Da inaplicabilidade real dos dois princípios de justiça da teoria de John Rawls




Introdução

Na concepção do filósofo John Rawls, para que uma sociedade tenha uma distribuição equitativa de direitos, ela necessita ser fundamentada a partir de um acordo consensual entre todos os indivíduos que se dispuseram decidir o que é melhor para a sociedade. Esse acordo não é firmado pela força, influência econômica, nem pela maioria dos cidadãos mais representativos, ele é estabelecido num nível hipotético de igualdade onde todos os envolvidos determinam o que é melhor para as pessoas (numa ótica de bens básicos) que participam daquele contexto. Os indivíduos devem usufruir de racionalidade e liberdade suficientes para que o acordo seja firme e que possibilite outros acordos posteriores.
Embora não seja necessária a participação integral dos cidadãos na formulação dos princípios primordiais que propulsionarão as relações sociais, os demais devem aderir ou não o resultado do acordo; caso todos concordem com os termos, então será firmado o contrato ? onde as reivindicações ulteriores já foram pré-concebidas e acopladas desde o momento em que foi criado o sistema. Caso o acordo não seja aceito pelos demais, um novo acordo terá que ser estabelecido, sempre se baseando na idéia de igualdade entre os participantes. A partir desse acordo, sob um véu de ignorância, dois princípios básicos seriam definidos; resta saber se eles se sustentariam sem se chocarem com a realidade contextual e mutável que todas as sociedades estão sujeitas a enfrentar. Ou mesmo, quem sabe, se esses princípios não se chocariam com as determinações de justiça presentes na pluralidade de organizações sociais separadas por condições geográficas e históricas.

1. A instituição e a noção de posição original

Segundo Rawls, a sociedade é um aglomerado de instituições que compõem a sua estrutura; ela é um sistema que abrange as expectativas recíprocas de todos os que a ela pertencem. Os membros reconhecem as regras vigentes e as aceitam pelo motivo de acharem que os demais também pensam da mesma forma. Porém, a estrutura básica da sociedade (a instituição) não é bem especificada se trata de órgãos legislativos, escolas, centros administrativos, mas isso não importa agora o que importa é saber se a fundamentação dos dois princípios seria eficaz. Esses princípios seriam originados de um consenso contratual denominado por Rawls de posição original.
A posição original é o primeiro movimento na formulação dos princípios de justiça numa instituição. É selecionado um grupo de pessoas ? dotadas de racionalidade suficiente para poder discernir as escolhas ? que hipoteticamente ver-se-ão iguais, sem diferenças fisiológicas e econômicas, ou seja, a posição original é o estado de igualdade fictício que caracterizaria todos os indivíduos. Nessa hipotética situação inicial, todos são autônomos, livres de quaisquer interferências exteriores que poderiam macular suas consciências puras com desejos de supremacia egoístas; na verdade a autonomia é justamente a condição em que a igualdade de todos aqueles guiados pela razão em seu estado mais brando e equitativo está em vigor e a partir da qual se poderia formular princípios morais justos. Logo, os argumentos e o direito de expressá-los, a posição das partes, na posição original, seriam similares e fundadas em noções éticas inerentes à racionalidade envolvida. Por esse motivo, na posição original, todos aparentam guiar-se pela mesma ótica e qualquer formulação de princípios seria observada sob a mesma perspectiva dos envolvidos, já que todos estariam motivados pela idéia de bem geral, pois na concepção da posição original está implícito a noções de que todos sabem o que é melhor para si e para os outros.
Os princípios escolhidos não surgem de convicções dúbias motivadas por interesses contingentes, eles necessariamente se originam como soluções para problemas de ordem reflexiva, onde ? em quaisquer circunstâncias ? eles permaneceriam sólidos e válidos. É provável que haja oscilações na maneira de conceber e cogitar os princípios escolhidos, o que implica num equilíbrio reflexivo. Aqui as opiniões tendem a se igualarem aos princípios, a partir do momento em que for necessário modificar os juízos até então entendidos como inalteráveis. Mas este equilíbrio poderá ser afetado caso haja novas modificações no modo de ver os princípios. Nesse ponto a posição original estabeleceria de maneira premeditada que todas as idéias apresentadas seriam gerais e aceitas por todos os que representariam as partes no momento de formulação do contrato.

2. Os dois princípios de justiça

Existem dois princípios básicos que Rawls sugere como aceitáveis no processo inicial de fundamentação dos valores que regularão a idéia de justiça na sociedade, são eles:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos. (RAWLS, 1997)

Esses princípios, criados e aceitos no estado inicial de equidade, seriam a base do que posteriormente poderia ser chamado de "noção de justo e injusto". Se levarmos em consideração a estrutura básica da sociedade, esses princípios não se contradizem, já que o primeiro deve ser aplicado antes do segundo, sendo que este se desdobra como resultado da aplicação sem falhas do primeiro. Caso se efetive essa pretensão, estará assegurada a todos a possibilidade de ocuparem cargos sociais distintos; o importante é que ninguém pode ser lesado de sua liberdade básica e que a distribuição de renda e riquezas não seja desvantajosa para os demais cidadãos, mesmo estando concentrada nas mãos dos que ascenderam a cargos elevados devido às contingências posteriores à formulação e aplicação dos princípios na posição original.
O ganho social e econômico, segundo Rawls, não pode ser superior ao direito à liberdade básica, ou seja, não seria correto abdicar de sua liberdade básica ? seja da consciência, seja de pensamento ? para se obter certas vantagens sociais, que por direito são asseguradas e acessíveis. Assim ele afirma que: "(...); sendo organizados em ordem serial, eles não permitem permutas entre liberdades básicas e ganhos sociais e econômicos, a não ser em circunstâncias atenuantes." (RAWLS, pág. 67). Ou seja, o primeiro princípio deve ser sempre visado com um maior enfoque.
Na formulação do contrato de justiça, as partes poder-se-ão até conjecturar sobre várias maneiras de considerar os princípios impostos, uma delas se baseia no princípio de eficiência que afirma o seguinte: os princípios seriam permanentes (ou duráveis) ao ponto de ser desnecessário reformulá-los; mas nesse ponto dever-se-ia considerar que uma sociedade não está isolada das demais e seus cidadãos não ocupam funções semelhantes ou representatividade compatíveis e que as contingências ulteriores serão re-administradas e os detentores dos novos cargos não se contentarão com esse equilíbrio, pois como afirmou muito bem Hume: "Nossos instintos primitivos nos conduzem ou a conceder a nós mesmos uma liberdade ilimitada ou a procurar o domínio sobre os outros; e só a reflexão nos leva a sacrificar essas fortes paixões aos interesses da paz e da ordem pública." (HUME, pág. 208).
Logo, os princípios ? com exceção dos de liberdade equitativa e de posições abertas a todos ? são contingentes e por vezes relacionados com alguma expectativa natural de querer subverter sua condição. Não é possível, só por meio da posição original, inibir aspirações futuras de poder, ainda mais quando esses princípios não levam em conta a posição dos primogênitos daqueles que pertencem à instituição e que formularam os princípios aceitos. Pois a educação não seria suficiente para mantê-los rijos em princípios que fugiriam às suas expectativas destoantes do que está estabelecido; os herdeiros não estariam dispostos a aceitarem os termos sublinhados por seus antepassados a não ser que: "A obediência ou sujeição se torna coisa tão habitual que os homens, em sua maioria, jamais procuram investigar suas origens ou causas, (...). ou então, se alguma vez sentem essa curiosidade, logo que ficam sabendo que eles próprios e seus antepassados têm estado sujeitos, desde há várias épocas ou desde tempos imemoriais, a certa forma de governo ou a certa família, imediatamente concordam, reconhecendo sua obrigação de fidelidade." (HUME, pág. 200).
Desse modo, mesmo havendo uma receptividade dos futuros cidadãos na perspectiva de justiça que se originou da posição original, seria improvável que a instituição permanece tão estática ao ponto de que esses princípios seriam abarcados em qualquer tipo de relação entre as nações que estariam por vir. As cláusulas do contrato tenderiam a não mais se relacionar com as ramificações que brotariam delas mesmas, ou seja, a base da instituição seria os princípios estabelecidos, mas as condições mudariam totalmente e o tipo de sociedade resultante não mais conseguiria manter seu funcionamento baseando-se somente nos dois princípios.
Observar-se-ia que os talentos e habilidades naturais seriam pragmaticamente mais decisivos na distribuição de rendas, riquezas, já que os mais "elevados" conseguiriam sobrepor-se acima dos demais pela lei de seleção natural, sem apelar à trágica concepção de eliminação. Em termos mais claros, mesmo havendo cargos representativos e/o oportunidades acessíveis a todos, somente os mais aptos (os que são mais eficientes, concentrados, rápidos na tomada de decisões etc.) conseguiriam atingi-los. Rawls sugere então que os termos defendidos e aceitos no contrato sejam regulados por uma interpretação democrática. Nesse tipo de argumento, imagina-se que, por mais vantajosa que possa ser a perspectiva das classes mais favorecidas, elas não causarão nenhum dano nas demais, muito pelo contrário, trariam vantagens para os que estão em condições inferiores. É característico achar que, após findar-se o contrato, os princípios considerados razoáveis e praticáveis (devido à racionalidade autônoma de querer o bem geral) seriam mantidos e as expectativas mútuas seriam sempre atendidas, já que cada ação individual afetaria direta ou indiretamente o próximo, pois ambos pertencem ao mesmo sistema de regras e direitos. Logo o princípio da diferença, que rege a interpretação democrática, mesmo possuindo duas direções:
"nenhuma mudança nas expectativas daqueles que estão em melhor posição pode, nesse caso, melhorar a situação dos menos favorecidos"
Ou
"(...) as expectativas de todos os mais favorecidos de qualquer forma contribuem para o bem-estar dos menos favorecidos." (RAWLS, pág. 83) não inibiria a posterior objeção sobre como e porque somente alguns poucos conseguiram alcançar as posições mais elevadas, já que a igualdade equitativa de oportunidades não estaria sendo contemplada nessa circunstância. Voltar-se-ia a concepção de igualdade hipotética para tentar desvanecer essa incongruência, porém, adiante se questionará que as pessoas só por serem racionais e estarem sendo guiadas por princípios de justiça comuns fariam nas rejeitar interesses explícitos. Muitas vezes a posição original evoca a idéia de igualdade entre as partes; para considerar essa conjectura é necessário imaginar que não existiria um passado que poderia interferir na formulação dos princípios. Mas para se chegar a um consenso e à idéia de que certas pessoas iriam se reunir para definir o modelo de suas relações mais simples, já se imagina conseguintemente, que os indivíduos de alguma forma ocupavam cargos e mantinham certos acúmulos, que viviam em algum local, que já conheciam a utilização da linguagem e por aí vai. Logo seria plausível conceber a real praticidade da posição original se e se somente houvesse uma sociedade em construção, ou uma que passou por alguma crise séria ? seja política, social ou motivada por uma guerra ou catástrofe geográfica.
Retornando à idéia central: os princípios de justiça se chocariam com as expectativas egoístas que iria se desenvolver aos poucos, e que se manteriam tácitas apenas nos primeiros momentos após a finalização do contrato. Mesmo hipoteticamente os indivíduos abstraindo-se de suas conquistas sociais para selarem um pacto que vise o melhoramento da sociedade (ela se tornando moralmente justa), o que eles já acumularam ? seja cargos públicos, saber, habilidades lingüístico-motoras ? não seriam restituídos de seus respectivos detentores e logo a instituição voltaria ao seu estado inicial, aquele que antecedeu o contrato. O que certamente se transformaria seria apenas a maneira de considerar as circunstâncias como justas ou injustas. Então, é fato que a instituição não tomaria nenhum rumo diferente, a não ser ? como já foi dito ? que houvesse o desejo geral em reiniciar todo o sistema social a fim de delimitar melhor, sem qualquer pressuposto antagônico, a noção de justiça.

2.1 A impossibilidade de aplicação dos dois princípios de justiça

Bem, se a posição original é motivada pelo véu da ignorância, deve-se supor que os indivíduos não saberiam sequer imaginar qual seria a idéia de bem; Rawls tenta driblar esse pormenor afirmando que as pessoas, através de sua racionalidade, querem manter seus bens primários, almejam proteger sua liberdade e aumentar as oportunidades de ascensão (RAWLS, pág. 153, 154). Mas a posteriori, com o véu retirado, as alternativas constituídas pelo contrato poderiam diluir-se em detrimento dum desejo pessoal que não fora levado em conta, por julgá-lo ínfimo e sem alcance universal. Nesse ponto os dois princípios que Rawls supõe serem os mais bem vistos na condição inicial, não poderiam se sustentar no decorrer da sucessividade dos acontecimentos, pois se cogita de imediato que não seria possível anular todo o movimento (dialético, histórico, instintivo) que regia a sociedade antes do contrato e que certamente permaneceriam latentes no inconsciente coletivo. Pensar-se-ia também que indivíduos estrangeiros se instalarão nos domínios tangidos por esses princípios e eles só seguirão os termos vigentes ? mesmo não fazendo parte dessa instituição ? por meio da coação, pois desconhecem a origem dos princípios e a noção de justiça deles poderia diferir da região que se encontram. Nenhum direito seria assegurado sem força punitiva, nenhuma noção de justiça seria permanente apenas no plano teórico e formal.
Há de se imaginar que com o tempo os dois princípios não conseguiriam atender as expectativas gerais devido à sua limitação em satisfazer apenas o que é mais básico nas relações. Sabe-se que o convívio humano não se restringe às noções de justiça e sim à busca por bens materiais indispensáveis à sua sobrevivência (alimentos, moradia, vestes) e para se obter esses recursos a luta seria inevitável. Para que os princípios propostos por Rawls se mantenham firmes, seria necessário que os bens da natureza fossem equitativamente distribuídos ou mesmo suficientes para que, em escassez, não gerasse a competição; o direito à propriedade de imediato deveria estar incluído ao de liberdade básica, já que não haveria necessidade de lutas entre indivíduos para garantir sua terra. Se o princípio de liberdade básica não contempla as condições ambientais, geográficas ele se torna meramente teorético. O contrato é oriundo da posição original hipotética de igualdade, logo nenhuma das partes ? devido ao véu da ignorância ? tem conhecimento de suas posses até aquele momento, está tudo vago, apenas a racionalidade as guiam. Mas se possuíssem moradias ou um mínimo de certeza do motivo que ocasionou tal direito a essas propriedades existentes anterior ao contrato, as partes não iriam cogitar uma distribuição das mesmas.
Desse modo a competição por território, por espaço poderia derrubar em pouco tempo o princípio de liberdade, já que a racionalidade não se eleva acima das necessidades básicas que devem ser supridas. Se os princípios de justiça são aceitos na posição original e as pessoas os adotarem voluntariamente ? na verdade é essa a condição ? eles serão realmente a base do senso de justiça. Mas se as partes tiverem noção exata de sua situação eles certamente se aproveitarão das contingências que possuíam antes do contrato (RAWLS, 1997).
Logo a equidade da posição original não se relaciona com a competição inerente às espécies, não há como entrelaçar as duas vertentes sem supor a desigualdade. Pois traçar metas num plano racional (o bem geral) não garante que posteriores desentendimentos se originem antagonicamente aos próprios princípios e a noção de justiça não derivaria dos princípios primordiais e sim das próprias condições de vida.

2.2 Problemas na sustentabilidade dos dois princípios após a sua aplicação

Se estiver assegurada a todos a possibilidade de elevar-se a um cargo disponível independentemente dos dotes naturais, aquele que não atingi-lo reconhecerá a sua mediocridade e aceitará tranqüilo essa situação? Observará que não há como alcançar tal nível em nenhum outro momento de sua vida, logo estaria satisfeito só por concordar com o 2º princípio e a interpretação liberal? Porém ele mesmo não conseguiria evoluir suas habilidades naturais ? dispondo de meios para isso ? devido a disfunções hormonais e de retenção de aprendizado. Seria feliz um indivíduo que observa as conquistas alheias sendo que no fundo também almeja tais resultados? Ele poderá desapegar-se de uma liberdade básica para tentar sublimar essa frustração, mas não se sentirá totalmente realizado. As expectativas do outro que está em melhor situação ? de acordo com o princípio de diferença ? trarão conforto a um espírito infeliz, mas qual melhoramento este iria sentir, apenas o usufruir de bens básicos que a própria posição original já garantiria?
O bem geral social cogitado no consentimento das partes, na posição original, deveria ser de ordem emocional e não meramente formal. Supor que as pessoas não sintam inveja, desgosto é achar que viveriam como formigas e abelhas conjuntamente em sincronia, numa sociedade estagnada (imutável) e cada um no seu lugar. No entanto, a verdade é que as pessoas querem vantagens, se essas vantagens não são pré-concebidas na posição original, os princípios fundados não dariam conta da complexa rede de relações ou desejos que emanariam das pessoas. Talvez numa sociedade pacata, onde as relações sejam simplórias e as hierarquias não suscitassem muito desconforto, esses princípios poderiam operar sem descompassos, mas numa sociedade interligada à outra pela globalização e pelo capitalismo, onde o que vale é a competição e o liberalismo (o livre acesso à ascensão, a vantagem por meio dos lucros exploratórios) eles não entrariam. O véu da ignorância não será mantido após a constituição do contrato e as exigências do modelo capitalista não iriam suportar aceitar os princípios.
Por se tratarem da base de todas as subseqüentes noções do que é justo e do que é injusto, os princípios defendidos e acatados no contrato só poderiam regular livres de quaisquer desordem caso se anulasse todas as contingências anteriores à iniciação funcional da instituição. A história de outras civilizações deveria ser olvidada, as relações diplomáticas com outras instituições estrangeiras evitadas pelo motivo delas despertarem nos indivíduos, guiados pelos dois princípios, outras noções de justiça distintas das que eles são motivados. O problema fundamental da posição original e do que dela resulta (princípios independentes da vontade pessoal) é a incerteza de sustentabilidade. É certo que os envolvidos desconhecem qualquer contingência externa, mas na medida em que os indivíduos vão construindo o seu meio e a si mesmos, os dois princípios não teriam autoridade apodítica para explicar determinadas ocasiões de ganhos e perdas. Talvez, pelo motivo deles terem sido primordialmente os mais razoáveis e não houvesse outras expectativas de análise daquilo que é ou não justo, eles suportariam adversidades mínimas que de modo algum os afetariam. Todavia essa ficção só é concebível num panorama global, onde todas as instituições estariam em condições semelhantes, ou seja, os princípios deveriam ser fundados universal e simultaneamente para não se chocarem com nenhum outro princípio preexistente.
Embora esses princípios se referem às instituições mais representativas da sociedade ? aquelas ligadas aos valores sociais, à distribuição de direito e deveres ? eles deveriam regular a sociedade inteira para justificar certas mudanças de ocupação em cargos públicos sem levantarem suspeitas ou ressentimento. E é nesse ponto que se mostra a insustentabilidade dos princípios de justiça proposto por Rawls. Não é possível estabelecer certas regras sem abarcar todo um passado (aqui com relação à vivência de cada um), ou mesmo posteriores conseqüências, pois isso é deliberar levianamente que os indivíduos possam realmente desvincular-se de todo o seu histórico de representações mentais, oriundas da experiência e continuarem sendo racionais e aptos a cogitar objetivos unânimes. Possuir racionalidade implica afirmar que exista um repertório vivenciado ? não se limitando às exigências morais ? relativo a tudo o que influenciou na formação do indivíduo. Se a ele é dado o véu de ignorância, não sobraria racionalidade de nada; o argumento de Rawls é o de que as partes só não têm noção de sua situação social, mas são capazes de discernir qual o bem que mesmo satisfazendo uma expectativa pessoal ? de forma não muito consciente ? iria favorecer equitativamente a todos. No entanto isso não explica, mesmo possuindo argumentos iguais devido ao fato de que os envolvidos não conhecerem nenhuma diferença entre si na posição original (RAWLS pág. 130) como as pessoas, já que são ignorantes nessa situação, já sentem o desejo de determinar um senso de justiça e nessa condição inicial possam desprender-se dois princípios que seriam inerentes à racionalidade.

Conclusão

Se o véu da ignorância não pode ser realmente posto sob a vista de quem quer que pretenda formular princípios de justiça, logo a teoria de Rawls não pode ser aplicada. Só mesmo, como foi afirmado antes, com o anulamento global das condições sociais atuais, e com a permanência hipotética da certeza de que os dois princípios de justiça poderiam ser evocados num subseqüente construção de uma nova sociedade, é que de fato a teoria idealista de Rawls tornar-se-ia provável. Ficaram expostas várias lacunas a respeito da real efetivação da aplicabilidade da posição original e conseqüentemente, da legislação dos dois princípios de justiça. Logo, está claro que esse projeto onírico só é factível numa instituição pequena e que não detenha todo o poder de legislar sobre a justiça na sociedade como um todo.

Referência bibliográfica

Hume, D. Ensaios morais, políticos e literários. Trad. João Paulo Gomes monteiro e Armando mora D?Oliveira. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Coleção Os pensadores).
Rawls, J. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.


Autor: Marcell Diniz De Carvalho Chaves


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