades. A preocupação com essas habilidades foi o que no início do século XX, motivou o surgimento dos chamados testes de QI, na França. Lembrando que "o sucesso desse teste, porém, só tornou-se evidente nos Estados Unidos, quando na 1ª Guerra Mundial, cerca de 1 milhão de recrutas foram selecionados através desse teste" ((TRAVASSOS, 2001). No ambiente francês apreocupação do teste de QI era localizar instrumentos que pudessem medir as "habilidade das crianças nas áreas verbal e lógica, já que os currículos acadêmicos dos liceus enfatizavam, sobretudo o desenvolvimento da linguagem e da matemática" (GAMA, 2008).

De um ponto de vista etimológico a palavra inteligência arremete para o latim (intelligentia); e se forçarmos um pouco poderemos ver, também, uma influência grega: podemos dizer que a palavra é composta pelo prefixo "in" acrescido de "telligentia".A possível influência grega aparece entre "in" e "gentia", numa possível referência a "telos", que em grego tem o significado de "à distância". Isso juntado dá a idéia de que o ser humano é aquele animal capaz de se colocar à distância de uma realidade a fim de ver-lhe o interior; ou então a capacidade de colocar-se separadamente, à distância, de uma realidade para lhe perscrutar o interior, visto que "in" é o prefixo de "parte interna" e "ligentia" pode ser entendido como leitura. No dicionário (Aurélio, 1975) além de capacidade de aprender, perceber, interpretar, aparece a capacidade de penetração e perspicácia. O que nos arremete, também, para dentro das realidades.

Mas sobre quais realidades o ser humano pode se voltar a fim de perscrutar o sentido? Nós buscamos o sentido de nossa existência e de todas as realidades com as quais mantemos contato e nos circundam.

Para cada realidade que está ao nosso redor nós dirigimos um olhar específico. Olhares que ultrapassam o mero lógico-verbal do início do século XX. O desenvolvimento das ciências, a complexificação das realidades sócio-político-econômicas, as novas exigências e interpretações das diversas realidades e situações solicitam e possibilitam a ampliação das capacidades interpretativas. Esse panorama também possibilitou o desenvolvimento das ciências que procuram entender e explicar o processo da inteligência.

Uma das novidades foi o desenvolvimento da teoria das múltiplas inteligências. Gardener, criador da teoria, procurou os "perfis cognitivos regulares ou circuitos irregulares em diferentes culturas e espécies" (TRAVASSOS, 2001) e elaborou uma lista de sete inteligências, que são: Inteligência lingüística, musical, lógico-matemática, espacial, cinestésica, interpessoal, intrapessoal. Alguns teóricos afirmam que a lista poderia ser maior, pois as realidades e potencialidades humanas vão além dessas capacidades ou dessas dimensões. Por isso, embora tenha sido um avanço ainda é possível ampliar o leque de percepção e explicação do ser humano e de suas capacidades. Hoje já se fala em inteligência espiritual entre outras.

Segundo a teoria das inteligências múltiplas as pessoas "são capazes de uma atuação em pelo menos sete diferentes e, até certo ponto, independentes áreas intelectuais" (GAMA, 2008). Aquilo que vemos acontecer cotidianamente e por vezes, chamamos de "vocação", é o que foi desenvolvido como teoria científica para explicar o porquê de algumas pessoas conseguirem fazer facilmente determinadas atividades enquanto outras somente as realizam com tremendo esforço.

Embora nessa teoria ainda esteja presente a idéia de inteligência como habilidade, e não como capacidade interpretativa, ela avançou em relação ao que se tinha até seu aparecimento, quando se falava apenas de capacidade matemática e de comunicação.

Um possível problema de compartimentalizarmos as inteligências, ou as habilidades é que corremos o risco de também vermos o ser humano por partes. Corremos o risco de olhar para as partes sem percebermos o conjunto. Sem percebermos que somos uma totalidade e não as nossas partes.

Dentro de uma visão holística (GUIMARÃES, 2008) em que as realidades se fundem e se complementam não podemos nos limitar as partes, ou às divisões. Devemos olhar as realidades a partir de sua totalidade. E mesmo quando olharmos a partir de alguns aspectos, devemos olhar para o todo ou para todos os aspectos da realidade observada.

5- Inteligência musical

Como vimos entre as múltiplas inteligências está a musical. Aquilo que se teorizou como inteligência musical é descrito como "habilidade para apreciar, compor ou reproduzir uma peça musical. Inclui discriminação de sons, habilidade para perceber temas musicais, sensibilidade para ritmos, texturas e timbre, e habilidade para produzir e/ou reproduzir música" (GAMA, 2008). Entretanto nossa proposta é que, além de considerarmos essa capacidade, olhemos também para o produto da atividade musical: a música mesma ou, mais especificamente, as letras das músicas.

Com esta perspectiva podemos dizer que a inteligência musical pode nos ajudar não só a entender, apreciar e aprender sobre música e de musica, mas a partir da inteligência musical também podemos analisar o mundo que nos cerca. As várias dimensões do mundo e da sociedade que nos circundam podem ser analisadas e explicadas a partir da inteligência musical ou podem ser comentadas mediante letras de músicas. Ou seja, os músicos não se fartam de comentar o cotidiano a partir da arte musical. A música pode ser vista como canal interpretativo do real.

Podemos exemplificar nossa afirmação a partir de algumas músicas (As letras das músicas aqui mencionadas foram buscadas em http://letras.terra.com.br/ ).

Martinho da Vila comenta alguns aspectos da vida cotidiana em "Na aba". Nessa música fala para um personagem comum no dia-a-dia: o aproveitador. Manda-o procurar trabalho para sobreviver. "Na aba do meu chapéu / você não pode ficar / meu chapéu tem aba curta, você vai cair e se machucar". E, em seguida descreve situações em que o "aproveitador" se esbalda. Mas conclui afirmando que esse personagem está sendo visado pela coletividade: "Olhe bem que a massa Está te sacando / Como está! / De repentemente / O bicho tá pegando". O aproveitador, o enganador, o malandro pode até continuar malandreando, mas já não está mais oculto na ignorância do enganado.

Numa outra música: "Madalena" o mesmo cantor fala dos problemas de um adolescente, diante dos tantos conselhos dos pais. "Minha mãe não quer que eu vá / Na casa do meu amor / Eu vou perguntar a ela / Se ela nunca namorou?". E na estrofe seguinte a conversa é com o pai: "O meu pai não quer que eu case / mas me quer namorador / eu vou perguntar prá ele / por que ele se casou?" A questão colocada é: como os pais querem proibir que o jovem faça algo que els, pais, fizeram – ou fazem? Demonstra a coerência do jovem que, em muitos casos, é mostrado como incosnequente.

Outra situação analisada a partir de musicas refere-se ao progresso tecnico-científico. Na música "Mágoa de Boiadeiro" cantada, inicialmente, por Pedro Bento e Zé da Estrada. Diz a letra: "Antigamente, nem em sonho existia / tanta ponte sobre os rios nem asfalto nas estradas". E continua: "Mas hoje em dia tudo é muito diferente / com progresso nossa gente nem sequer faz uma idéia". E a consequencia do progresso na visão do letrista é que, "resta a guoiarca sem dinheiro / deste pobre boiadeiro que perdeu a profissão". O personagem da música se confessa despreparado para conviver com o que ali é chamado de progresso. Ou seja, para quem não se prepara, pelo estudo, pela atualização, pela reorganização constante da vida, o progresso gera desemprego.

A mesma idéia de progresso produzindo saudade está presente na música "Peão" cantada por Almir Sater: diz a letra que o progresso produz mudanças no "alto sertão /Que agora se chama/ Não mais de sertão / Mas de terra vendida, Civilização". Em razão disso, o peão reflete: "Os caminhos mudam com o tempo/ Só o tempo muda um coração / Segue seu destino boiadeiro / Que a boiada foi no caminhão". E nós podemos perguntar: o boiadeiro, foi para onde?

Avaliando positivamente o progresso, e, ao mesmo tempo fazendo de tudo para acompanhá-lo, Gilberto Gil em "PelaInternet" diz o que pretende: "Criar meu web site / Fazer minha home-page / Com quantos gigabytes / Se faz uma jangada / Um barco que veleje / Que veleje nesse infomar / Que aproveite a vazante / Da infomaré / Que leve um oriki / Do meu velho orixá / Ao pôrto de um disquete / De um micro em Taipé...". Se lhe perguntarmos por que pretende criar uma home page, ele responde: "Eu quero entrar na rêde / Promover um debate / Juntar via Internet / Um grupo de tiétes". Mas também pretende contactar: "Os lares do Nepal / Os bares do Gabão..." Observemos a pertinência dessa reflexão pois no mundo globalizado, tudo é rápido, dinâmico... e o mundo se tornou pequeno....

Por sua vez, Toquinho, em "Aquarela" discute temas que remontam a Heráclito, ou seja, a transitoriedade das coisas que são o que são, mas podem ser diferentes, no momento seguinte. Mostra essa transitoriedade afirmando que "Se um pinguinho de tinta / Cai num pedacinho / Azul do papel / Num instante imagino /Uma linda gaivota /A voar no céu..." e no final essa "linda aquerela", mesmo representando o mundo ele se "descolorirá": a trasformação é constante.

Enfim, mesmo no mundo cibernético, informatizado, virtual, o lugar do ser humano permanece intocável, como mostra o mesmo Gilberto Gil, em "Cérebro Eletrônico". Uma máquina que "faz quase tudo / mas ele é mudo"; "ele é quem manda / mas ele não anda". O processador do cérebro eletrônico não pensa. "Só eu posso pensar / Se Deus existe /Só eu / Só eu posso chorar / Quando estou triste / Só eu /Eu cá com meus botões / De carne e osso / Eu falo e ouço. Hum / Eu penso e posso / Eu posso decidir / Se vivo ou morro por que / Porque sou vivo / vivo pra cachorro".

E por falar em cachoro atentemos para outro aspecto. A civilização atual, diz Raul Seixas, em "As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor", convive com o progresso que, embora seja coisa boa, fragilizou a sociedade: "A civilização se tornou complicada / Que ficou tão frágil como um computador / Que se uma criança descobrir / O calcanhar de Aquiles / Com um só palito pára o motor". Só o progresso, sem humanização, é mais problemático que a falta de progresso.

A interpretção do mudo e das relações sociais feita pelo artista da música não se estriba nas normas padronizadas. Por isso o músico pode dizer o indizivel ou repetir o que já foi dito milhares de vezes. Mas sempre fará isso de forma nova: A palavra do músico é sempre nova. Ele está sempre recriando. Ele se nega a dizer o que já foi dito da forma como já foi falado.

Chico Buarque, em "Iolanda", diz que "se me deixares, nem por isso eu morro / se é prá morrer quero morrer contigo". Todos os romanticos falam em morrer de amor. Mas nessa música, embra dizendo o que todos falam, sua a inteligência musical lhe permite dizer o mesmo de forma diferente. Isso é inovação, linguistica, cultural, filosófica, artistica...

Pity parodiando Jesus Cristo afirma em "Teto de Vidro" que "quem não tem teto de vidro/ atire a primeira pedra".O que ela quiz dizer com isso? Que todos temos nossos problemas, nossos pontos falhos e, portanto, não temos direito de condenar as falhas dos outros.

Algo bem diferente disso é o que se ouve na música "É problema meu" cantada pelo grupo Tche Garotos. "Essa vai pra turma do boteco... / Pros cachaceiros de plantão que cante com a gente... / E se eu bebo é problema meu... / Se eu vivo na noite é problema meu... / Se eu gosto de farra é problema meu... / Não uso do teu dinheiro da minha vida cuido eu..." É evidente que a vida de cada um é sua própria responsabilidade. Entretanto esta letra não apresenta somente uma defesa do direito individual, mas uma apologia ao individualismo, tão caro à sociedade de consumo em que vivemos.

Em tudo isso está manifesta a afirmação que fizemos acima: a música é um canal de comunicação e, mais do que isso, um meio pelo qual se podem fazer diferentes leituras do mundo. E podemos destacar pelo menos duas.

A primeira é a leitura do artista sobre o mundo e a segunda é a leitura do ouvinte/crítico que lê, na letra da música, as mensagens que podem ser evidentes ou veladas. O artista lê o mundo e o comenta a seu modo. E do seu geito protuz a peça literária/artística. Nesse texto estão presentes seus valores e possiveis bandeiras defendidas por ele. A outra forma de se perceber a música é fazendo-lhe a critica. Mediante a crítica podemos perceber as mensagens veiculadas pelo autor. Só a título de exemplo, retomemos a última música mencionada "É problema meu". O proprio título já leva ao individualismo. Desde quando o problema de um não é problema de todos? Outra vez, do ponto de vista holistico/dialético, o problema de um acaba sendo problema de todos. Uma pequena insatisfação de uma pessoa interfere em seu coportamento, em seu humor, em seu trabalho. Esse comportamento, humor e trabalho estão relacionados com outras pessoas, pois não vivemos isolados..., mas em grupos.

Em síntese podemos dizer que, como outras realidades, a música e a inteligência musical se prestam a isso: analisar o mundo, as realidades e o próprio ser humano.Pela musica e a inteligência musical podem transmitir mensagens positivas ou não. A música e a inteligência musical não precisam se restringir à gostar de música, ser capaz de apreciar ou fazer música, mas podem apresentar propostas políticas. Que, alias o fazem muito bem os vários artistas, analisando e propondo alternativas para o nosso cotidiano.

Referências:

As letras das músicas aqui mencionadas foram retiradas de: http://letras.terra.com.br/

GAMA, Maria C. S. Salgado. A Teoria das Inteligências Múltiplas e suas implicações para Educação. Disp. em <www.homemdemello.com.br/psicologia/intelmult.html> acessado em 14/05/08

GUIMARÃES, Carlos A. Fragoso. Uma nova forma de perceber o mundo. Disponível em http://br.geocities.com/carlos.guimaraes/holistica.html> acessado em 14/05/08

MONDIN. Batista. Curso de Filosofia (v 1). São Paulo: Paulinas, 1982

NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Escala, [2005]

TRAVASSOS, Luiz Carlos P.. Inteligências Múltiplas in: REVISTA DE BIOLOGIA E CIÊNCIAS DA TERRA . Volume 1 - Número 2 – 2001 . Disponível em <http://ww2.prefeitura.sp.gov.br/secretarias/meio_ambiente/umapaz/files/Inteligencias_Multiplas.pdf> acessado em 14/05/08



Autor: NERI P. CARNEIRO


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