Natação para deficientes visuais



NATAÇÃO PARA DEFICIENTES VISUAIS

profa. Dra.Maria Cecília L.M. Bonacelli
Faculdade Einsten de Limeira
Faculdade Integração Tietê


Resumo:

Acreditamos que a natação pode colaborar desde a melhora das capacidades físicas como também nas relações sociais entre as pessoas, quando se trabalha a percepção corporal. Sabemos que as pessoas deficientes visuais, muitas vezes são privadas das oportunidades de praticar uma atividade física, por excessos de cuidados ou mesmo pela falta de oportunidades.
Tal proposta se organiza dentro da perspectiva da corporeidade, como critério para legitimar o conhecimento sensível e a relação corpo e meio envolvente, no caso a água.

Palavras-chave: natação, corporeidade e deficiente visual.

Introdução:

A escolha do tema para este artigo, está relacionada com necessidade de produzir e compartilhar conhecimentos a respeito da importância da natação para o desenvolvimento da percepção corporal em deficientes visuais.
A aprendizagem da natação, na perspectiva da corporeidade, tem a seguinte concepção: uma aprendizagem onde os movimentos não sejam preestabelecidos, dados como prontos. A teoria da corporeidade diz respeito à humanização do sujeito, para que este venha a ser um sujeito-ativo e não um objeto-passivo da história e da cultura.
Na sociedade contemporânea, cada vez mais as pessoas se encontram por meio de interfaces em detrimento do contato físico direto, face-a-face. Esta nova condição tem, aparentemente, excluído o papel do corpo na educação. Vivemos, pois, uma desmaterialização do corpo? Acreditamos que não e ao contrário, a cada dia encontramos uma quantidade cada vez maior de estudos que tentam dar conta das suas complexas conformações educativas. Estudos sobre corporeidade e suas múltiplas linguagens e expressões, nos ajudam a compreender que ele, o corpo, é o principal instrumento de comunicação e o primeiro elo com o mundo. Aos poucos, o corpo vem se movendo da periferia para o centro das análises e interpretações.
Neste sentido, ao invés de um "esvaziamento" da presença do corpo no cenário da educação contemporânea, há que se retomar urgentemente uma corporeidade vital, condição básica de nossa existência e apreensão do mundo, e que acaba por conferir a todas situações de educação, segundo Assmann (1998), um rico caráter de, "ecologia cognitiva", configurada como forma de ação interativa na situação de educação. Tal "ecologia", tem como perspectiva a criação-recriação do que poderíamos chamar de um "meio ambiente", favorável às efetivas experiências de aprendizagem. Esse "ambiente", por sua vez, articula em relação complexa as dimensões da corporeidade, do prazer e do aprender a aprender, construindo uma qualidade social e cognitiva para a educação. Social porque o processo educativo precisa contribuir com a formação de cidadãos que busquem uma inserção crítica no atual contexto da sociedade moderna, não acatando passivamente a lógica da exclusão e individualista do sistema econômico. E cognitiva porque é preciso formar pessoas criativas no sentido de conseguir articular elementos de superação efetiva das contradições da nova ordem mundial.
Consideramos, portanto, o desenvolvimento da complexidade da estrutura humana como um processo em que o organismo e o meio exercem influência sobre o indivíduo, não separando o social do biológico. Nesta perspectiva, o sujeito constitui-se através de suas interações históricas e culturais, transformando-as e podendo também ser transformado. Completamos tal idéia com as palavras de Assmann (1996): é preciso viver a corporeidade para além do tradicional dualismo cérebro-mente, corpo-alma.
É preciso, pois, como indica Moreira (1996), lutar por uma Educação Corporal que adote como princípio uma aprendizagem humana e humanizante, na qual o homem em sua complexidade estrutural possa ser fisiológico, biológico, psicológico e antropológico. A corporeidade é, existe e por meio da cultura possui significado. Daí a constatação de que a relação corpo-educação, por intermédio da aprendizagem, significa aprendizagem da cultura....."Corpo que se educa é corpo humano que aprende a fazer história fazendo cultura".
Nosso engajamento na Educação Motora tem por princípio a busca da relevância dessa disciplina no contexto da Educação Escolar, que se materializa numa revisão de valores em que:
- o corpo-objeto ceda lugar para o corpo-sujeito da Educação Motora;
- o ato mecânico no trabalho corporal ceda lugar para o ato da corporeidade consciente da Educação Motora;
- a busca frenética do rendimento ceda lugar para a prática prazerosa e lúdica da Educação Motora;
- a participação elitista que reduz o número de envolvidos nas atividades esportivas ceda lugar a um esporte participativo com o grande número de seres humanos festejando e se comunicando na Educação Motora;
- o ritmo padronizado e uníssono da prática de atividades ceda lugar ao respeito ao ritmo próprio executado pelos participantes da Educação Motora.
O ser humano distingue-se das outras criaturas, além de vários fatores, por ser capaz de expressar o pensamento através do movimento, intencionalmente, por ser capaz de perceber o outro e o mundo através do movimento. A percepção é o nosso modo de crescer e ser mais, comprova que o ser humano não é somente um ser biológico, mas que tem criatividade, sente prazeres, é lúdico, criador e inventor do próprio mundo.
A Educação Motora, tem portanto condições de oferecer um aprendizado completo, educativo, quando se trabalha o corpo como um todo: o sensório, o motor, a percepção corporal, numa inter-relação dinâmica com o ambiente, como colocado por Freire (1995).
Sabe-se hoje que a ciência e a tecnologia têm grandes influências em ditar modelos corporais. A busca por um corpo saudável, escultural, forte e sadio tem lotado as academias e clubes. Devemos, portanto, abandonar o modelo tradicional em relação às atividades físicas que tem sua atenção voltada ao corpo-objeto, reduzindo as práticas corporais apenas para o rendimento, na padronização dos gestos, na reprodução de valores e quantificação de resultados, e debruçarmo-nos nos aspectos relacionados ao corpo-sujeito, à corporeidade, pois não podemos separar nossas histórias das nossas ações, somos biológicos e sociais, e isto é tão óbvio que as vezes nos passa despercebido.

1. Pessoas cegas e com baixa visão

Segundo Castro (2005), deficiência visual é a perda parcial ou total da visão, necessitando o seu portador de recursos específicos: método braille (escrita e leitura), sorobã (conhecimento matemático), bengala e outros para a alfabetização e socialização.

A deficiência visual pode ser caracterizada em três níveis diferentes:

a) deficiência visual profunda: dificuldade para realizar tarefas visuais grosseiras. Impossibilidade de fazer tarefas que requeiram visão de detalhes.
b) deficiência visual severa: impossibilidade de realizar tarefas visuais com exatidão, requerendo adequação de tempo, ajudas e modificações.
c) deficiência visual moderada: possibilidade de realizar tarefas visuais com o uso de ajudas e iluminação adequadas similares às realizadas pelos indivíduos com visão normal.

Causas da deficiência visual:
a) congênitas: quando a criança nasce sem resíduos de visão, ou perde a visão até os 3 anos, pois até essa idade ela ainda não grava imagens e não forma conceitos. A partir dos 3 anos é adquirida. Rubéola materna, toxoplasmose materna, sífilis congênita, incompatibilidade sangüínea, hereditariedade.
b) adquiridas: acidentes, ferimentos, envenenamentos, tumores, influências pré-natais, hereditariedade. Diabetes, sífilis, rubéola, albinismo (falta de pigmentação na íris dos olhos), glaucoma (aumento da pressão ocular), catarata (perda da transparência do cristalino, tornando-o opaco), tumores.

Para Winnick (2004), alguns aspectos são ,importantes para o desenvolvimento das capacidades perceptivas e afetivas do deficiente visual, como por exemplo:
a) Conhecimento do corpo é elemento imprescindível para que o deficiente visual possa ter uma noção do mundo que o rodeia.
b) Para o deficiente visual se movimentar com habilidade e eficiência, é necessário que conheça e compreenda seu próprio corpo, a relação entre suas partes, e a relação que seu corpo tem com o espaço e seu entorno.

2. A Corporeidade do deficiente visual

Até pouco tempo, a história do corpo tinha sido diversificada pela visão dualista do homem, elevando sempre a alma em detrimento do corpo. Hoje, este conceito mudou e parece que os valores estão totalmente invertidos: eleva-se o corpo e denigre-se a alma.
O reducionismo, ainda presente atualmente, afirma que se entendermos o fenômeno das menores entidades materiais do mundo poderemos extrapolar este conhecimento a outros níveis. Resumindo: o todo é a soma das partes. Para concebermos o corpo, basta fragmentá-lo e, assim, nós o compreenderemos por inteiro.
Segundo Merleau-Ponty (1996), temos necessidade de voltarmos nosso olhar para o nosso corpo e, a partir daí, mudarmos nossa visão em relação ao mundo.
Não vemos o mundo, as coisas, apenas pelos olhos, pela visão. O espírito "sai dos olhos para ir passear pelas coisas" (MERLEAU-PONTY, 1997, p. 27). Para Merleau-Ponty (1997), precisamos experimentar as coisas, as sensações, mas não um experimentar segundo o pensamento operatório, via laboratório, mas um experimentar com o corpo, o vivenciar.
Merleau-Ponty (1996) também esclarece sua visão de esquema corporal, diferenciando do conhecimento clássico das partes do corpo, qual seja, uma visão fragmentada. Para ele, a noção de esquema corporal é uma questão de envolvimento do corpo com um movimento num determinado espaço, num certo tempo e numa determinada situação, podendo variar, se a situação igualmente variar.
Isto leva-nos a pensar na unidade do corpo, revelada pelo esquema corporal, movimento e significação, contrária à análise clássica da percepção que distingue os dados sensíveis dessa significação. Merleau-Ponty (1996) ultrapassa este conceito fazendo-nos compreender a motricidade enquanto intencionalidade do sujeito, e não como um movimento concreto e abstrato. A motricidade é, portanto, um modo de ser da corporeidade.
Diante destes pensamentos, surge a seguinte questão: De que forma a natação pode colaborar para o desenvolvimento da percepção corporal do deficiente visual?
Ao fazermos uma relação da imagem corporal aquática e o conhecimento que temos do próprio corpo, recorremos a algumas teorias: vivemos num planeta-água, somos compostos de 71% de água e vivemos durante nove meses no meio líquido.
Ao acreditarmos que o ser humano não aprende somente pela sua inteligência, mas com todo o seu corpo, com sua emoção, sua sensibilidade e imaginação, partimos do pressuposto de que a natação pode ser um fator de aprendizagem humana e significativa e, que em hipótese alguma deve ser tratada de forma reducionista, ou seja, com padrões pré-estabelecidos de ensinamentos.

3. Natação para o deficiente visual na perspectiva da corporeidade
Sabemos que a natação repercute positivamente sobre a saúde, como por exemplo, nos problemas de coluna, reeducação pós fratura, nos casos de obesidade, magreza anormal, distúrbios respiratórios, etc. Mas tal atividade pode ir além da ajuda das condições físicas, que são muitas. Acreditamos no benefício na ordem do sensível, ou seja, no contato da água com a pele, ocasionando assim o bem-estar corporal, o prazer, a satisfação pessoal.
O ponto básico da proposta teórico-metodológica para se trabalhar a natação na perspectiva da corporeidade é promover o desenvolvimento da sensibilidade e da percepção corporal, permitindo à pessoa se conhecer primeiro, tendo noção do seu próprio corpo, seus limites, suas possibilidades.
A aprendizagem da natação, baseada na corporeidade, tem a seguinte concepção: uma aprendizagem na qual os movimentos não sejam preestabelecidos, dados como prontos. A corporeidade diz respeito à humanização do sujeito, para que este venha a ser um sujeito-ativo e não um objeto-passivo da história e da cultura.
Exemplificamos tal proposta:
1. Esquema Corporal: Para Merleau-Ponty (2000), o corpo não é apenas uma coisa, mas sim, algo que se move, que percebe e que é percebido, que toca e é tocado, capaz de se relacionar com o mundo e exteriorizar sua sensibilidade. O esquema corporal é a consciência do corpo e a consciência do mundo, ou seja, uma unidade trans-espacial e trans-temporal. É a representação que a pessoa tem do próprio corpo, num certo espaço, num certo tempo. No esquema corporal estão envolvidos os elementos.

2. Estrutura Espacial: Para Merleau-Ponty (2000) o espaço é a maneira como somos afetados, um dado bruto da nossa constituição humana, ele é relativo ao nosso corpo. Não é finito e nem infinito. É a consciência do nosso corpo em um ambiente, em um certo lugar e a orientação que podemos ter em relação às pessoas e as coisas.

3. Orientação Temporal: Para Merleau-Ponty (2000) o tempo não pode ser representado como um conceito. Nossa proposta, não é aprisionar a experiência corporal na exatidão do relógio, mas por outro lado, não podemos negar sua existência. Podemos desenvolver as várias formas de percepção do tempo, por meio do contato do corpo com a água, pois sabemos que no meio líquido os movimentos tornam-se mais lentos, devido à resistência da mesma.

Tanto na fase de aprendizagem, como nas fases de aperfeiçoamento e treinamento em natação, o que se observa é a repetição dos movimentos. A proposta desta prática é despertar nos alunos a atenção para o conhecimento do próprio corpo, como fator principal para tal prática, e não a técnica dos movimentos como condição primária para o aprendizado.

Conclusão:
Acreditamos que a natação, aliada ao contexto da complexidade e contrária a teoria mecanicista, pode proporcionar condições de um aprendizado completo, educativo, quando se trabalha o movimento como um todo: o sensorial, o motor, a percepção corporal e o auto-conhecimento, numa inter-relação dinâmica com o ambiente.
A partir das experiências oferecidas durante a natação, o deficiente visual pode compreender o mundo em que está e agir propriamente nele. Não é importante apenas desfrutar das experiências e sim, saber usá-las no dia-a-dia, como por exemplo, a autopercepção, o autoconhecimento corporal e os limites do corpo, e, através dos desafios que são proporcionados, saber transportá-los, acelerando o despertar dos sentidos, desencadeando aquisições mais precoces, proporcionando um desenvolvimento psicomotor com criatividade e prazer.


Referencial Bibliográfico:
ASSMANN, H. Paradigmas Educacionais e Corporeidade. Piracicaba, Ed. Unimep, 2ªed., 1994.
AZEVEDO, F de. Obras completas da Educação Física. São Paulo: Melhoramentos, 1960.
BONACELLI, M.C.L.M. A natação no deslizar aquático da corporeidade. Tese (doutorado) ? Unicamp. Campinas, S.P., 2004.
BONACELLI, M.C.L.M. Por uma epistemologia do planeta água: navegar (nadar) é preciso. Dissertação de Mestrado ? Unimep. Piracicaba, S.P., 1997.
CASTRO, E. M. de Atividade física adaptada. Ribeirão Preto, São Paulo: Tecmedd, 2005.
DE MARCO, A.(org.) Pensando a educação motora. Campinas, São Paulo: Papirus, 1995.
MERLEAU-PONTY. M. A natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MERLEAU-PONTY. M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MERLEAU-PONTY. O olho e o espírito. Lisboa: Editions Gallimard Vega, 1997.
WINNICK, J. P. Educação física e esportes adaptados. Barueri, São Paulo: Manole, 2004.





Autor: Maria Cecília Bonacelli


Artigos Relacionados


Natação Para Deficientes Visuais E Corporeidade

A Relação Da Alma E Do Corpo Em Maurice Merleau-ponty

Corporeidade Na Educação

A Crítica Merleaupontyniana à Ciência Positivista

Mundo Em Percepções

ConsciÊncia Corporal

A Influência Da Psicomotricidade Na Alfabetização