A SOCIOLOGIA DA CULTURA DE SÍLVIO ROMERO



Profº André Pureza

Na lista de pensadores da Primeira República, considerados precursores da sociologia brasileira, Sílvio Romero se ombreia com Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha ou mesmo com o "jovem" Oliveira Viana, ocupando posição de destaque na história do pensamento social brasileiro. Dentre as idéias esgrimidas em frêmitos debates, Sílvio Romero defendia a superação da dicotomia entre Natureza e Cultura, pois ambas, reguladas pelo princípio evolucionário, forçavam um envolvimento maior entre as ciências naturais e sociais. Entendia que a realidade física e humana decorria de múltiplas causas. Quanto aos fatores sociais, étnicos, morais existentes na constituição da realidade nacional, deu-lhes ênfase como poucos. Adotou, no mais, o método monográfico elaborado por Le Play e seus condiscípulos, desenvolvendo-o em seus estudos literários. O pensamento sociológico de Sílvio Romero aceitou como válida a idéia leplayana que considerava as manifestações artístico-literárias um conteúdo passível de observação científica, dado parecer-lhe um indício confiável para saber em que nível se encontrava o processo de diferenciação desencadeado pela sociedade.
Essas são algumas das principais idéias da sociologia de Sílvio Romero e que haveriam de delinear as formulações teóricas de gerações ulteriores de cientistas sociais brasileiros. O estudo que se propõe, neste, pretende tratar, em linhas gerais, das principais idéias sociológicas de Sílvio Romero, a fim de que o aluno compreenda sua importância dentro de um contexto social e cultural mais amplo e não apenas nos limites de uma época (crepúsculo do século XIX) em que o vocábulo sociologia mal havia sido apropriado pelos intelectuais brasileiros.

Sílvio Romero e seu tempo

Embora sua influência esteja muito mais presente na primeira metade do século XX, quando a sociologia se encontrava em seu estágio pré-científico, domínio dos autodidatas (CÂNDIDO, 2006), suas idéias deram enorme contribuição para a sociologia brasileira, desde os primeiros feixes de cientificidade lançados por sua abordagem sobre problemas sociais e culturais do país.
Visto ter um interesse intelectual diversificado, evidenciado por temas como o balanço da vida parlamentar, a poesia ou a crítica sociológico-literária, Sílvio Romero publicou um sem número de estudos no período entre 1878 a 1914, ano de sua morte. No campo da sociologia, importam fundamentalmente Introdução à história da literatura brasileira (1882), Etnografia brasileira (1888), História da literatura brasileira, 2 vols. (1888), Ensaios de Filosofia do Direito (1895) e Ensaios de sociologia e literatura (1901).
Sílvio Romero foi um homem de seu tempo, não deixando de sentir o influxo das idéias sociológicas irradiadas da Europa. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e cristalizou sua imagem como destacado membro da Escola de Recife, na qual se juntaram Tobias Barreto, Clóvis Bevilacqua, Joaquim Nabuco, Manoel Bonfim, dentre outros. Com exceção de Tobias Barreto, que demonstrava interesse particular pelas Letras e Filosofia alemãs, a Escola de Recife foi uma espécie de empório doutrinário cujas idéias mais correntes se ligavam ao Positivismo de Auguste Comte e ao Evolucionismo de Herbert Spencer (SILVA, 2007).

O quadro geral das ciências

Inspirado pelo postulado teórico de Spencer e diante das idéias, a seu ver, inconclusas ou isoladas elaboradas por intelectuais brasileiros da época, Sílvio Romero resolveu sistematizá-las em um todo integrado, pois, interessava-lhe, acima de tudo, analisar a sociedade brasileira por uma perspectiva "biossociológica", dado não conceber os fatores naturais e culturais como realidades coexistindo sem recíproca influência. Sua orientação era a de que a investigação sociológica deveria ser realizada por meio de procedimentos metodicamente concatenados, indicando em seu resultado os fatores de ordem natural (primária), étnica (secundária) e moral (terciária).
Essa visão sociológica mais ampla e totalizadora de Sílvio Romero resultou de um empréstimo que fez de determinados elementos da sociologia spenceriana (PAIM, 2005). Mas talvez uma raiz mais profunda dessa abordagem totalizadora possa ser também encontrada no Positivismo de Comte. Se Tobias Barreto denunciou o fisicalismo na teoria sociológica de Comte (acusando-o de querer fazer da sociologia uma física social)1, Sílvio Romero, em resposta favorável a essa ciência, buscou um meio termo, alegando que a natureza científica da sociologia não era idêntica a das ciências naturais.
Vale ressaltar que, no "Curso de Filosofia Positiva" (1830-42!), Augusto Comte classificou e sistematizou todo o corpo de ciências desenvolvidas até então. Seus critérios de hierarquização científica obedeceram a dois princípios básicos, cruzando-os entre si: o princípio da simplicidade e o princípio da generalidade, ambos observados no objeto de estudo de cada ciência. Na base da pirâmide científica que ele estabeleceu encontrava-se, antes de tudo, a Matemática, posto que ciência algum lhe superaria em termos de simplicidade e generalidade; à Sociologia coube o posto mais elevado, porque seu objeto de estudo consistia em ser o mais complexo e menos geral ? a saber, as relações sociais.
O convívio de Sílvio Romero com o Positivismo de Comte ocorreu, sobretudo, em fase tenra de sua vida intelectual; não demorando para ser ofuscado pela escolha que fez em favor do evolucionismo de Spencer. De qualquer modo, de Comte a sociologia de Sílvio Romero tem como marca sua inclinação a compor um quadro geral das ciências modernas. Se, nesse aspecto, ele não sofreu influência direta de Comte (o que se duvida), não escapou de tal necessidade ? se não a viu reforçada em espírito - quando adotou a sociologia de Spencer e, mais tarde, a de Le Play.
Para essa tarefa Comte concebia a Filosofia como um ramo do saber humano, cuja função seria a de meramente classificar as ciências. Sílvio Romero lhe seguiu os passos. O pensador sergipano esboçou a sua classificação das ciências, portanto, inspirado não só no evolucionismo de Spencer, mas no positivismo comteano. O arranjo taxonômico proposto por Sílvio Romero obedeceu a um critério que Comte e Spencer, cada um a seu modo, estabeleceram para classificar as ciências. Esse critério foi o grau de complexidade crescente apresentada pelas ciências. Para Sílvio Romero, a Matemática e a Lógica, devido à generalidade absoluta encerrada em seus respectivos objetos de estudo, serviriam como disciplinas propedêuticas, isto é, ramos do saber que garantiriam somente os fundamentos necessários ao conhecimento das demais ciências. Para efeito de classificação, essas se dividiriam em ciências naturais e ciências humanas, embora fossem, em certa medida, complementares.

Em defesa da sociologia

Sílvio Romero foi o primeiro pensador brasileiro a defender a sociologia, destacando-lhe um estatuto científico próprio, cujos critérios teóricos e metodológicos de abordagem do objeto não poderiam ser idênticos aos das ciências naturais. A preocupação de Sílvio Romero em sistematizar a investigação sociológica no Brasil tem sido explicada não só pela influência inicial que sofreu das idéias de Comte, como, em seguida, das de Spencer e, ulteriormente, de Le Play. Seu debate teórico com o mais célebre dos representantes da Escola de Recife, Tobias Barreto, é tido como outro fator a explicar sua inclinação a temas de organização científica da sociologia.
Para alguns, essa discussão com Tobias Barreto basta como fator causal. Alegam que se não fosse pela importância intelectual de Tobias Barreto no cenário nacional, Sílvio Romero talvez não tivesse se dedicado a uma ampla e fundamentada defesa da sociologia, ainda no final do século XIX. Primeiro, veja os termos dessa discussão entre esses dois expoentes da Escola de Recife. Tobias Barreto ataca a sociologia (à época, positivista), por não considerá-la uma ciência, afinal, o campo de atuação desta não era o investigativo, como o das ciências naturais, mas o normativo. A seu ver, a função da sociologia não ia além de organizar o conjunto de normas essenciais que deviam regular a vida dos homens nos mais diversos meios sociais (CÂNDIDO, 2006).
Logo, não cabia à sociologia investigar a realidade social, mas aplicar os corretivos morais necessários por meio do ensino, educando espiritualmente a sociedade ou parte desta. Por fim, explica que as leis sociais eram divergentes das naturais, visto não serem, como estas, regidas pelo princípio do determinismo. Sem esse princípio mecânico, as leis sociais eram, na verdade, indefinidas. Tobias Barreto queria dizer que, em razão de os fatos sociais pertencerem "a uma esfera ?mecanicamente inexplicável?" (CÂNDIDO, 2006, 273), era inviável conceder à sociologia o status científico (PAIM, 2005). Em suas palavras: "[...] Enquanto não se provar ser a vontade humana uma força motriz, como o calor ou a eletricidade, a sociologia nada vale" (In RODRIGUEZ, 2010).
A resposta, à altura, dada por Sílvio Romero se encontra em seus "Ensaios de Filosofia do Direito", obra publicada em 1895. Se os fatos sociais não se enquadravam no método científico tradicional, deviam pertencer, então, a outra ordem de realidade orgânica, contra-argumentou. Na verdade, sob influência de Spencer, sua concepção de ciência social não mais se limitava aos marcos teóricos positivistas, em grande parte, abandonados no começo de sua trajetória intelectual.
Sílvio Romero torna-se adepto do evolucionismo social de Spencer, ocasião em que passa a refletir sobre a evolução cultural e institucional do Brasil. Procurando encontrar os elementos mais simples que serviriam de base para o desenvolvimento de um organismo social mais complexo, Sílvio Romero vê na religião, economia, estética, ciência e política os cinco fatos culturais básicos encontrados em qualquer sociedade sob investigação sociológica.
A sociedade brasileira, apesar de ter sido por três séculos, colônia portuguesa, passou a ser concebida como resultante de um processo histórico de diferenciação social e cultural, que lhe permitiu adquirir singularidade. Segundo Romero, "A diferenciação brasileira, no intuito de formar um tipo novo, é reforçada por fatores mesológicos e etnográficos, diversos dos da península hispânica" (In: PAIM, 2005).

A sociologia da cultura

Se a sociologia de Le Play ganhou, no Brasil, alguma projeção, isso se deveu, principalmente, a Sílvio Romero, que adotou daquele o "método monográfico". Esse método resultou do interesse sociológico de Le Play pelo estudo de um e não vários temas, que, até então, recebiam dos estudiosos um tratamento superficial, para não dizer também confuso. Pelo fato de o método monográfico permitir ao pesquisador conhecer a fundo um único tema, tornou-se um procedimento modelar para as pesquisas sociológicas empreendidas por Sílvio Romero. E talvez mais do que as grandes sínteses teóricas fornecidas por Comte ou Spencer, Le Play e seus discípulos deram enorme contribuição para pesquisas sociológicas aplicadas, a partir de então, no Brasil.
A finalidade primordial da sociologia de Sílvio Romero era abordar a cultura brasileira a partir de um enfoque multicausal, sem, contudo, deixar de privilegiar os fatores naturais (CÂNDIDO, 2006; RODRIGUEZ, 2010). Para ele, as manifestações culturais brasileiras se encontravam sob o efeito multissecular de um concurso de fatores.
Na visão de estudiosos, justificava-se aí considerar sua abordagem teórica uma sociologia da cultura ou, nos termos da época, um "culturalismo sociológico". Sílvio Romero, segundo Rodriguez (2010), "praticou a análise crítica tomando a literatura como produto do meio, como documento que revela o meio social, e como decorrência da personalidade do autor, esta também condicionada pelas influências externas (meio, raça)".
Paim (2005) diz que "Sílvio Romero iria eliminar a antítese entre cultura e natureza para reduzir a primeira à última e dar à investigação caráter meramente científico". Assim, a abordagem sociológica de Sílvio Romero, senão excluía, subordinava a evolução da cultura brasileira a fatores naturais, como raça e meio (PAIM, 2005; CÂNDIDO, 2006).
Sílvio Romero reconhece a importância da cultura brasileira, embora entendesse que o meio geográfico e a disposição biológica das "raças" fossem os grandes móbeis delineadores da formação e desenvolvimento da nação brasileira, marcando sua singularidade por uma tão prolongada e intensa miscigenação. Como conseqüência, preparou o método sociológico que o guiaria em seus estudos literários.
A análise sociológica de Sílvio Romero se processou por meio da apropriação criteriosa e paulatina de idéias, cuja fonte inaugural, certamente, foi o positivismo de Comte, mas que logo se adensaram quando, em parte, as de natureza positivista deram lugar às evolucionistas e, por fim, sem que indicassem uma opção excludente em relação às anteriores, fez uso das idéias de Le Play, sobretudo no que concerne ao método monográfico e à valorização científica de elementos culturais observados do cotidiano social.
Foram-lhe estas idéias determinantes para enveredar sua sociologia pelo campo literário, onde também estão encarnadas as manifestações culturais mais espontâneas da sociedade brasileira. Assim, com a publicação de História da Literatura Brasileira, Silvio Romero tornou-se um dos primeiros a desenvolver estudos específicos no campo da Sociologia da Cultura, mas pioneiramente no da Sociologia da Literatura (poesias, contos, romances etc.).

Conclusão

Sílvio Romero foi um pensador social coerente com seu propósito de construir uma teoria geral sobre o Brasil, abandonando de público parte do Positivismo comteano e tornando-se, não sem alarde, adepto do Evolucionismo de Spencer, veio ser ainda o primeiro a divulgar a sociologia leplayana no Brasil. Legou de Comte a prática de sistematizar o campo das ciências; de Spencer aproveitou a tese da conciliação entre ciências naturais e humanas, já que tanto a natureza quanto a sociedade seriam regidas pelo mesmo princípio de evolução ? pois esse consiste no aumento da diferenciação (heterogeneidade crescente) dos organismos naturais e sociais; e de Le Play, o método monográfico, o que, sem embargo, permitiu-lhe estudar uma série de aspectos a influírem direta e indiretamente na conformação ou transformação de um fenômeno social.
Em meados do século XIX, mais precisamente em 21 de abril de 1851, nascia Sílvio Romero na cidade sergipana de Lagarto, um dos intelectuais mais notáveis do último quartel do século XIX, cuja influência duradoura foi vista em gerações de intelectuais muito afastadas de seu tempo. Crítico, ensaísta, folclorista, professor, político e historiador da literatura brasileira, foi, com pena em punho, um combativo pensador. Seu desaparecimento em 1914 teria sido o único meio de fazê-lo calar, sem evitar que, por todo o século XX e até os dias atuais, suas idéias reverberassem no seio das ciências humanas. Ainda se duvida que Sílvio Romero seja um pensador clássico da sociologia brasileira? Espera-se que as resistências a tal idéia sejam menores.

REFERÊNCIA

CUIN, Charles-Henry; GRESLE, François. História da sociologia. São Paulo (SP): Cadernos Ensaio, 2004.
GUIMARÃES, Antº Sérgio A. Classes, raças e democracia. São Paulo (SP): Ed. 34, 2002.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Teorias sociológicas. Rio de Janeiro (RJ): Forense, 1972.
HOUAISS. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. 2009.
PAIM, Antº. Introdução In: Populações Meridionais do Brasil. Oliveira Viana. Brasília (DF): Senado Federal, Conselho Editorial, 2005.
RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Sílvio Romero. Fonte: http://www.ensayistas.org Acesso em: 13 de maio de 2010.
SOBRE SÍLVIO ROMERO. Biografia. Fonte: http://www.doutrina.linear.nom.br Acesso em: 27 de maio de 2010.

Notas
____________________
[1] Apesar de Comte ter elaborado outro termo (sociologia) para definir a nova ciência responsável pelo estudo da sociedade, por força da necessidade de ter que distingui-la de outra área de estudo, como a da Estatística, denominada por Quetelet de Física Social (GUSMÃO, 1972). Apesar disso, Comte manteve os mesmos princípios da física moderna no que tange à formulação metodológica da sociologia. Fato criticado por Tobias Barreto (PAIM, 2005; CÂNDIDO, 2006; RODRIGUEZ, 2010).
Autor: André Pureza


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