SOCIOLOGIA POLÍTICA DE OLIVEIRA VIANA




Profº André Pureza

Nos últimos anos, o pensamento social de Oliveira Viana (1883-1951) tem obtido maior visibilidade no campo das Ciências Sociais, como reflexo do aumento do número de estudos sobre o seu legado sociológico. Esse número crescente de análises do pensamento social de Oliveira Viana levou em conta tanto o contexto histórico-social em que suas idéias foram elaboradas, como, em tempos posteriores, quando postas à prova diante de transformações conjunturais, sobretudo, na relação do Estado com a sociedade civil. O interesse acadêmico por seu postulado teórico, portanto, não é injustificado.
As polêmicas geradas pelas idéias sociológicas de Oliveira Viana (acerca das discussões em torno da pauta relativa à questão das instituições políticas constituídas ao longo da história da formação social brasileira) fizeram-no ocupar, para determinados estudiosos, um lugar no panteão de intelectuais conservadores brasileiro. Afora isso, sua vasta produção sociológica, durante quase trinta anos, ou seja, desde a publicação de sua primeira obra "Populações Meridionais do Brasil" (1920) até a última e mais madura "Instituições Políticas Brasileiras" (1949), comprova a coerência de Oliveira Viana com relação à sua forma de pensar o Brasil.
De certo modo mal compreendido, Oliveira Vianna foi e ainda é considerado apenas um vivaz ideólogo do Estado Novo, isto é, um teórico favorável à hipertrofia do poder estatal, durante a Era Vargas, face às condições históricas em que se encontrava a sociedade brasileira. Esta, ao seu ver, ainda não se encontrava plenamente amadurecida para adotar e gozar de um modelo político inspirado no Constitucionalismo Liberal. O agravo, antes de tudo, estava na habitual inclinação da intelectualidade brasileira de então a apropriar-se, indevidamente, de um conjunto de idéias políticas, econômicas e sociais estrangeiras pouco ou nada condizentes com o contexto brasileiro.
Na verdade, fatos históricos de grande monta, como as revoluções liberais ocorridas na Europa, desde fins do século XVIII, e a implantação do regime democrático norte-americano, após a Independência de 1776, influíram poderosamente sobre a mentalidade política das elites provincianas, sobretudo sul-americanas. No Brasil, esse fenômeno não fugiu à regra. A principal crítica que pesava contra parte da elite intelectual brasileira era o fato de esta (cujas idéias eram tidas como progressistas) ter-se inebriado ao tomar de empréstimo fórmulas de explicação sociológica correspondentes a realidades bem distintas da brasileira. Se, a partir do final do século XIX, o ideário liberal acabou por contagiar a nascente classe média e a elite intelectual e política do país, seus efeitos, contudo, não extrapolaram os lindes da mera retórica republicana mourejada até o fim do regime monárquico¹.
Concorrendo com essa visão romântica e um tanto utópica da intelectualidade brasileira, Oliveira Viana foi coerente com seu pensamento sociológico ao defender um Estado forte onde faltava à sociedade civil o tino necessário para desenvolver a contento as instituições democrático-burguesas nos moldes europeu ocidental e estadunidense. Uma leitura apressada das idéias de Oliveira Viana conduziria o leitor a atribuir a ele uma sociologia pouco ou nada comprometida com mudanças sociais objetivas necessárias à melhoria da condição de vida da população mais desassistida material e culturalmente. Seria errôneo acreditar que fosse este apenas o horizonte em que se limitou a perspectiva sociológica de Oliveira Viana.
Se, por um lado, é sabido que a obra de Oliveira Viana não está desvinculada de compromissos ideológicos característicos do pensamento social conservador², principalmente contra os apologistas liberais. Se não se pode negar a Oliveira Viana essa condição de intelectual orgânico das classes econômica e politicamente dirigentes do país, por outro, é de conhecimento igualmente amplo (embora somenos ponderado por parte dos críticos) o fato de ele ter divergido de pensadores sociais conservadores, em razão de estes assentirem a manutenção incondicional de um poder político soberbamente centralizado e, por conseguinte, verem como "natural" a vigência de um Estado discricionário e policialesco, que sufocava, não raro, as manifestações mais espontâneas da sociedade civil.
Se Oliveira Viana divergia de quem assim defendia o Estado era porque concebia o autoritarismo estatal uma versão provisória, mesmo que este caráter provisório tenha durado mais de um século, desde a Independência do país. Não foi por coincidência, para Oliveira Vianna, que o descompasso anacrônico dos intelectuais brasileiros tenha ocorrido, sobretudo, após a independência política do país. "Para ele, diz Vieira (1976), os 'velhos capitães-generais' tinham o 'sentimento das nossas realidades' que 'desapareceu das 'nossas classes dirigentes', pois 'há um século vivemos politicamente em pleno sonho'", referindo-se à crítica de O. Vianna à influência negativa, porque apressada, do liberalismo na mentalidade da elite vanguardista brasileira desde a metade do século XIX.
Por conta disso, no dizer de Ricardo Silva: "[...] as instituições do Estado autoritário, elaboradas e justificadas em diferentes momentos [...] [da] obra [de Oliveira Viana], são compreendidas como ?meios? (ou meros ?instrumentos?) para a realização de determinados fins; mais ainda: tais instrumentos teriam caráter transitório, devendo ser abandonados após a plena realização dos fins almejados". Os "fins almejados" eram o desenvolvimento das instituições liberais, por meio das quais o país adentraria o hall das nações livres e modernas. Nesse sentido e apenas nesse, pode-se dizer que, na concepção sociológica de Oliveira Viana, os fins justificariam os meios. É por isso que o pensamento sociológico desse intelectual é tido por certos analistas de renome como defensor do "autoritarismo instrumental". O Estado autoritário, usado nesse caso como instrumento para garantir, posteriormente, à sociedade civil o pleno gozo da liberdade política, econômica e cultural. Portanto, o autoritarismo transitório do Estado é um elemento que não está presente no pensamento conservador brasileiro, de modo a singularizar a sociologia política de Oliveira Viana.
Vale ressaltar que, no Brasil, a história do pensamento social conservador se distingue, mais ou menos, pela coexistência de três correntes de idéias que versam sobre o autoritarismo estatal. Essa distinção foi feita, a propósito, por Wanderley Guilherme dos Santos, segundo esclarece Ricardo Silva: "Com a justa preocupação em distinguir entre as diferentes modalidades do pensamento autoritário [...], [Wanderley Guilherme dos] Santos observa que, além do autoritarismo justificado com argumentos éticos e naturalistas (como o dos integralistas) e do autoritarismo justificado por razões de ordem histórico-estrutural (Azevedo Amaral e Francisco Campos, por exemplo), havia uma terceira corrente de pensadores autoritários que, diferentemente das duas primeiras, via no ?sistema político autoritário? apenas um meio para se chegar a uma ?sociedade liberal?". É nessa terceira corrente que se enquadraria a leitura sociológica de Oliveira Viana. Mas este pensador não era uma vox clamantis in deserto (uma voz que clama solitariamente).
Antes mesmo de iniciar o século XX, houve quem propugnasse o autoritarismo instrumental, sobretudo após a independência política do país (1822). Inspirando-se nessa concepção de um poder estatal transitoriamente autoritário, havia tanto na elite imperial, quanto na republicana, quem orientasse sua conduta política nesse sentido, fazendo daquela concepção uma espécie de "credo". Foi, contudo, mais tarde, durante e após a década de 1930, que o autoritarismo instrumental ganharia mais adeptos no Brasil. A respeito de Oliveira Viana, Paim (in Viana, 2005, p. 20) comenta a importância de seu pensamento social favorável a essa perspectiva diferenciada do ideário conservador brasileiro: "Dentre as personalidades que soube atrair para sua órbita, Vargas contou com a colaboração de Oliveira Viana (1883/1951), que representa fenômeno mais complexo e que ele mesmo procuraria identificar como uma linha de continuidade de determinada tradição. Trata-se de uma linha modernizadora, por meio do fortalecimento do Poder Central, que encontraria expressão acabada no Segundo Reinado. Tem algo a ver com o autoritarismo, mas a este não se reduz".
Isso se explica pelas condições históricas terem ensejado e, de certo modo, até requerido um Estado forte, que regulasse a economia nacional face a um contexto econômico mundialmente em crise. Com a quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, a ideologia liberal cai em descrédito generalizado: o mercado deixou de ser visto como promotor do bem-estar social; o "livre-mercado" tornou-se uma ilusão, porque não podia mais nortear o desenvolvimento das sociedades industriais. O Estado passou a ter maior ingerência na economia, inclusive, das sociedades capitalistas mais desenvolvidas. As duas guerras mundiais (mas, sobretudo, a segunda) permitiram que países da periferia do capitalismo sedimentassem, finalmente, seu processo de industrialização, livres que estavam momentaneamente da implacável concorrência da grande indústria européia (esfacelada em virtude dos conflitos bélicos durante os de 1939 e 1945). O papel discricionário do Estado, nesse contexto, teria sido o expediente encontrado por determinados países do mundo subdesenvolvido, como o Brasil, para consolidarem a própria indústria, até então, incipiente.
Apesar de certa indefinição quanto ao papel histórico das classes socais urbanas no Brasil, após a década de 1930, a sociedade civil se tornou uma entidade social cada vez menos abstrata, face ao que o Estado não desconsiderou seu potencial político, tanto que ele tratou de reforçar ou mesmo criar mecanismos de controle social mais contundentes e duradouros. Dentre os aspectos observados, estariam: 1) a formação de grandes centros urbanos; 2) o aumento demográfico impulsionado pelo êxodo rural; 3) a legislação trabalhista iniciada no período Vargas; 4) a criação de órgãos de imprensa e instituições universitárias; 5) a regulamentação de um sufrágio universal estendido, finalmente, às mulheres.
Assim, antes de ganharem proeminência, a partir da Era Vargas, as bases do autoritarismo instrumental estavam ideologicamente assentadas nas reflexões sociológicas de Oliveira Viana, conforme análise reiterada de Ricardo Silva: "Oliveira Vianna expressou pela primeira vez, tão clara e completamente quanto possível, o dilema do liberalismo no Brasil. Não existe um sistema político liberal [...] sem uma sociedade liberal. O Brasil [...] não possui uma sociedade liberal, mas, ao contrário, parental, clânica e autoritária. Em conseqüência, um sistema político liberal não apresentará desempenho apropriado, produzindo resultados sempre opostos aos pretendidos pela doutrina. Além do mais, não há um caminho natural pelo qual a sociedade brasileira possa progredir do estágio em que se encontra até tornar-se liberal. Assim, concluiria Oliveira Vianna, o Brasil precisa de um sistema político autoritário cujo programa econômico e político seja capaz de demolir as condições que impedem o sistema social de se transformar em liberal. Em outras palavras, seria necessário um sistema político autoritário para que se pudesse construir uma sociedade liberal [...]".
Eis a razão pela qual, atualmente, não se pode negar a Oliveira Viana o valor de pensador clássico das ciências sociais no Brasil, sobretudo por oferecer uma teoria-modelo para enfrentar problemas pertinentes tanto à forma como as instituições sociais e políticas se organizam, quanto às condições históricas em que a riqueza social vem à lume no processo de trabalho e, por conseguinte, é desigualmente dividida entre os grupos organicamente ligados de maneira diversa à esfera da produção social. Lê-se, por fim, um trecho do estudo de Ricardo Silva, segundo o qual: "Na história do pensamento político brasileiro do século XX, poucos autores têm reunido tão amplamente as condições [...] [que justifiquem o] qualificativo de "clássico" do que o sociólogo e historiador fluminense Francisco José Oliveira Vianna. Suas idéias tiveram impacto quando originalmente difundidas e revelaram persistência em épocas seguintes, constituindo-se, até os dias atuais, em objeto da atenção de historiadores das idéias e cientistas sociais das mais diversas orientações".


REFERÊNCIA

SILVA, Ricardo. Liberalismo e democracia na sociologia política de Oliveira Vianna. Fonte: http://www.scielo.br/ Acesso em: 26/02/10.
TORRES, João Camilo de O. Interpretação da realidade brasileira: introdução à história das idéias políticas no Brasil. São Paulo (SP): José Olympia, s. d.
VIANA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Brasília (DF): Senado, 2008.
VIEIRA, Evaldo Amaro. Oliveira Vianna & o Estado corporativo: um estudo sobre sobre corporativismo e autoritarismo. São Paulo (SP): Grijalbo, 1976.



Notas
______________________________________
[1] Cita-se, como exemplo disso, o "ideólogo do república", Alberto Sales, que "Chegou, mesmo, a escrever que não se justificava o debate", após a Proclamação da República (1889), revelando a contradição da ideologia liberal às mãos de intelectuais brasileiros tidos como progressistas. TORRES (s.d., p. 8) arremata, dizendo: "Quer dizer: quando discutir formas de governo era uma arma contra o Império, o tema era importante; quando poderia conduzir a pôr em dúvida a República, não interessava".
[2] Conforme a análise de Paim (in VIANA, 2005, p. 19), segundo a qual "O elemento mais característico de nosso período republicano [...] é, sem dúvida, a ascensão do autoritarismo político. Durante largo período, trata-se apenas de prática autoritária", Oliveira Viana segue essa linha de pensamento social, inspirado, dentre outros, em Alberto Torres e Sílvio Romero. Paim (2005) faz lembra ainda que o "castilhismo" foi a primeira corrente do pensamento conservador brasileiro no século XX, como permitem interpretar suas palavras: "Inspirando-se em [Augusto] Comte, Júlio de Castilhos (1860/1903) dotou o Rio Grande do Sul de instituições aberta e fragmentariamente autoritárias. A prática de três decênios, sob a batuta de Borges de Medeiros (1864/1961), permitiu aprimorá-las e formar uma elite altamente qualificada, votando o mais solene desprezo pelo liberalismo. Essa elite é que chegaria ao poder com a Revolução de 30. A ascendência de Getúlio Vargas (1883/1954) durante os anos trinta e a implantação do Estado Novo correspondem à vitória e à consagração do castilhismo (PAIM In: VIANA, 2005, p. 19-20)".
Autor: André Pureza


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