NOTAS SOBRE O EVOLUCIONISMO JURÍDICO DE NINA RODRIGUES





"[Os negros] se diluirão na população branca e estará tudo terminado" ? Nina Rodrigues

Durante toda a Primeira República (1889-1930), não houve no país pensador social com maior destaque nos estudos raciológicos do que o médico-legista maranhense Raimundo Nina Rodrigues. Se há exagero em considerá-lo uma espécie de Gobineau à brasileira, o mesmo não se vê na insígnia de pai do racismo científico brasileiro (FILHO, 2005; ARAÚJO, 2007, CÂNDIDO, 2006). Nina Rodrigues escapa ao epíteto de gobineau brasileiro em virtude de não nutrir aversão pela população negra, nem indígena, tampouco mestiça; mas em virtude de ter manifesto de modo escrupuloso seu racismo ? um racismo, na crítica de Moura (1988), "mitigado".
O pensamento raciológico de Nina Rodrigues esteve orientado, como no da maioria dos intelectuais brasileiros de sua época, pelo princípio da objetividade científica. Afirmou dispensar certa simpatia à população "inferior" de qualquer matiz, visto não se encontrar seu parecer condicionado a ranço algum (RODRIGUES, 2008). Diz, inclusive:
Se a ciência não pode [...] deixar de considerar como fator sociológico os prejuízos de castas e raças, em compensação nunca poderão estes influir nos seus juízos. Aliás, tais prejuízos [preconceitos raciais] não existem no Brasil (RODRIGUES, 2008, 22, grifo nosso).
Mesmo que não tenha escapado, como o restante da intelectualidade brasileira, à contradição de ter, com suas pesquisas, colaborado para reforçar a indiferença das autoridades públicas ao estado de abandono em que se encontrava a população negra, indígena e mestiça, Nina Rodrigues foi quem inaugurou, no Brasil, as reflexões antropológicas sobre os negros, antes mesmo de findar o século XIX.
O interesse pelo estudo do pensamento social de Nina Rodrigues se deve à necessidade de conhecer o quadro histórico mais abrangente em que se situa a intelectualidade brasileira de então; além do fato de lidar com um dos estudiosos menos prestigiados da fase preliminar da constituição da sociologia brasileira, e, no entanto, pertence Nina Rodrigues ao grupo de especialistas denominado, mais tarde, por Cândido (2006) de "precursor" do pensamento sociológico brasileiro.
Os primeiros estudos etnográficos de Nina Rodrigues foram publicados em seu principal livro "As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil", vindo à lume em 1894 ? obra maior de seu pensamento sociológico. Parte dos artigos publicados nas revistas científicas Gazeta Médica do Brasil e Brasil Médico foi reunida, por conseguinte, em dois livros: "O animismo fetichista dos negros bahianos" (1896) e "As coletividades anormais" (1901). Diz Telma Araújo: "Muitos desses artigos discutiam a questão criminal e questionavam a igualdade na implementação da lei penal ? as ?raças inferiores? não possuem capacidade para guiarem-se livremente. Com essa argumentava contra o livre-arbítrio e pedia a reformulação das leis penais [...]" (ARAÚJO, 2007, 113).
Se a Escola de Recife aventou preocupações quanto aos problemas filosóficos e sociológicos do atraso sócio-econômico nacional, para cuja explicação recorreu-se também ao fator raciológico, a Escola Tropicalista Baiana, antes limitada a estudos de doenças tropicais, obteve, com a colaboração de Nina Rodrigues, maior notabilidade acadêmica em razão dos estudos etnográficos e fisiológico-anatômicos desenvolvidos por esse pensamento. Por outro lado, Nina Rodrigues muito se beneficiou desses veículos, pois foi na Escola Tropicalista Baiana que seus trabalhos:
"[...] começaram a ter uma maior divulgação e muitas de suas colocações e alinhamentos teóricos consolidaram [...] [a perspectiva] de uma medicina voltada para a autópsia, para a psiquiatria e para os estudos anatômicos patológicos" (ARAÚJO, 2007, 113)
Nina Rodrigues foi o primeiro a desenvolver pesquisas na área da Medicina Legal no Brasil, como forma de auxiliar suas pesquisas na área da Antropologia criminal. Nesse campo interdisciplinar, ele operacionalizou um conceito-chave: raça, e em torno do qual orbitaram outros conceitos: hereditariedade, mestiçagem, degenerescência (ARAÚJO, 2007). O objetivo fundamental de Nina Rodrigues consistia em aplicar à realidade brasileira o lombrosismo, isto é, as idéias científicas postuladas pelo italiano César Lombroso para o estudo de fenômenos criminais.
As reflexões de Nina Rodrigues não estiveram sob o influxo teórico apenas da Escola Criminal antropológica. Notam-se Darwin, Spencer e Comte como fontes recorrentes de seu pensamento. Da apropriação e reformulação teórica da massa de idéias reunida desses pensadores, Nina Rodrigues desenvolveu um tipo de evolucionismo jurídico, pois, através dos estudos necrológicos e antropológicos elegeu como seu objeto de pesquisa o código penal brasileiro a ser "baseado nos princípios de comparação evolutiva das vertentes étnicas" (ARAÚJO, 2007, 118).
Nina Rodrigues defendia a reforma do Direito Penal, posto que esse ordenamento jurídico criminal não dava um tratamento diferenciado a crimes e penas em função de fatores raciológicos. Argumentava que a pena deveria ser abrandada para a população racialmente inferior: negros, índios e, em grau menor, mestiços. O fator biológico (raça) e o mesológico (meio físico) isentariam o indivíduo criminoso da acusação de dolo, porque o mesmo não parecia ter a mesma consciência jurídica adquirida por quem pertencesse a povos mais evoluídos, como os da civilização europeia (ARAÚJO, 2007).
Em obras como O alienado no direito civil brasileiro (1901), Nina Rodrigues defendeu que as populações racialmente inferiores deveriam ser gradualmente inimputáveis, à medida que estavam sujeitas ao processo de miscigenação, cujo resultado fosse o distanciamento dos parâmetros raciológicos do branco. Daí a necessidade de reformular o Código Penal, por meio do amparo da pesquisa etnográfica que apontaria as peculiaridades criminológicas de cada contexto regional onde as disposições raciológicas da população deveriam ser naturalmente correspondentes.
Para Nina Rodrigues, a solução apresentada pelos pensadores republicanos não foi convincente, principalmente em razão de que os benefícios jurídicos prometidos e, em alguns aspectos realizados, não se converteram em benefícios materiais para as camadas populares. Não raro, teóricos liberais eram acusados de destituídos de senso de realidade nacional. Como Alberto Torres e Oliveira Viana, Nina Rodrigues nutria o mesmo sentimento de reserva. Araújo (2007, 111) diz, inclusive: "O sentido de liberdade, lema da Revolução Francesa, foi bastante difundido pelos liberais brasileiros deste período [último quartel do séc. XIX], e trazia consigo a noção de que não existia liberdade se o povo não possuía consciência de seus direitos e seus deveres". A tese de que a conscientização política das massas incultas e racialmente inferiores poderia ocorrer por meio da difusão do ensino público, como pensava Manoel Bomfim, era algo ineficaz, senão estranho, na visão de Nina Rodrigues.
Se a inferioridade racial, manifesta na compleição física desproporcional, assim como no baixíssimo nível de inteligência dos grupos indígena e negro, e a cada processo de miscigenação se acentuava a degenerescência rácica da população brasileira, Nina Rodrigues não era otimista com a estratégia republicana de usar a educação para fazer com que tais grupos saltassem do estágio mais inferior da escala evolutiva das sociedades humanas, a selvageria, para a mais desenvolvida, a civilização (ARAÚJO, 2007). Araújo (2007) resume a crítica de Nina Rodrigues aos liberais:
[Nina Rodrigues] criticava a forma de punir do código penal da época, que se baseava no livre-arbítrio. Além do mais, o ?germen? da criminalidade encontrava-se fecundo na degenerescência do mestiçamento, no impulso dominante das raças inferiores e [quando somados às] [...] doutrinas fundamentadas no livre arbítrio [...] [teriam] ?por força [de] vir a provir o crime em vegetação luxuriante, tropical verdadeiramente? (ARAÚJO, 2007, 126).
Para Nina Rodrigues, negros e índios eram povos não adaptáveis à civilização capitalista, via-os condenados em estágios precedentes ao alcançado pela civilização europeia. Segundo ele, na constituição das raças inferiores, especialmente negra, "A sobrevivência criminal é um caso especial de criminalidade, que se poderia denominar étnica". Percebe-se em sua argumentação o peso teórico de um evolucionista como Edward Tylor, de quem se apropriou da noção de "sobrevivência". Dentre as características dos grupos etnicamente atrasados, destacavam-se a imprevidência e a impulsividade, ambos também encontrados, em grau menor, nos grupos mestiços.
Se apenas, em parte, Nina Rodrigues se afastou de Sílvio Romero, por este acreditar na miscigenação dirigida pelo Estado brasileiro (priorizando o ingresso massivo de teutões), levaria ao branqueamento da população brasileira; dizia, na outra, que os negros não subsistiriam, a não ser sob a tez amorenada de um povo em elevado processo de miscigenação. Embora, no geral, Nina Rodrigues fosse favorável a atribuição de um processo natural mais do que de todo artificialismo das políticas demográfico-raciológicas do governo, via-se, às vezes, contraditoriamente ou não, inclinado à tese do branqueamento, quando sustentava o prognóstico corrente em sua época: os negros existentes "se diluirão na população branca e estará tudo terminado" (RODRIGUES, 2008, 22). Mais seguramente, divergiu de José Veríssimo, por não acreditar na conversão civilizadora que a educação pública seria capaz de acarretar àquela gente de corpo mal talhado pela mistura de séculos e de inteligência embotada, dado o rasgo cultural estrangeiro transplantado para a sociedade brasileira.
Vê-se, então, porque a ala progressista da Inteligência brasileira, liberal-democrata, encampando por meio século a luta abolicionista, se tornou, metaforicamente falando, marola perto da onda de cientificismo que se agigantou no crepúsculo de 1800, logo após a Abolição da Escravatura. Nada havendo que penetrasse mais fundo no espírito dos homens de ciência e, sobretudo, dos que se encarregaram da formulação das políticas de Estado no país, que não tivesse impregnado de um vezo raciológico. Tanto que um dos principais temas da intelectualidade da época (como integrar o negro livre na sociedade brasileira?) deixou de o ser quando pensadores brasileiros encontraram no lombrosismo e no evolucionismo spenceriano o que lhes serviu de argumento em prejuízo dos negros libertos.
A maioria dos intelectuais da Primeira República passou a encarar como razoável a nulidade das ações com tendência igualitária, pois por mais que o governo e a sociedade reunissem recursos científicos e financeiros para mudar o quadro social, cultural e econômico calamitoso das populações etnicamente inferiores seria um tanto em vão. O que lhes serviu de base argumentativa foi a alegação de que a própria psicologia das raças não-europeias impediria a feliz conclusão de um processo ainda em curso de civilização dos grupos etnicamente inferiores.
Adiou-se, com isso, o enfrentamento real do problema da não integração da população negra, indígena e mestiça, uma espinhosa questão que a sociedade brasileira procrastinou, por décadas, para além da Primeira República, sem solução. Durante esse período, constatou-se o tanto de pessimismo que aquelas teorias europeias provocaram em grande parte dos intelectuais brasileiros, de tal sorte que aquelas alternavam ora em consonância com um reacionarismo eurocêntrico, ora com uma resignação fatalista.

Considerações Finais

No Brasil, Nina Rodrigues fez escola. Após sua morte, teve suas obras republicadas por seus discípulos, que, inclusive, criaram um centro de pesquisa para difusão de seu pensamento chamado Escola Nina Rodrigues. Desses discípulos, Afrânio Peixoto e Arthur Ramos granjearam maior destaque. Sua obra póstuma, "Os africanos no Brasil", inédito até então (tornando-se uma referência, não menos importante, aos estudos histórico-antropológicos sobre a população negra instalada no país) foi, no começo de 1930, a expressão derradeira e limítrofe de um tipo predominante de pesquisa etnográfica afro-brasileira, comum desde o final do século XIX. O fato é que o pensamento antropológico de Nina Rodrigues vem ser ? se aquilatado na sua justeza ? mais um exemplo do que Cândido (2006) havia dito sobre os pensadores da fase pré-científica da Sociologia Brasileira: as teorias sociais advindas da Europa, ao contrário do que muito levianamente se afirmou, não foram, no todo, passivamente aceitas pelos pensadores brasileiros.


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Telma R. da S. Sob a luz do livre arbítrio: raça, mestiçagem e criminalidade. In: José Veríssimo: raça, cultura e educação. Sônia Mª da S. Araújo (org.) Belém (PA): EDUFPA, 2007.
CÂNDIDO, Antônio. A sociologia no Brasil. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 18, n. 1. Jul., 2006, p. 271-301.
FILHO, Enno D. Liedke. A sociologia no Brasil: história, teorias e desafios. Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 14, jul./dez., 2005, p. 376-437.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo (SP): Ática, 1988.
RODRIGUES, R. Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo (SP): MADRAS, 2008.


Autor: André Pureza


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