A Língua De Eulália: Uma Novela Sociolingüística



RESUMO DA OBRA

Tudo começa com a chegada de Vera, 21 anos, estudante de Letras; Silvia, mesma idade, estudante de Psicologia e Emília, 19 anos, estuda Pedagogia, à casa da tia de Vera, Irene, na cidade paulista de Atibaia, para curtirem alguns dias de férias de inverno e descansarem da agitada vida de professoras do curso primário em São Paulo.

Após o almoço de recepção, as garotas acham engraçado o modo de falar de Eulália, empregada de Irene. A partir daí, entram os conhecimentos lingüísticos de Irene, que tenta explicar às garotas que Eulália não fala “errado”, ela fala “diferente”. Ela utiliza o português não-padrão. Isso desperta a curiosidade das três estudantes em relação à língua portuguesa e suas variedades. Irene, então, propõe a elas que sirvam de “cobaias” às suas teses, desenvolvidas no livro que está escrevendo e propõe que tivessem “aulas” durante o período em que permanecessem hospedadas por ali e discutissem o assunto. Começa, então, uma série de intervenções de Irene, lingüista por paixão, sobre as variedades do português.

Irene começa explicando a elas que toda língua varia. Essas variações são fonéticas (em relação ao som), lexicais (sobre o vocabulário), semânticas (sobre o sentido das palavras) e em relação ao uso da língua, que varia conforme a situação e a condição sociocultural do falante. Mostra, também, que existem diferenças geográficas, pois a língua portuguesa abrange uma boa quantidade de falantes espalhados pelo mundo.

Irene, então, mostra a elas que existe uma chamada “norma-padrão”, que é um conjunto de regras que regem a língua. Quem a utiliza ganha prestígio social e todas as formas diferentes delas são consideradas “erradas”, os falantes que não a utilizam sofrem preconceitos e gozações. Em seguida, ela mostra que o português chegou ao Brasil durante o período de nossa colonização, que começou pelo Nordeste, chegando, mais tarde ao Sudeste e sofrendo toda sorte de mudanças. As pessoas dessa região costumam ridicularizar o falar caipira, nordestino, entre outros.

Não existe uma unidade lingüística do Brasil, daí permitiu-se a criação do chamado “português-não-padrão”, que são as formas que fogem da norma padrão. Irene, então, define as nomenclaturas PP, para português-padrão e PNP para português não-padrão e propõe que o estudo seja centralizado em cima das diferenças entre eles.

Inicialmente, a “professora” mostra que o PP é aquele ensinado nas escolas e o PNP é aquele que vem com a bagagem cultural do falante e que é suficiente para que ele se comunique de forma eficiente, sem precisar recorrer ao PP, cujo acesso é apenas às pessoas escolarizadas. Mas isso não quer dizer que os falantes do PNP podem ser considerados errados, sem cultura, inferiores. Ela mostra, inclusive, que o português-padrão vem do latim vulgar, língua falada na Península Ibérica, portanto sem nenhum tipo de norma que o definisse.

Irene vai mostrando que as pessoas não falam “errado”, mas sim “diferente”. Por exemplo, quem fala “pranta” em vez de “planta”, utiliza-se de um fenômeno chamado de rotacismo e não pode ser considerado um “erro”. Ela mostra que esses possíveis “erros” cometidos pelos falantes do PNP têm uma explicação lógica na história da língua portuguesa, haja vista que se trata de uma língua de origem latina da qual se originaram também o italiano, o romeno, o francês, o sardo, o catalão e o espanhol. Enquanto o PNP é natural, transmitido, apreendido, funcional e marginalizado, o PP é artificial, adquirido, aprendido, redundante e oficial.

Enquanto isso, as “alunas” vão discutindo, expondo suas idéias, tirando conclusões e aprendendo. Todas ficam empolgadas com as “aulas” e isso permite que Irene possa ir, aos poucos, expondo todas as suas teses que nortearam seu livro, que pretende lançar em breve. Entre um almoço, um passeio, uma boa noite de sono, um reforçado café matinal, elas vão discutindo e aprendendo tudo sobre o PNP. Inclusive, passaram a chamar um pequeno cômodo da casa de Irene de “Escolinha”, onde se realizavam as aulas.

Após toda a explicação teórica, chegou a vez de partir para a prática língüística. Primeiramente, Irene aborda os principais fenômenos fonéticos da língua, começando pela rotacização do L nos encontros consonantais, que consiste na troca do L pelo R após uma consoante, prática bastante comum entre os falantes do PNP. Por exemplo, muitos dizem Cráudia, grobo, ingrês e broco em vez de Cláudia, globo, inglês e bloco. Esse fenômeno tem explicação na origem de algumas palavras que vieram do latim e sofreram esse tipo de transformação ao passarem pelo francês, pelo espanhol, até chegar ao português. Irene cita, ainda, alguns versos de Os lusíadas, de Camões, onde o grande poeta escreve “frauta”, “frechas”, “pruma”, “pubrica”, ingrês” e mostra que ninguém “deu risada” dele.

Em seguida, Irene trata da eliminação das marcas de plural redundante. Ela mostra que a tendência do falante do PNP é pluralizar apenas o primeiro elemento de uma frase, prática que já é suficiente para pluralizar a frase toda. Por exemplo, não tem necessidade de dizer as lindas flores amarelas que brotaram... basta marcar o plural através da primeira palavra: as linda flor amarela que brotou... Dessa forma já se entende que se trata de mais de uma flor. Irene, cita, como exemplo, a canção “Cuitelinho” música folclórica de Paulo Vanzolini, em que ele se utiliza desse procedimento: as onda se espaia... as garça dá meia volta... A “professora” mostra que esse mesmo procedimento é utilizado no inglês e no francês e é considerado correto.

Na aula seguinte, o assunto é a transformação de LH em I, tendência natural do PNP que encontra justifica no espanhol, também de origem latina. Por exemplo, enquanto o PP diz “trabalho”, “espalha”, “batalha”, parentalha” e “falha”, o PNP simplifica e diz “trabaio”, espaia”, bataia”, parentaia” e “faia”. Ela busca explicação, também, dentro da prórpia língua: o som LHÊ é produzido no palato, muito perto de onde se produz a semivogal /y/, de pai, por exemplo. Daí a comodidade dessa transformação.

O próximo assunto é a simplificação das conjugações verbais. Irene mostra que o PP apresenta seis formas verbais diferentes do mesmo verbo em um único tempo verbal. Assim: eu amo, tu amas, ele ama, nós amamos, vós amais, eles amam. Já o PNP não precisa de todas elas, bastam apenas duas: eu amo, você/tu/ele/a gente/ vocês/eles ama. Pronto!. A língua fica mais simples, mais “enxuta”. Basta a presença do pronome-sujeito para indicar a pessoa verbal. Ele mostra, ainda, que o português padrão coloquial “enxugou” para três formas verbais: eu amo, você/ele/ela/a gente ama e vocês/eles/elas amam. Aproveitando o assunto “verbo” elas verificam que a noção de tempo desaparece em algumas frases, por exemplo, em amanhã eu passo lá, temos um verbo no presente indicando tempo futuro. E em onde andará agora nosso amigo, temos um verbo no futuro, indicando um momento presente.

Entre uma explicação e outra, as “alunas” vão deduzindo que o ensino de português nas escolas é algo problemático, pois se ensina como se a gramática fosse uma coisa complicada, misteriosa, desprezando-se o gosto do aluno pela aprendizagem da prática da língua. É aí que entra a diferença entre “ensinar” (de fora para dentro) e “educar” (de dentro para fora).

Num belo dia de sol, a turma resolve dar um passeio pela cidade de Atibaia. Nem assim deixam de ter aulas. Durante esse passeio, surge o assunto transformação de –ND- em –N- e de –MB- em –M-. Por que as pessoas dizem “falano”, comeno”, “cantano” em vez de “falando”, “comendo”, “cantando”? Irene explica que os fonemas /n/ e /d/ são dentais, ou seja, produzidos pela mesma zona de articulação e, por isso, vão sofrer a pressão do fenômeno da “assimilação”, assim mostrada: -nd-  -nn-  n. Esse fenômeno ocorre, também, da seguinte forma: -mb-  -mm-  m, com as chamadas consoantes bilabiais /b/ e /m/, como se vê em “tamem” no lugar de “também”.

A “aula” prossegue durante o almoço em um restaurante da cidade, após o passeio. O assunto, agora, é a redução do ditongo OU em O, como ocorre nas palavras pouco, roupa e louro, pronunciadas “poco”, “ropa” e “loro”. Isso se dá, também, pelo processo da “assimilação”, já que as vogais O e U são as mais fechadas e se assemelham na pronúncia. Irene mostra que essa tendência é histórica e ocorre também no francês e no espanhol modernos. Acontece a mesma coisa com o ditongo EI que é reduzido à vogal E, como em “bejo”, “chero”, “brasilero” em vez de “beijo”, “cheiro”, “brasileiro”. Dessa aula, conclui-se que a língua escrita deve ser um registro permanente e usada na transmissão de saber e cultura, sem sofrer interferências da língua falada. Por isso, essas variedades devem ser consideradas apenas no plano oral.

O próximo assunto é a redução do E e O átonos pretônicos, que consiste na transformação dessas vogais em I e U quando pronunciadas antes da sílaba tônica. Por exemplo em “avenida”, “medida”, “pepino”, “formiga”, “domingo”, “comida” e possível”, que são pronunciados com essa troca: “avinida”, “midida”, “pipino”, furmiga”, “ dumingo”, “cumida” e “pussível”. Isso ocorre devido a um fenômeno chamado de “harmonização vocálica”.

Há, ainda, alguns outros fenômenos fonéticos comentados por Irene que são importantes em suas análises: a contração das proparoxítonas em paroxítonas, como ocorre em “fósfro” (em vez de fósforo), “tauba” (em vez de tábua), “musga” (em vez de música), entre outros; a desnasalização das vogais postônicas, como ocorre em “onte” (em vez de ontem), “home” (em vez de homem), “garage” (em vez de garagem), entre outros e os arcaísmos no português do Brasil, exemplificados pelo uso de palavras com um A inicial que se usava antigamente, como em “alembrar”, “alevantar”, “avoar”, “aqueixar”, “ajuntar”, entre outros. Esses fenômenos encontram sempre uma explicação histórica.

Em uma manhã, durante o café, Irene sai e deixa vários bilhetes para suas “alunas” com frases construídas com a partícula SE, para que elas vão pensando sobre isso. Na aula da noite, Irene vai explicar a função da partícula SE como verdadeiro sujeito de oração. Ela mostra que em frases como nessa padaria se comem uns docinhos ótimos, ocorre a concordância verbal sugerida pela norma padrão, porém ela questiona essa regra, mostrando que é possível se entender que os docinhos se comem uns aos outros, interpretação sem coerência. Por isso, ela defende que, frases como essa, deveriam ser construídas com o verbo no singular, para evitar essa interpretação absurda, ficando assim: nessa padaria se come alguns docinhos e mostra que o sujeito dessa oração é o pronome SE, que concorda com o verbo. Irene prova sua tese ao transpor as vozes verbais em Aluga-se esta casa para Esta casa é alugada e mostra que, mesmo tendo equivalência na relação voz passiva pronominal / voz passiva analítica, o sentido delas não é o mesmo. Ela afirma que há três explicações para classificar o pronome SE, nessas frases, como sujeito: uma explicação sintática, uma explicação semântica e uma explicação pragmática.

Na aula seguinte, Irene fala sobre fenômenos decorrentes de analogia e explica que, segundo o PP. Há uma mudança na pronúncia de algumas palavras idênticas, mas que pertencem a classes gramaticais diferentes. É o caso de “o almoço” e “eu almoço”, no primeiro caso fala-se “almôço” e no segundo, “almóço”. Isso causou trocas fonéticas em algumas palavras, por simples analogia, não aceitas pelo PP: eu “estóro”, eu “póso”, eu “róbo”. Além disso, os particípios irregulares, tão bem aceitos pelo PP em alguns casos, não são aceitos em outros, como “dizido”, “escrevido”, “fazido” em analogia com verbos que têm a mesma terminação.

Após todas essas “aulas”, a professora Irene, que também é Doutora em Lingüistica, chama a atenção das estudantes para que reflitam se realmente a língua que se fala no Brasil é o português; uma vez que os brasileiros não compreendem o português do século XII e nem o português falado em Portugal. A conclusão a que chegam é que o nosso "português" não existe, por ser uma língua formada por muitos outros idiomas e dialetos, totalmente mutáveis e variáveis.

Ela explica que o que existe na verdade, são variações do português. Em diferentes regiões do país o português é falado com sotaques e características muito próprias, mas a norma padrão, com uma ortografia oficial, definida pela Academia Brasileira de Letras, é uma só, para ser seguida em todo o país. Essa imposição marca a diferença entre a língua falada, que nem sempre segue o padrão imposto por lei, e o português-padrão, chamado também de norma 'culta'. Enquanto o português-padrão é aprendido nas escolas, e é aquele usado na linguagem escrita, o português-não-padrão é passado de uma geração para outra, oralmente.

As regras do português-não-padrão são apreendidas quase naturalmente, por imitação. É uma linguagem mais funcional, que trata de eliminar as regras desnecessárias. É uma linguagem inovadora, que se deixa levar pelas forças vivas de mudança. Por outro lado, o português-padrão é muitas vezes redundante, necessita de muitas regras para dar conta de um único fenômeno. É conservador, demora muito para aceitar qualquer tipo de novidade e por essa razão se mantém inalterado por um tempo muito longo.

Irene considera ainda que, devido às imposições da norma culta da língua portuguesa, pode-se observar muito mais semelhanças do que desigualdades na comparação entre o português-padrão e o não-padrão. Essas semelhanças podem ser vistas principalmente em traços lingüísticos, como os verificados em um falante escolarizado da região Sul, que pode se comunicar perfeitamente com um analfabeto do Norte do país. Esse mesmo analfabeto terá grandes dificuldades em entender uma linguagem mais padronizada. Mas isso não significa que não tenha capacidade para aprender regras gramaticais, o que depende, em parte, da maneira de ensinar na escola que ele vier a freqüentar.

Essas colocações fazem surgir um questionamento: e o vestibular? Irene afirma que esse é o grande “trunfo” dos paragramáticos, aqueles que defendem a norma padrão como única possível de ser ensinada e aprendida. Mas diz que a “saída” está nos próprios professores de língua portuguesa, que devem lutar para que as provas que exigem conhecimento amplo da norma padrão sejam reformuladas.

Voltando “às aulas” Irene vai, agora, mostrar às alunas que não há nenhuma impropriedade no uso de para mim responder, tão criticado pelos puristas e exigido pelo PP. Ela mostra que na frase João trouxe um monte de livros para mim escolher ocorre um fenômeno chamado de braquilogia, pois, ao utilizar o pronome MIM, que é tônico, no lugar do pronome EU, que é átono, o falante está dando ênfase a seu enunciado. Além disso, ela explica a tese do ganha quem chega primeiro, e relembra a regra que diz: “depois de preposição, pronome oblíquo”. Essa regra vem primeiro do que a regra que diz: “na função de sujeito de um verbo, deve figurar um pronome reto”. Daí ser correto dizer “para mim fazer”. Ela termina essa aula criticando aqueles que dizem que isso é “língua de índio”. Esse mesmo fenômeno ocorre em frases do tipo: “deixe-me ver isso”, dita assim pelo PNP: “deixa eu ver isso”. Ora, se MIM não pode ser sujeito de verbo, por que ME pode? Não há coerência, pois ambos pertencem à mesma classe gramatical: pronome oblíquo.

Depois de tanto ensinamento, tanta aprendizagem, chega o momento de as três alunas irem embora, as férias estão acabando. Irene propõe, então, que antes da partida, elas façam uma avaliação para verificar se realmente aprenderam. Entrega a cada uma das alunas, Silvia, Vera e Emília, uma cópia do poema “Malinculia” de Antonino Sales, poeta popular, para que elas façam uma análise. O poema é todo construído de acordo com o PNP. Após a minuciosa análise, inclusive do título, que remete à palavra melancolia, elas descobrem que tudo o que elas aprenderam pode ser verificado no poema analisado. Concluem que o aproveitamento delas nas aulas foi muito bom, pois tiveram a oportunidade de aprender muitas coisas sobre o português não-padrão, sobre o funcionamento da norma culta, além de um pouco de grego e latim, misturados com italiano e francês. Irene, satisfeita, afirma que colocou uma semente em cada uma delas para lutarem para que as pessoas se conscientizem de que não existe “falar errado” mas sim “falar diferente”, e que as pessoas que falam “diferente” não devem ser inferiorizadas, prejulgadas ou marginalizadas da sociedade.

Chega o dia da partida, na rodoviária, durante as emocionadas despedidas, Irene diz às garotas que fará uma dedicação a elas em seu livro e que este receberá o nome de “A Língua de Eulália”, pois graças a ela que tudo aconteceu.



COMENTÁRIO CRÍTICO



Extremamente interessante a forma que o autor utiliza para fazer sua abordagem teórica e defender sua tese sobre o PNP. Assim, ele consegue tornar agradável a leitura de sua obra, pois não fica presa exclusivamente à sua teoria. Criar personagens que discutem entre si as questões teóricas foi uma saída genial para que a obra perdesse o aspecto de leitura cansativa, muito tradicional em obras teóricas. Numa primeira análise, percebemos que o livro de Marcos Bagno revela os traçados gerais de seu objetivo: arrojo metodológico e paixão pela matéria tratada, características nem sempre bem sucedidas nos estudos com pretensões científicas. Como o subtítulo antecipa, o argumento é arquitetado na forma de “novela”. O leitor vai se deparar com uma estruturação narrativa à la romance, sobretudo no que o gênero tem de didático. Notará, inclusive, o toque folhetinesco ao final de cada episódio, quando o autor deixa as conclusões prenunciarem o que acorrerá no próximo capítulo. Dramatiza-se, mesmo, a missão da sociolingüística - talvez o braço mais atuante da lingüística - cujas ações práticas e teóricas têm buscado derrubar as barreiras do preconceito lingüístico nos estabelecimentos destinados à alfabetização. Se os capítulos funcionam como folhetins, até pelos títulos sugestivos como “Beijo rima com desejo” ou “Quem se alembra de Camões”, as lições da personagem Irene ao correr da narrativa são verdadeiros colóquios. O livro, nesse sentido, apresenta outra característica tão grega quanto os nomes de Irene (paz, no idioma de Homero) e de Eulália (aquela que fala bem, em grego). Nas aulas, encena-se a velha pedagogia processada na obra de Platão: o diálogo que, ao contrário da educação unilateral como a nossa tradicional, pressupõe troca dos saberes entre os participantes. Por isso Irene surge como a mais experiente, professora universitária aposentada, com conhecimento ampliado inclusive de si. Ainda assim, ela expressa modéstia quando aclamada por Vera como alguém que sabe tudo: “Eu? Sei tudo? Vera, não diga uma bobagem dessas!”. Outro aspecto interessantíssimo é que cada personagem simboliza uma área do saber ou de expressão: temos a lingüística (Irene), ciência piloto destinada a corrigir os “pecados” do ensino de língua pátria, as letras / literatura (Vera), a psicologia (Silvia) e a pedagogia (Emília). Tal artifício didático-narrativo revela o plano político da obra, pois essas quatro áreas, em conjunto, poderiam alterar o impasse em que se acha o ensino de língua materna no Brasil. Lingüística, literatura, psicologia e pedagogia, cada uma em sua medida, são os instrumentos científicos, pragmáticos e institucionalizados para discutir e democratizar a educação da língua portuguesa no país.

A linguagem do livro oferece livre acesso a qualquer interessado nas questões teóricas da sociolingüística. E isso se deve a dois motivos básicos: o formato romântico faz do enredo uma trama pedagógica simplória; o discurso de Bagno procura minimizar o emprego de jargões científicos, que costumam complicar o entendimento do texto por parte do leitor não iniciado na terminologia lingüística. Além disso, a didática de Irene é reforçada pelas explicações sempre por contrastes, que mostram duas ou mais maneiras de pensar a questão focada. O gesto de Irene, ao questionar as estudantes sobre o preconceito lingüístico que demonstraram no primeiro contato com Eulália, no fundo, arma um questionamento que atravessa o livro todo: a validade do modelo atual de ensino de língua portuguesa oral e escrito nas escolas brasileiras. Para convencer as convidadas, Irene tece longa discussão para definir o que seja português padrão (PP) e português não-padrão (PNP). Irene prepara uma reflexão esclarecedora acerca do PP e do mito da unidade lingüística: no Brasil, além das dezenas de línguas indígenas e das faladas nas colônias de imigrantes estrangeiros, não se fala uma única língua portuguesa. O “português não é um bloco compacto, sólido e firme, mas sim um conjunto de ‘coisas’ aparentadas entre si, mas com algumas diferenças. Essas ‘coisas’ são chamadas variedades”. (p. 19) O PP seria apenas uma dessas variantes, na realidade, praticado quase que exclusivamente na escrita. O PNP, por outro lado, compreende o conjunto de todas as variantes, principalmente as orais.

Irene expõe as circunstâncias que levaram o PP a se constituir como a variante prestigiada em relação a todas as outras. O fenômeno seria menos lingüístico que econômico, histórico e social, uma vez que “o PP nada tem de melhor que as outras variantes, ele só tem mais que as outras”. (p. 23) A vantagem imputada ao PP não se deu da noite para o dia, há e houve investimentos maciços por parte dos gramáticos tradicionalistas, dicionaristas, acadêmicos de letras e autores de livros didáticos em prescrever regras, palavras eruditas, termos técnicos, metáforas sofisticadas, construções sintáticas empoladas. Isto é, todo um código para ser dominado por falantes e “escritores” que desejem enobrecer suas práticas lingüísticas. Contudo, tal língua padrão nunca é ou foi exatamente falada ou escrita nem por aqueles que a prescreveram. Como seu nome sugere, ela é apenas um gabarito, um padrão onde podemos testar a língua usual e de fato viva com suas constantes mudanças. As variedades que compõem o PNP não devem ser encaradas como erradas, são, isso sim, diferentes da norma padrão. Por serem marcadas pela oralidade e mais livres para mutações que as modalidades escritas, ela responde com maior agilidade às regras de evolução natural da língua. O PP, preso à escrita, tende a ser mais engessado e lento na adesão às mudanças. A maioria das aulas de Irene destina-se a demonstrar os mecanismos e funcionamentos de variedades sintáticas, semânticas, fonológicas e fonéticas, sendo que as últimas são os alvos preferidos do preconceito lingüístico. Exemplo, quando um falante diz as bicicreta, sofre maior estigma social que outro que pronuncia isso é pra mim fazer. Marcos Bagno mostra que a escola brasileira, principalmente sua seção de alfabetização, leva em conta apenas o PP.

E o que é pior, espera que o aluno o apreenda através da “decoreba” de listas de verbos, de análises sintáticas de frase irreais bem como de uma gama de exercícios que simulam um idioma absurdo. O grande erro imposto por esse modelo, nesse sentido, é excluir a maior parte dos alunos de origem humilde, de extratos sociais desprestigiados, que falam o PNP. Eu mesmo, em minha prática pedagógica, já fiz muito isso. Essas crianças são, muitas vezes, consideradas falantes incompetentes quando não retardadas. “Os professores, administradores escolares e psicólogos educacionais tratam o aluno pobre como ‘deficiente’ lingüístico, como se não falasse língua nenhuma, como se sua bagagem lingüística fosse ‘rudimentar’, refletindo conseqüentemente uma ‘inferioridade’ mental”. (p. 29)

Podemos notar aí o motivo do abandono em massa de alunos da escola pública ou o total desinteresse por parte da maioria dos alunos de escolas particulares, pois o PP, empregado pelos professores de todas as disciplinas, às vezes soa como língua estrangeira a um número grande de alunos, justamente por não fazer parte de seu universo cultural. Do modo como se ensina a língua e outros conteúdos, a escola tende a privilegiar as crianças ou os adultos que já apresentam domínio do PP, repelindo os falantes de outras variantes quando deveria ensiná-los corretamente o português padrão. O que é ensinar corretamente a norma culta da língua portuguesa? Irene também responde a essa dúvida das estudantes. Primeiro: é importante haver uma língua padrão, pelo menos escrita, para se manter uma certa uniformidade. Mas temos que mostrar para os alunos como ela se modifica no tempo e no território geográfico onde atua, de que forma suas mudanças ocorrem lentamente, ao contrário das rápidas e constantes metamorfoses perceptíveis nas variantes orais. O cidadão alfabetizado adequadamente desenvolve potencial para compreender tudo o que é e foi escrito à maneira do PP: nossas leis, os contratos de trabalho, grande parte da imprensa escrita, a maioria das obras literárias compostas através de séculos em língua portuguesa etc. O professor de português e literatura, em especial, deve auxiliar os educandos a se tornarem sujeitos sensíveis à pluralidade lingüística na imprensa e nas produções artísticas, em especial na música contemporânea, que jamais exercitam inclusivamente o PP. A língua escrita estabelece padrões, mas eles são muito mais flexíveis do que a língua pura cultuada pelos gramáticos tradicionalistas. Segundo: um falante do Rio Grande do Sul fala diferente de um do Alagoas ou de Angola, por exemplo. Mas se os três dominarem a norma padrão, podem se entender bem por meio dela - principalmente na escrita - sem fazer de suas identidades lingüísticas obstáculos para a comunicação.

A escola deveria conseguir democratizar a norma padrão, considerando as variantes geográficas, socioeconômicas, etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais, etc. A escola pode proporcionar ao aluno um conhecimento lingüístico muito mais vasto do que comumente se imagina, capaz de fazê-lo saber até qual o melhor registro para determinado contexto. Ou seja, um adolescente precisa enxergar as diferenças entre escrever uma carta ao gerente do banco e enviar um e-mail para um amigo.

Pela boca de Irene, Bagno defende que a chave para corrigir o ensino de português, afora a vontade dos professores, é o conhecimento e estudo das teorias lingüísticas que abordam cientificamente o assunto. Em nenhum momento se antepõe ao ensino da norma culta. Seu alerta vai de encontro a uma pedagogia de ensino de língua cujo prazo de validade venceu há bastante tempo. “Vamos apresentar a forma lingüística elitizada, minoritária, a todos os nossos alunos, para que ela não seja usada contra eles no processo perverso de exclusão social baseado no preconceito lingüístico.

Mas todo esse elogio tecido ao autor não significa que concordo plenamente com ele, em todos os aspectos abordados. Quando ele tenta, através de Irene, mostrar que o SE funciona como sujeito em construções de frases na voz passiva pronominal, extrapola o conceito mais claro e definido para sujeito: é o elemento do qual se fala. Impossível alguém dizer “Aluga-se casas” querer estar falando do SE. Acho viável se aceitar a frase exemplificada como correta, mas não analisar o SE como sujeito, justificando o uso do verbo no singular. Poder-se-ia classificar o sujeito como indeterminado e o SE como índice de indeterminação do sujeito. As normas gramaticais são flexíveis, podem ser alteradas, desde que não comprometam a história da língua.

Como professor de Língua Portuguesa há anos, senti-me um pouco ultrapassado ao ler a obra, passei a refletir melhor sobre meu posicionamento em relação ao ensino da língua. Creio que passarei a enxergar o ensino da língua com outros “olhos” e que procurarei ir me adaptando, aos poucos é lógico, às mudanças propostas. Em suma, pude deduzir que sou a favor do ensino da norma padrão, mas de um ensino crítico, de um ensino que mostre que essa norma padrão não tem, lingüisticamente, nada de mais bonito, de mais lógico, de mais coerente que as variantes usadas pelos falantes menos cultos ou analfabetos. Aproveitando a teoria da sociointeratividade, desenvolvida por Lev Vigotsky, podemos aproveitar o que o aluno traz em sua bagagem cultural e aprimorar seus conhecimentos lingüísticos, mostrando-lhe as diferenças signficativas entre o PP e o PNP.


Autor: Wagner Torlezi


Artigos Relacionados


Você Tem Jogo De Cintura?

Da Sensação Do Místico

Resumindo A Vida

‘paquetá’ E Os Seus Homônimos

Armadilhas Linguísticas

Doze Lugares Chamados ‘paquetá’

Heterogeneidade No Português Do Brasil