Uma revisão sobre o crime de porte de arma de fogo desmuniciada.



O porte de arma de fogo desmuniciada, apesar de haver posicionamentos divergentes, não pode ser considerado crime. Apesar da visão de alguns ser pela criminalização da conduta, é majoritária a posição de que a potencialidade lesiva é o fator determinante para a incidência do delito de porte de arma.
Segundo a Lei 10.826/2003, em seu artigo 14, temos a definição do porte ilegal de arma de fogo:

Art. 14 Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena ? reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Fazendo uma interpretação apenas literal do artigo é possível que o jurista entenda estar justificada a sanção criminal ao que porta arma de fogo desmuniciada. Isso porque o artigo vai mencionando utensílios de uma arma isoladamente, tal como a munição e os acessórios. Desse modo, se pune aquele que porta munição, como o direito penal não punir aquele que porta a arma? A resposta a esta questão não esta na norma.
Com base nessa visão legalista, em nossa jurisprudência dos tribunais de segunda instância vinha predominando o entendimento de que a arma de fogo, mesmo desmuniciada, caracteriza infração penal. Além desse fato, o Superior Tribunal de Justiça vinha decidindo, iterativamente, no sentido da tipicidade da ação do portador de arma de fogo, ainda que desmuniciada:

REsp 913088 / SP RECURSO ESPECIAL 2007/0004902-4 Relator Ministro FELIX FISCHER (1109) Órgão Julgador T5 ? QUINTA TURMA Data do Julgamento 28/06/2007 Data da Publicação/Fonte DJ 03.09.2007 p. 217 Ementa PENAL. RECURSO ESPECIAL. ARTIGO 14 DA LEI Nº 10.826/03. PORTE ILEGAL DE ARMA. TIPICIDADE. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO.REGIME PRISIONAL. ABERTO. REITERAÇÃO DE PEDIDO. PREJUDICADO. Na linha de precedentes desta Corte, pouco importa para aconfiguração do delito tipificado no art. 14 da Lei n.º 10.826/03 que a arma esteja desmuniciada, sendo suficiente o porte de arma de fogo semautorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (Precedentes do STJ). Recurso provido, enquanto que o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal, tem se posicionado de forma evidentemente oposta, no sentido de que, se arma de fogo está desmuniciada e não há ao alcance do seu portador nenhum projétil, nenhum artefato, não há crime; se, ao reverso, há artefato ao alcance do portador, a sua ação é típica.


Na esteira desse entendimento, a Ministra Ellen Gracie, no HC 81.057, sob o argumento de que "a ofensividade da arma não está apenas no disparo, mas na intimidação", votou no sentido de que a arma desmuniciada configura delito.
Todavia, atualmente é possível afirmar que esta ocorrendo uma reversão no entendimento dos Tribunais Superiores, especialmente no STF. Pelo que entendem muitos doutrinadores, com base no Finalismo de Roxin, a conduta para ser penalmente típica considerada em face do Direito Penal, deve oferecer um risco ao bem jurídico. Se não há risco, não existe imputação objetiva. Trata-se de ausência de imputação objetiva da conduta, conduzindo à atipicidade do fato.
Alinhando-se a esse posicionamento, o professor Luiz Flávio Gomes comenta que:
O crime de posse ou porte de arma ilegal, em síntese, só se configura quando a conduta do agente cria um risco proibido relevante (que constitui exigência da teoria da imputação objetiva). Esse risco só acontece quando presentes duas categorias: danosidade real do objeto + disponibilidade, reveladora de uma conduta dotada de periculosidade. Somente quando as duas órbitas da conduta penalmente relevante (uma, material, a da arma carregada, e outra jurídica, a da disponibilidade desse objeto) se encontram é que surge a ofensividade típica. Nos chamados "crimes de posse" é fundamental constatar a idoneidade do objeto possuído. Arma de brinquedo, arma desmuniciada e o capim seco (que não é maconha nem está dotado do THC) expressam exemplos de inidoneidade do objeto para o fim de sua punição autônoma.

Na mesma vertente, nosso Tribunal de Justiça Do Rio Grande do Sul, denotando coesão com o STF, vem decidindo:

[...] a detenção de arma desmuniciada, sem qualquer munição à parte, não se enquadra no art. 10, caput, do CP, em face da ausência de potencialidade lesiva (princípio da lesividade ou ofensividade) [...] (Apelação Crime 70006204440, Oitava Câmara Criminal, Rel. Roque Miguel Fank).

Porte ilegal de arma de fogo. Ofensividade não comprovada, em face da circunstância de estar desmuniciada a arma que foi apreendida em poderdo réu, o que ficou consignado no auto de apreensão [...] (Apelação Crime 70012566626, Sexta Câmara Criminal, Rel. Paulo Moacir Aguiar Vieira).

Além do exposto, é relevante mencionar que segundo o Princípio Constitucional da Lesividade a conduta delituosa tem que ser suficiente para causar lesão ou expor a perigo bem jurídico. Dessa forma, se não se constatar a lesividade da conduta considerar-se-á, o fato, como atípico. Nesse contexto importante colacionar a ementa do RHC 81057 citado anteriormente, que tratou justamente da questão da tipicidade do delito de porte de arma desmuniciada:

ATIPICIDADE, CONDUTA, PORTE, ARMA DE FOGO, AUSÊNCIA, MUNIÇÃO ADEQUADA, PROXIMIDADE, AGENTE, INDISPONIBILIDADE, ARMA. AUSÊNCIA, POTENCIALIDADE, LESÃO, BEM JURÍDICO, INCOLUMIDADE PÚBLICA. EMENTA: Arma de fogo: porte consigo de arma de fogo, no entanto, desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do fato:
1. Para a teoria moderna -que dá realce primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de crime de mera conduta ? no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação - não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato.
2. É raciocínio que se funda em axiomas da moderna teoria geral
do Direito Penal; para o seu acolhimento, convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige a exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador, de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo abstrato ou presumido: basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que a regra incriminadora os comporte.
3. Na figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo.
4. Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis mediante ameaça - pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos - da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena.
5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso
distinguir duas situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à
mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o
tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo,
como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica.(STF, RHC 81057 / SP - SÃO PAULO, Relator p/
Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento: 25/05/2004, Órgão Julgador: Primeira Turma, Relatora: Min. ELLEN GRACIE)


De forma sucinta, é possível traduzirmos que pela ausência de lesividade ao bem jurídico o fato de portar arma desmuniciada é atípico, embora ainda haja quem continue defendendo a punição da conduta.


BIBLIOGRAFIA

Gomes, Luiz Flavio. Súmula do STF sobre porte de arma desmuniciada. Disponível em: http://www.oquintopoder.com.br/informativo/ed29_IV.php . Acesso em 26.06.2008.

GOMES, Luiz Flavio. Arma desmuniciada versus Munição Desarmada.http://www.wiki-iuspedia.com.br/article.php?story=20040705160036824 , texto publicado em 05/07/2004.

Autor: Francisco Secco Giaretta


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