Orgâncos e a Native
Luana Budel, docente da Faculdade Método de São Paulo.
RESUMO: Este trabalho aborda alguns aspectos do paradoxo da agricultura orgânica e alguns pontos da sua dicotomia. Conceitua exemplos de sistemas agroecológicos, e como eles podem beneficiar a sociedade. Procura contextualizar problemáticas da alimentação na sociedade de consumo atual, desde o produtor até o consumidor final. Debate o posicionamento na Native acerca da agricultura orgânica, seus benefícios e porque é considerada uma empresa sustentável. Aborda a importância da sustentabilidade nos dias atuais e como ela pode ser aplicada aqui numa monocultura de açúcar.
Palavras-chave: gastronomia; sustentabilidade; agroecologia; sociologia.
ABSTRACT: This paper addresses some aspects of the paradox of organic farming and some points of its dichotomy. Conceptualizes examples of agroecological systems, and how they can benefit society. Contextualize issues of consumption in society today, from the producer to the consumer. Debate about the position of Native about organic agriculture and its benefits and why it is considered a sustainable company. Discusses the importance of sustainability today and how it can be applied here in a monoculture of sugar.
Keywords: food, sustainability, agroecology, sociology.
Atualmente existem diversas alternativas à agricultura tradicional, colocadas em prática depois da revolução industrial. As bases para esses momentos alternativos surgiram no início do século XX, onde teorias e filosofias de vida foram concedidas como uma crítica à valores industriais que emergiram e tomaram conta após a revolução industrial. Começou com uma completa revisão que se tinha do solo e agricultura, que de um sistema vivo passa a ser encarado como uma espécie de máquina produtora de alimentos (POLLAN, 2007, p.161).
Entre os principais precursores, encontramos o filósofo alemão Rudolf Steiner, que lançou uma corrente de pensamento pregando o equilíbrio entre a matéria e espírito, a Antroposofia, e com ela a agricultura biodinâmica . Porém, mais estudado do que qualquer outro escritor, Sir Albert Howard, botânico e agrônomo inglês que fez pesquisas na Índia com adubos naturais, passando a defender que o solo é um organismo vivo com bactérias, fungos, minhocas e substâncias minerais, que devem ser aproveitados de maneira sustentável, teoria que foi adaptada depois dentro na biodinâmica. Todas essas teorias dizem que substâncias artificiais desequilibram a vida do solo e pregam sua substituição por insumos naturais, como a compostagem , detalhadamente estudada por Howard. O elo comum entre as vertentes é o objetivo de desenvolver uma agricultura ecologicamente viável e social, além de economicamente adequada.
Atualmente a agricultura orgânica é um segmento do mercado de alimentos em expansão em todo o mundo, oriundo de grupos de produtores rurais com diversas críticas, propostas e objetivos em relação aos caminhos que a agricultura vem seguindo. Porém, os indutores deste processo, atualmente, estão na outra ponta da cadeia produtiva: são os consumidores, conquistados pela confiança nos trabalhos realizados, e também, pelas mudanças de paradoxos quanto às questões ambientais, à alimentação, a hábitos de vida e saúde .
O movimento orgânico teve seu boom no radicalismo e contracultura dos anos 1960. Além de uma recusa ao uso dos produtos químicos, era uma rejeição da máquina de guerra, já que as mesmas corporações - como Dow e Monsanto - produziam pesticidas e adubos e também fabricavam o napalm e agente laranja (POLLAN, 2007, p. 158).
No final dos anos 1970, alguns pioneiros da contracultura na agricultura norte-americana descobriram as vantagens econômicas de agregar valor ao seu produto por meio do processamento, e depois entenderam que podiam ganhar mais dinheiro comprando produtos de outros fazendeiros. A noção de comunidade cooperativa que tinha sido adotada no ponto de partida, onde cada pequeno produtor vendia o que plantava em sua região, gradualmente começou a inserir o "sistema", formando parcerias entre fazendas orgânicas e aumentando suas produções (POLLAN, 2007, p.167).
Mas um marco importante para o real crescimento do sistema de produção orgânico foi o pânico do "caso Alar" , ocasião em que a mídia reportou detalhadamente o lado obscuro dos aditivos agrícolas, trazendo uma onda de pânico em vários países simultaneamente. Esse divisor de água trouxe os produtos orgânicos para as manchetes de jornais e revistas, e pedidos vindos de redes de supermercados começaram a surgir da noite para o dia em grandes escalas.
Estava montada a plataforma para que as novas cooperativas latifundiárias pudessem se estabelecer no comércio global. E para que isso fosse legalmente viável, formaram lobby com empresas do ramo agroindustrial para afrouxarem as leis extremamente rígidas dos produtos orgânicos. Como exemplo, podemos observar a atitude do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que, atendendo a clientes do agronegócio, afrouxou entre os anos de 1990 e 1997 padrões para que fosse permitido o uso de uma lista de aditivos e substâncias sintéticas na indústria dos orgânicos.
Como é citado em Pollan (2007, p.152), marqueteiros dessa indústria aderiram a um gênero literário de propaganda chamado "estilo pastoral de supermercado". Este satisfaz nossos anseios associando a necessidade de contar com alimentos que não ofereçam riscos com o vínculo entre a terra e animais domésticos dos quais dependemos. Isso faz que as pessoas acreditem que, ao comprarem produtos orgânicos, estão se comprometendo com um modo de vida mais saudável e de respeito com a natureza e, ao mesmo tempo, mantendo alguns aspectos positivos da modernidade. Pollan (2007, p 154) também cita fazendas visitadas por ele onde "milhares de vacas jamais vêem pela frente uma folha de capim, e passam seus dias confinadas em cercados comendo grãos (com certificados orgânicos) e ligadas à ordenha três vezes ao dia".
A contradição mais traiçoeira que se tenta resolver hoje neste ramo está entre a industrialização dos alimentos, da qual este setor faz parte, e os ideais sobre os quais este setor foi erguido. Nos últimos trinta anos o movimento orgânico percorreu um longo caminho, a ponto de perder sua alma e parecer muito mais com um grande negócio do que um movimento.
Um exemplo: para um ideal de sustentabilidade, o produtor pode realizar a venda direta, através de feiras, vendas no local de produção ou cestas em domicílio. Mas o que impera é a contradição do movimento, a venda no atacado pelos grandes hipermercados. Estes são responsáveis por cerca de 90% da comercializaçãodos produtos , promovendo sua divulgação com a ajuda de seus marqueteiros. Porém, ao atuarem como "intermediários" da cadeia produtiva, trazem com eles toda uma mudança na forma original do produto; colocam enormes margens de lucro sobre os consumidores e transformam esta agricultura sustentável e um gigantesco império orgânico industrial.
Mas do outro lado deste cabo de guerra utópico, temos como exemplo (brasileiro) de alma orgânica ainda com traços existentes a Native, maior empresa brasileira de alimentos orgânicos do Brasil, fabricante principalmente de açúcar. Do cultivo da cana convencional, preservou apenas o porte. Sua cana é cultivada pelo sistema de monocultura 100% mecanizada com associação de técnicas consideradas marginais pela maioria dos produtores, e que se encaixam na biodinâmica. Não usa sequer compostos com adubos orgânicos com base em excrementos de animais. A fertilidade vem de uma particular associação entre as folhas da cana - que são espalhadas sobre a terra para proteger e nutrir o solo ? e proliferação de animais e microorganismos que vivem neste habitat.
Por ter banido a queima da cana e passado a utilizar as folhas para a proteção do solo, os canaviais da Native abrigam mais de 340 espécies animais, entre insetos e mamíferos. Isso foi possível com a integração de especialistas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), como o engenheiro José Roberto Romero , para estudar maneiras sustentáveis de evitar a proliferação de insetos que destruíam a cana. Por meio de tentativa e erro, descobriram uma espécie de vespa nativa que controla as pragas da cana .
Foi preciso também mudar o desenho do canavial para facilitar a colheita mecanizada, em que a mão-de-obra bóia-fria não fosse mais utilizada. Os corredores de passagem, que formavam quadriláteros, foram transformados em ondas com o replantio de boa parte dos canaviais. Logo a seguir, o time da Embrapa garantiu que houvesse corredores de mata nativa entre os canaviais, aumentando a qualidade de vida dos animais que estavam se fixando ali.
Para alterar o processo do cultivo de cana, foram necessários mais de 12 anos de tentativas, e apenas depois de uma década houve o retorno de lucro. Atualmente, após todos estes anos de estudos, conseguem colher 30% a mais do que na colheita tradicional.
Dentro dos padrões do capitalismo formal, esse processo poderia parecer uma eternidade. Mas para uma empresa cujo foco desde o começo foi a abertura para uma nova forma de capitalismo junto com uma melhoria tanto ambiental como social, foi uma nova forma de se fazer negócios. Nesse novo modelo de capitalismo usa-se o presente para construir um futuro melhor em longo prazo. Atualmente a Native detém 95% do mercado brasileiro e 30% do mercado global de açúcar orgânico.
A relação entre as práticas de plantio orgânico realizadas por famílias ou pequenos agricultores em seus quintais e pequenas roças - com sérios problemas de preço, embalagem e escoamento dos produtos em pequenas feiras, próximas aos seus municípios de origem - e a política histórica do governo no apoio aos macros projetos de agro-negócios é um paradoxo nacional, e acredito, internacional. A agricultura em larga escala nos diversos cantos do Brasil, como a da cana-de-açúcar que usamos como exemplo, não só dizimou ambientes biodiversos e importantes para o planeta, como a Amazônia, o Cerrado e a Mata Atlântica, mas também protagonizou fatos de violência por uma luta sócio-econômica. Talvez a Native, dentro deste bolo histórico, esteja mudando o foco pelo menos de suas fazendas produtoras. Ao menos é isso o que passam alguns pesquisadores, como André de Carvalho da FGV, enfatizando que o caminho da Native "trata-se de um caso emblemático de inovação e empreendedorismo agrícola no Brasil" .
Considerações Finais
De acordo com uma reportagem de Liliana Peixinho , o Presidente Lula colocou como prioridade em sua proposta anterior de governo "a distribuição e valorização, de fato, da agricultura familiar, através da distribuição de terras". A promessa de projetos de alternativas alimentares e agricultura orgânica, com objetivos de promover a alimentação saudável e maior qualidade de vida para a população, através de uma dieta nutritiva e de baixo custo, com aproveitamento integral dos alimentos, ainda é incerto afirmar se de fato chegaram aos quintais de comunidades que precisam destes benefícios.
Outro paradoxo, muito discutido na sociedade brasileira, seria quando os orgânicos chegam ao consumidor final. Os produtos orgânicos, já embutem um valor agregado, não podendo ser comparados com os produtos agrícolas comuns ou da agricultura convencional, nem em qualidade, nem em preço. Caracterizam-se por serem já diferenciados intrinsecamente por sua qualidade. Nesse sentido cabe salientar que o produto orgânico, que já traz em si um valor de qualidade agregado desde sua produção no campo, poderá ainda sofrer uma nova agregação de valor relacionada a aspectos da sua apresentação, classificação, processamento, etc., de modo semelhante ao produto convencional.
É justamente aí que se centra a controvérsia do ponto de vista de que aos olhos do consumidor interessado em produtos "limpos", o açúcar orgânico já se apresenta como um produto diferenciado em relação ao açúcar convencional. Nessa linha de pensamento há ainda que se considerar que o produto agrícola orgânico se caracterizaria como um produto diferente do convencional, mesmo sendo da mesma espécie.
Em carta no site da empresa, Leontino Balbo acionista e visionário da Native, afirma que "todos falam que são necessárias alternativas de produção para mudar os rumos que nos trouxeram para um aquecimento global, mas pensar apenas nisso é incompleto. É preciso mudar o modelo em todo para se ter uma economia sustentável" .
Dentro do que foi lido para as pesquisas deste artigo, sempre existe os dois lados da moeda, e nunca uma coisa é o que realmente parece. Por um lado pode parecer uma utopia acreditar que a sociedade irá se transformar em uma cadeia sustentável, mas também é possível que pessoas com a visão e ativismo de Leontino existam, cada vez mais em maior escala.
Referências Bibliográficas
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Autor: Luana Budel
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