Relato das últimas presepadas de Clementino antes do sumiço misterioso



Relato das últimas presepadas de Clementino antes do sumiço misterioso

Mais ou menos pelos idos de 1949, Clementino Rufino de Lima e o seu filho Marcial Rufino de Lima, resolveram ir embora do seu querido torrão no Trapiá, Várzea Alegre, para o interior de São Paulo com objetivo de ganharem dinheiro e ajudarem a família, constituída de 12 filhos.
Naquele tempo a viagem, às vezes chegava a durar mais de 20 dias. De Crato até Petrolina, o trajeto era feito em um pau-de-arara, um velho caminhão com uma cobertura improvisada por uma lona amarela, e bancos de madeira montados transversalmente a carroceria. No caminho a poeira encobria a estrada, a negrada suava fedido e a inhaca era grande, nessas condições os retirantes só tomavam banho se chovesse sobre a cobertura de lona rasgada, uma possibilidade quase remota, tanto no sertão semi-árido quanto no agreste.
O percurso de Petrolina até as corredeiras de Pirapora, "Salto do Peixe", era feito nos "gaiolas", embarcações a vapor que singravam as águas do Rio São Francisco, atravessando o estado da Bahia até a região Norte do estado de Minas Gerais, aproximadamente 1.371 km, onde havia o entroncamento do transporte fluvial com o trem que fazia a linha até Belo Horizonte. Essa viagem era longa, demorava mais ou menos sete dias, navegando contra a correnteza e parando de vez em quando para abastecer com lenha, o vapor Benjamim Guimarães, atualmente o único remanescente desse tipo de embarcação, ainda em uso no mundo.
Nessa época centenas de nordestinos subiam as volumosas águas do rio São Francisco em direção ao sul do país, especialmente para o estado de São Paulo a fim de tentarem a sua sorte em terras alheias, de gente da mais "estranha cara e tão diferente do seu caro torrão". No meio daquela enorme embarcação de mais de 60 metros, aturdidos pelo barulho do motor a vapor e pelo solavanco das águas, Clementino e Marcial miravam a bela paisagem que se descortinava em cada curva do Velho Chico, numa época em que o desmatamento ainda era incipiente.
Clementino era um líder nato, homem conversador, contador de causos, logo atraiu a atenção de alguns retirantes que se divertiam ouvindo as suas histórias bizarras e presepadas aprontadas nas festas do sertão. Conserva vai conversa vem, Clementino descobre que não está só no meio dos retirantes indigentes, pois muitos não têm condições de prosseguir a viagem, nem mesmo onde cair morto. A maioria só tinha condições de viajar até Belo Horizonte, daí pra frente contariam apenas com a cara e a coragem. Foi aí, que a coragem e a liderança de Clementino se fortaleceram, pois ele assumiu a responsabilidade de levá-los até São Paulo, ainda que a porca torcesse o rabo, e assim assumiu o seu "slogan":
- Quem anda comigo não passa fome e nem dorme no meio da rua. Dinheiro comigo não é problema, é solução.
Numa manhã fria do mês de julho, eles chegaram a Estação Ferroviária de Belo Horizonte, a temperatura do ar era de 18 graus Celsius, suficiente para muita gente da caatinga estranhar e tremer de frio, feito uma vara verde. Nesse momento, foram até o guichê da estação e descobriram que todos os trens nos diferentes horários, com destino ao Rio de Janeiro, estavam lotados e que não havia com viajar por uma semana. E agora como hospedar toda aquela gente e arranjar comida se ninguém tinha dinheiro?
Clementino muito perspicaz, observando a situação daqueles pobres conterrâneos foi logo dizendo:
-Vamos procurar o melhor hotel da cidade! E deixem tudo por minha conta!
Alguém replicou:
-Mas nós não temos dinheiro, Clementino?
-Eu não já lhe disse, deixem tudo por minha conta! Quando chegarmos a São Paulo a gente se acerta.
De fato aquelas 20 famílias famintas que agora estavam sob o seu comando, ficaram hospedadas no melhor hotel da cidade e foram muito bem tratados, pois tinham como padrinho Clementino, um homem que "não deixava em perigo um camarada, ainda que o mundo ardesse em fogo, seu rifle não negava fogo e nem seu braço a punhalada".
Finalmente, chegou o dia de acertar as contas com o dono do hotel. Conforme relato de Marcial Rufino de Lima, seu pai estava tranqüilo e não aparentava nenhum nervosismo. Foi logo se dirigindo ao dono do hotel e dizendo:
-Vamos acertar as contas! Como lhe disse tudo aqui é por minha conta!
-Só que tem um, "porém", aqui ninguém tem nenhum tostão!
E Clementino continuou falando:
-Agora o Senhor pode mandar chamar a polícia e levar todos nós pra cadeia, só assim a gente tem onde comer e dormir, pois todos nós estamos aqui mais lisos, do que baba de quiabo em guisado de peixe fresco.
O dono do hotel estava estarrecido diante da revelação estonteante de Clementino.
-Mas não pode ser do jeito que você está falando, Clementino!
-É verdade, meu Senhor. Mas tem outra solução, o senhor arranja um serviço pra gente trabalhar e pagar a dívida, ou se não quiser agora mesmo a gente se acaba na ponta da peixeira!
O dono do hotel estava perplexo com a coragem e a determinação de Clementino e sorriu dizendo:
-Nunca durante toda a minha vida, vi um homem tão disposto e positivo como você? O que devo fazer então, Clementino?
-Com já lhe disse: chame a polícia agora mesmo e mande prender todo mundo!
E acrescentou:
- Nenhum dos nossos companheiros tem dinheiro para comprar a passagem até o Rio de Janeiro, aí a parada é dura, chefe!
O dono do hotel era uma pessoa muito abastada e influente na cidade. Naquele momento tomou uma sábia decisão:
- Vou até a prefeitura arranjar as passagens de trem para vocês irem até o Rio de Janeiro. Podem ficar no meu hotel até a saída do trem.
Nesse tempo era prefeito de Belo Horizonte, Otacílio Negrão de Lima, o primeiro prefeito eleito da capital, cuja gestão administrativa, foi de 1947 a 1951. Com as passagens em mãos e dinheiro suficiente para bóia, aqueles pobres nordestinos recuperam o ânimo e zarparam em direção a cidade Maravilhosa, onde outras surpresas lhes esperavam.
Durante a viagem o comentário era geral:
-Se não fosse sua astúcia e coragem Clementino, nós estaríamos agora mesmo na cadeia ou vagando pelas ruas de Belo Horizonte.
Clementino dava gargalhadas e dizia:
-Comigo, ou vai ou racha! Mas, podem ter certeza de uma coisa, que nós só vamos parar, quando chegarmos a São Paulo.
Chegando a Estação Ferroviária do Rio de Janeiro, mais uma vez aquela leva de nordestino não tinha como continuar a viagem de trem, pois há muito tempo o dinheiro tinha acabado. Mais uma vez a liderança de Clementino foi notória. Ele reuniu a sua turma e disse:
-Quero que todo mundo que está comigo, fiquem juntos. Quando o trem parar na estação, nós entraremos todos no último vagão. Então quando o condutor vier cobrar a passagem, podem deixar a parada comigo, que resolvo na hora.
Dito e feito, assim que o trem parou imediatamente todos embarcaram no mesmo vagão.
Quando deu lá pelas oito horas da matina, o trem dá seu ultimo apito em direção a cidade de São Paulo, a essas alturas todos estão cansados da longa viagem do dia anterior, alguns dormem nas poltronas, outros se agasalham ali mesmo sobre o assoalho, é hora de relaxar, enquanto o trem ruma para a cidade de São Paulo.
De repente, o silencio foi quebrado pela voz altissonante do condutor:
-Por favor, mostrem os bilhetes! Por favor, bilhetes em mãos!
Sem mais delongas, Clementino se levantou e objetou o condutor, dizendo:
-Todos esses passageiros aqui estão sobre minha responsabilidade, e ninguém tem nenhum bilhete e nem dinheiro para pagar as passagens!
O condutor foi curto e grosso e retrucou:
-Então vai descer todo mundo na próxima estação!
Clementino o objetou com veemência:
-Só se for à marra, condutor! Na próxima estação você vai ter que chamar a polícia, e puxar um por um para fora do vagão.
-Esperemos até a próxima estação e verão o que vai acontecer. Todo mundo vai em cana.
-Pago pra ver. Se formos em cana pelo menos teremos onde comer e dormir, pois aqui todo mundo já está com as tripas roncando, e mais lisos do que um muçum.
Assim relatou Marcial:
-Passamos a primeira estação e o condutor não nos perturbou, até respiramos aliviados, mas daí a pouco aparece o mesmo homem agora mais furioso:
-Bilhetes em mãos! Quem não tiver passagem, desce na próxima estação.
Mais uma vez Clementino saiu em defesa dos nordestinos:
-Eu vou dizer pra você, que nós vamos até onde o pé do ouvido agüentar. Daqui só sairemos arrastados, um por um.
E Clementino continuou arrazoando:
-E tem mais uma coisa que você precisa saber seu condutor de meia-tigela, nós estamos morrendo de fome juntamente com essas crianças, portanto, cuide logo de arranjar comida pra todos, antes que o caldo engrosse.
Assim Clementino foi vencendo a resistência do condutor, e daí a pouco a notícia se espalhou dentro do trem e muita gente cooperou na compra de comida. Finalmente todos chegaram são e salvos a Estação da Luz em São Paulo. Foi deslumbrante olhar para aquela enorme estrutura de ferro fundido, montada sobre enormes bases de concreto, e ouvir o bimbalhar do relógio no topo da grande torre central da Estação da Luz. Todos se sentiram ínfimos diante da grandiosidade das construções, porém naquela noite a maioria dormiu ali mesmo sobre os duros bancos da estação, e no dia seguinte cada tomou rumo ignorado, mas Clementino e Marcial seguiram em direção ao interior do estado a fim de trabalhar na lavoura.
Clementino era muito esperto, sabia fazer amizades com facilidade, logo arranjou um bom patrão. Ele gostava de trabalhar por empreitada, para tanto subcontratava outros peões para as tarefas mais pesadas, enquanto isso para aumentar os lucros tinha sempre um fornecimento. Recebia de vez em quando, dinheiro que só folha, mas gastava tudo nos finais de semana.
Marcial dizia:
-Dinheiro nas mãos de papai se fosse de barro, não dava tempo enxugar.
De vez em quando ele fechava um bordel, mandar a música troar e a cerveja rolar de graça, até o quebrar da barra. No dia seguinte as cafetinas levavam quase uma hora, só contabilizando os débitos. No entanto, algumas vezes ele encrespava com as donas do bordel, aí o circo pegava fogo, era necessário até chamar a polícia.
Um dia Clementino chamou o seu filho Marcial e disse:
-Olha Marcial, fique aqui trabalhando na fazenda, enquanto isso eu vou dar uma espiada no Mato Grosso. Quando eu arranjar um serviço por lá, venho lhe buscar pra nos trabalharmos juntos.
-Tá bom pai, mais vê se não demorar muito! Nós precisamos mandar um dinheiro pra mãe, lá no Ceará, pois ela deve estar passando muita necessidade.
-Tá bem, Marcial, logo a gente manda ajuda pra sua mãe.
Assim Clementino partiu em direção ao estado do Mato Grosso e "tomou um chá de sumiço", desapareceu para sempre. Marcial esperou pacientemente um mês, dois e três, aí não agüentou mais, não. Tomou uma decisão drástica: vou embora para o meu Ceará, cuidar da minha mãezinha e dos meus irmãos, que devem estar passando fome. Para fazer essa viagem precisava de dinheiro, foi então que teve uma idéia, chegou até o patrão e disse:
-Chefe, pai me escreveu e disse que está voltando de Mato Grosso para trabalhar aqui na fazenda, mas precisa que o senhor adiante uns Cr$ 400,00 para ele pagar algumas dividas e comprar sua passagem de volta.
Marcial ficou surpreso, pois sem nenhuma objeção o homem arranjou o dinheiro que ele precisava para voltar ao Ceará. Depois disso ele arrumou sua mala, e na calada de uma madrugada fria do ano de 1950, anoiteceu e não amanheceu - simplesmente evaporou. Voltou ao seu berço natal para recomeçar a vida, agora como chefe de sua própria família, pois era o filho mais velho.
Foi trabalhar duro em terras alheias, como arrendatário, juntamente com os seus onze irmãos. Nunca chegou a possuir nem sequer um palmo de terra durante toda a sua vida, nem um pedaço de chão onde cair morto, mas fez brotar do chão duro e ressequido do sertão semi-árido, o alimento e a fartura que o nordestino trabalhador e previdente sempre obtém.
Ele viu um por um, todos os seus irmãos se casarem e constituírem as suas próprias famílias, mas ele nunca se casou, pois tinha uma sisma:
-Não caso, enquanto for um sem terra, pois não quero ver ninguém sofrendo perto de mim, basta o que já vivenciei.
Às vezes, quando alguém lhe aperriava:
-Não vai casar Marcial?
-Não, enquanto minha mãezinha for viva na face da terra.
Depois disso viveu mais de cinqüenta anos ao lado de sua querida mãezinha, lhe prestando todo amor e afeto. Acho que Marcial foi um presente de Deus para a pobre e desprezada mãezinha Maria Rufino de Lima, um cidadão simples e honesto, que merece um lugar de primazia na galeria dos filhos que souberam em vida, honrarem aos seus pais.

MEU SERTÃO, MINHA GENTE E MINHA VIDA (trechos)
Antonio Anicete de Lima e Antonio Ferreira Lima


Autor: Antonio Anicete De Lima


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