Clube de Letras, Erudição e Modernidade



Resumo: Este artigo apresenta aspectos da história do Clube Literário de Palmares, considerando os escritos em prosa e verso deixados pelos sócios, poetas Fernando Griz (1876 ? 1931) e Fábio Silva (1876 ? 1908), na tentativa de abordar os choques culturais existentes entre a erudição e a modernidade da chamada Geração 1870, principalmente em ambientes de maioria iletrada, destacando as décadas finais do século XIX, quando a prática de participação em clubes de letras foi bastante aproveitada pelo interior do país, sobremaneira nas incipientes cidades atingidas pelo transporte ferroviário e pela imprensa periódica.


Palavras-Chave: Clubes literários; cultura letrada; erudição e modernidade.


Abstract: This paper presents aspects of the Clube Literário de Palmares history?s, considering written in prose and verse left by partners, poets Fernando Griz (1876 - 1931) and Fabio Silva (1876 - 1908), in an attempt to address the cultural clashes between erudition and modernity of Geration 1870, particularly in environments most illiterate, the closing decades of the nineteenth century when the practice of participation in clubs letters, was quite grasped the interior of the country, especially in cities affected by the incipient rail and press periodic.




A presença de um clube literário numa pequena cidade da Província de Pernambuco, ligada a capital Recife pelos trilhos da ferrovia, é um interessante microcosmo para situar aspectos da cultura letrada de final de século XIX. Um clube de letras organizado em dois espaços: primeiro, um salão literário, para tertúlias, palestras e efemérides comemorativas e, segundo, uma biblioteca (book club) para uso mútuo de livros, jornais e revistas. Historicamente uma experiência vivida em muitos lugares, porém, com algumas características locais interessantes: a longevidade de três décadas enquanto clube de letras; a intervenção nos debates da época (abolição, república, instrução pública); a escrita por sócios literatos, editores de periódicos e boêmios, principalmente, na Segunda Fase da história desse Clube Literário de Palmares. Período que corresponde aos anos iniciais da República, aqui investigados a partir das produção textual de dois de seus sócios: os poetas Fernando Griz e Fábio Silva.


Outra questão importante é o fato desse clube de leitores, nos moldes da erudição imperial, sofrer a mutação que a modernidade projeta sobre os domínios da cultura letrada nas décadas de 1880/1890. Décadas em que a proliferação dos impressos e as demandas de letramento dos espaços públicos são vistos como sintomas da passagem para indústria cultural, em detrimento da tradicional cultura erudita. Surgia, na época, uma nova dimensão da cultura letrada, onde a produção das letras passava a ser "relativamente independente do nível de instrução" do receptor (BOURDIEU, 1974). Momento em que, por exemplo, se fundem a literalidade dos escritos boêmios e a oralidade da população pós-camponesa, inserida na urbanização da pequena cidade de Palmares, transformada pela chegada do trem e das atividades de comércio que ativaram a produção de açúcar, cachaça e outros derivados da cana-de-açúcar, para além das relações rurais e escravocratas vivenciadas na primeira metade do século XIX.


Um cenário urbano em formação, onde se encontram e se auto-excluem, pelos sentimentos conflitantes de pertencimento e exclusão (ELIAS, 2000), os sócios estabelecidos (letrados proprietários de terra, membros das famílias tradicionais da cidade) e os sócios outsiders (letrados profissionais de diversas áreas, atraidos pelo recente desenvolvimento urbano e ecômico). Ambos grupos de sócios, entusiasmados e ufanos pela emergência institucional e comercial do recém criado município, em junho de 1879.


Grupos de sócios seduzidos também pelas novidades do mundo moderno, porém articulados de maneira diferente em relação às questões mais estruturantes da cidade e da associação de letras. concorriam pela tarefa de interpretar para a população local, as "novidades" da época. Por exemplo, os primeiros queriam um clube diletante, de festas e honrarias; os "metidos a literatos" queriam o debate, a folha impressa e o humor contra o que denunciavam atraso do País e da população. A galhofa que parecia intimidar os estabelecidos e que os tornava ferinos na crítica aos costumes boêmios, relacionando esse estilo de vida à "putrefação moral". Sedução reacionária dos estabelecidos que conviviam, pelo enfoque moralista com os grandes impasses modernos, embora, na Europa, gêneros semelhantes a aristocratas e boêmios se confrontassem nos prenúncios que a Belle Époque nervosamente procurva dissimular, esquecendo as ameaças latentes da guerra continental, dos totalitarismos e da barbárie que rondavam a civilização européia e seu decantado progresso.


Decantava-se, no entanto, o mito moderno que a Ciência fez desabrochar nas crenças de muitos intelectuais ao assistir máquinas e grandes cidades transformarem a paisagem em menos de uma geração. Em contrapartida, a sensação de impotência diante da história, que fora romanticamente defendida a "mestra da vida" e, logo, não conseguia acompanhar esse tempo moroso e selvagem. criava este sentimento de impotência moral. Porém, o tempo da velocidade e da descoberta que assumiam, principalmente, as notícias espalhadas rapidamente no corpo dos textos impressos, possibilitavam o confronto diário de ideias e posições diante das "novidades" que vinham da capital do País ou de terras distantes. Os periódicos improvisados que surgiam onde quer que se alastrassem ambientes letrados e o latente conflito entre a erudição romanesca e a modernidade do pasquim jocoso e deletério são exemplos desse momento de embates de fundo moralista, político e literário.


Um exemplo é a impressão do primeiro jornal da cidade do Clube Literário de Palmares, em 1883, O Echo. A folha do salão romântico descobrindo a civilização das ruas, do mercado e da estação do trem. A contraprova do letramento que a modernidade irradia pelo mundo, enquanto avançam as relações do mercado de coisas, símbolos e sentimentos. Talvez, por isso, quando Furet (1977) afirma "a modernidade é a escritura", abra caminho para identificar a economia que a escrita representa numa sociedade dinamizada pelo constante letramento de seus espaços privados e públicos, conforme se pode ler nesse editorial do Echo a respeito do primeiro aniversário do Club:


Mais uma data gloriosa se estampa hoje no livro de ouro da ciência, do progresso e da instrução. Esta data acaba de ser escrita para o gládio daqueles atletas, que superando os maiores dificuldades conseguiram formar a instituição que se chama Clube Literário de Palmares, cuja divisa é a instrução. Honram a ágil plêiade esperançosa, que pretende arrancar do caos as centelhas luminosas que constituem o argentino fecho do progresso...


Formava-se, entre os canaviais, uma sociedade de sentido literal. Prática letrada que Certeau (1994, p. 265) considera, o produto de uma elite que apreende o progresso como um tipo escriturístico. Ou seja, não somente para nomear, mas, agora, principalmente escriturar mundos visíveis e invisíveis, seus códigos e signos. Sintoma da virtualidade que o moderno instaura na vida cotidiana, intercedendo à ocorrência de homens, coisas e textos para lidarem com essa mesma "economia escriturística". Talvez por isso, nos dez primeiros anos do Clube Literário de Palmares (1882 ? 1892) registros em letra cursiva; na segunda fase (1893 ? 1907), letras sem esmero feitas com lápis, depois canetas esferográficas. Mudança de conteúdo, forma, quantidade e qualidade. Travessia das trocas simbólicas, entre o campo da cultura erudita e o sistema industrial da cultura (BOURDIER, op.cit.) que se espalhava pelo mundo.


Prática escriturística que fez multiplicar, por exemplo, o estilo das letras bastão. Letras alegóricas por si mesmas, vibrantes e sedutoras; propagáveis e propagadoras da oferta e procura pelo valor de uso e de troca das mercadorias. Escritas garrafais que transformaram, inversamente, o corpo das cidades em diversos lugares não-visíveis diretamente, necessitados sempre da mediação do leitor.


Uma enxurrada de códigos atirada numa constelação de signos, onde começa outra cidade diferente daquela conhecida de todos seus habitantes antigos ou modernos. Aparece, assim, a cidade espacialmente definida pelas letras. A inspiradora arquitetura de Rama (1985), de onde "a distância entre a letra rígida e a fluida palavra falada" fez aparecer, historicamente, "uma cidade escriturada, reservada a uma estrita minoria". Nesse sentido, a cidade das letras é aquela que abre caminho para cidade real, rompendo o claustro das letras românticas pela vanguarda que ilustra, segundo o autor, o fato da literatura latino-americana, principalmente entre os intelectuais dos anos 1890?1930, aliarem-se ao projeto de modernização dos Estados nacionais e na formação de suas novas burocracias.


O que interessa aqui, porém, é verificar tais mutações sofridas na modernidade de final do século XIX, que inclui a interseção entre a palavra falada e a escrita. Momento de difusão das sociedades literárias em muitos países de língua espanhola e portuguesa. Por isso, é importante ressaltar que onde o crítico literário Angel Rama (1985) vê distância, rigidez e fluidez, o historiador Michel de Certeau (1994) vê reciprocidade e mobilidade. Uma forma de ultrapassar a lógica de que o "oral é aquilo que não contribui para o progresso" e o "escriturístico aquilo que se aparta do mundo mágico das vozes e da tradição" (CERTEAU, 1994, p. 224).


Afinal, o estudo sobre o Clube Literário de Palmares demonstra que, entre oralidade e escrita, especialmente no momento de imensas populações analfabetas, imbricam-se os fenômenos correlatos do letramento e da literalidade. Ou seja, considera-se do mesmo modo, a evidente permeabilidade do texto escrito pelos traços da oralidade, principalmente no universo de uma literatura realizada entre boêmios (VELLOSO, 2006) ou subliteratos, aproveitando-se aqui a expressão de Darnton (1987) quando analisa a relação entre o Iluminismo e o submundo das letras na França pré-revolucionária. Talvez entre os subliteratos brasileiros de final do século XIX, encontrem-se mais nítidos os traços de reciprocidade entre a fala e a escrita e a apropriação do repertório estrangeiro pelos sócios das sociedades literárias mirins espalhadas entre as populações de leitores frequentadores de salões, cafés, livrarias e edições de jornais.


Ideias que ganharam mentes e corações para encarar a literatura como missão de uma vida, muitas vezes em pequenas cidades alavancadas pela novidade da ferrovia que chegara recentemente. Na cidade do Clube Literário de Palmares, o trem abordou em 1862. Vinte anos antes que aparecesse o clube de letras. Mas, certamente, o clube de missionários desbravou (construiu) a memória do progresso que a ferrovia abriu entre os canaviais, conforme esse poema (da sessão natalina de 1884) que junta o clube e o trem, cadenciando a pulsão do novo ritmo que a cidade conhece. Cadência dos esguichos de vapor na estação ferroviária, de Palmares, num verso declamado em voz alta:


Ainda bem que é tempo de acabar. / Novas vitórias conquistando, / vai o mal aos poucos deliberando. / Eis que um dia, neste caminho de findar, / vai o facho da ciência a difundir, / por sobre a ignorância em profusão, / há de o fim tão desejado produzir, / derramando sobre o povo a instrução. / Far-se-á, sem demora, então, / sentir os efeitos da lei da evolução.


A questão literária encontra-se nas inúmeras controvérsias investigadas por Sevcenko (1983) a respeito da cultura brasileira na Primeira República. Ali o historiador vê a formação de diversos tipos de literatos, destacando os "autores da moda" atrelados aos grupos de "arrivistas da sociedade e da política"; os "resignados" herdeiros dos nefelibatas, simbolistas e românticos tardios, e os polêmicos "missionários", engajados na vida pública e no debate apaixonado sobre os processos de modernização da vida nacional, conforme também analisa SÜSSEKIND (1987). Os últimos da lista, exemplificados por Sevcenko, a partir da obra engajada e da biografia de seus representantes máximos: Euclides da Cunha e Lima Barreto. Nesse caso, expoentes da literatura maior que escapam dos marcadores da fala e, todavia, escrevem o povo brasileiro de uma maneira até então inédita, atravessando a oralidade com o requinte da língua e da norma culta.


Contudo, essa tipologia elaborada por Sevcenko (1983), segundo Süssekind (1987), é acentuada no interesse de delimitar uma periodização tomada de empréstimo à história política. Preocupação que a presente pesquisa do Clube Literário de Palmares verifica na mobilidade das posições assumidas e dos escritos publicados pelos moços autodenominados boêmios, interessados nas letras e nos sentimentos populares, "avessos à política" lá pelo final do século XIX. Assim, mostram-se sempre contraditórios e desviantes em matéria de identidades afirmativas: na auto-imagem são boêmios, enquanto a vida boêmia é rala, desperdiçada entre "a vida de artista errante" e as "necessidades" da "vida comprometida" com o ganha-pão (GRIZ, 1924). Sintomas observados por Rama (1985) quando afirma que a boemia latino-americana, na época em questão, "foi uma imposição e não uma escolha", considerando o fato de que estes "foram trabalhadores incansáveis... capazes de alta produtividade" (1985, p. 122).


Portanto, são na verdade um misto de "missionários" e "nefelibatas" os protagonistas Fábio Silva e Fernando Griz? Para esclarecer melhor, os principais membros da segunda fase da associação são os inventores das Conferências Literárias Boêmios de Palmares (1894 ? 1896); os idealizadores da "República dos Simples" (residência de estudantes e jovens empregados na ferrovia e no comércio da cidade); os intrépidos diretores de um bloco carnavalesco "Os Heróis da Época" que, na festa de 1895, saíram fantasiados de autoridades locais e engenheiros para traçar pelas ruas a promessa feita por um prefeito de a cidade possuir seu sistema de bondes e entrar no rol do progresso e da "regeneração". Isto, sem nenhuma intervenção maior no momento político do país, nossos protagonistas conhecem em conjunto, com outros moços de sua geração, a experiência da literalidade que incentiva o arranjo de jornais e revistas e o improviso de uma literatura marcada pela rudeza poética "das vozes e da tradição" do lugar, conforme esses versos de Fernando Griz, um boêmio de dezessete anos:


Apraz-me ouvir as rudes cançãozinhas,
Que os campônios modelam no trabalho
E ver voando douradas borboletas,
Por sobre a relva molhada do orvalho;
Atrai-me da lua o claro cintilar,
Que faz do crânio a inspiração brotar.


Griz reúne nos versos, as ideias de "trabalho", "natureza" e "inspiração". Seu tema demonstra o conflito entre a tradição camponesa do lugar, a natureza bucólica e a tentativa de reconciliação com as letras (depositadas no crânio do poeta). O motivo de uma literatura "mais fácil" esperada pelos moradores. Os leitores que compram a revista Arquivo Literário de Palmares (1893). Por isso, a ideia de progresso, ciência e instrução são muito mais promessas que um contínuo na experiência local, enquanto a boemia não passa de um rótulo para chamar atenção de modestos literatos.


Realidade premida pela natureza dos arredores do centro comercial e da incansável repetição das atividades camponesas que mantém em alta a "inspiração" romântica do cenário campestre e ingênuo, mas, inversamente, na acuidade dos boêmios, constitui-se um verdadeiro exemplo do mundo autêntico, sem hostilidades e perfídias que a cidade e seus hábitos representam.


Assim, mais importante que uma tipologia que os enquadre "missionários engajados" ou "boêmios nefelibatas", é inevitável observar como recepcionam, apreendem e produzem uma literatura ambicionada moderna. Afinal, o que há de mímese das formas e conteúdos na missão que pretendem, é também invenção local. No melhor sentido da palavra, acompanha as transformações que ocorrem mundo afora e modela uma literalidade do lugar (na ideia dos boêmios do clube, somente assim conectados à civilização do progresso). Um flerte com as distâncias, mediado pela presença do símbolo mais puro que a Ilustração conclamou: "Ousa servir-te de tua razão!", para qualquer lugar do vasto mundo ou da "minoridade pela qual o próprio homem é culpado" (KANT). O Ousar saber, explica talvez o sentimento letrado ilhado pelo analfabetismo do lugar.


Nesse fragmento Griz descola seu "crânio" de poeta para o campo onde é muito sábio, aos dezessete anos de idade, autorizar a fala do ignorante no corpus de um poema inspirado nas lições dos grandes homens de letras (GRIZ, 1924). A mesma perceptiva de um artigo escrito por Fábio Silva, alguns anos depois, por ocasião do falecimento do escritor Eça de Queiroz, em 1900. Artigo publicado no jornal palmarense O Progresso, revelando que os "boêmios" daquela geração acessaram muitos autores estrangeiros quando sócios do Clube Literário. Percorrendo os gênios do Iluminismo, Ilustração, Romantismo, Realismo, Naturalismo, etc. A tônica do artigo é a leitura que fez o finado grande homem de letras português Eça de Queiroz, comparada àquela realizada na biblioteca do Clube. Ali se encontram, entre outros, "Emile Zola, Flaubert, Descartes, Leibnitz, Malebranche, Bossuet, Victor Hugo e, finalmente, Augusto Comte".


Comte, o principal nome que atravessa o grupo seleto e eclético, ao merecer a maior deferência na apresentação da biografia de Eça de Queiroz e na filiação do romancista à popularidade como grande escritor em Portugal e no Brasil. O que se destaca da mesma maneira é o valor inestimável do pai da sociologia física na formação dos escritores modernos do porte do homenageado recém falecido:


Eis Augusto Comte. Daí o início da verdade na Arte, o positivismo em todos os departamentos do saber, o exato penetrando a mentalidade, desafiando os dogmas, combatendo as trevas, assinalando o real, destruindo o erro, devassando o oculto, aclarando o universo, e largamente nítido, impenetrável e indiscutível.


Fábio Silva vincula, portanto, o positivismo de Comte ao êxito dos romances de Eça de Queiroz, destacando a presença de ambos na biblioteca do Clube de Palmares, que considera o receptáculo (a fonte miraculosa, como gostavam de dizer os boêmios) responsável pela formação de seus amigos literatura. É esclarecedora a admiração por Comte, principalmente para entendimento dos textos produzidos pelos boêmios, construídos sob o ponto de vista positivista, crentes da ciência, do progresso e da civilização que abraça a causa da instrução e o aperfeiçoamento do "espírito" daqueles que se propõe duelar na arena das letras. Termo muitas vezes associado à falta de apoio local para as iniciativas dos "moços metidos a literatos". Entre eles, Fábio Coelho Silva, falecido precocemente em 1908, aos 32 anos de idade.


O que mais chama atenção nas figuras mais representativas da segunda fase do Clube Literário de Palmares é exatamente essa capacidade de invenção. Considera-se, ao mesmo tempo, o caso de serem autodidatas e assumirem a leitura da biblioteca do clube como um exercício diário e estafante. Atitude que prejudica a vida com os pais ligados ao comércio (GRIZ, 1924). Fato que não impede os empregos nos escritórios da empresa ferroviária (na contadoria, gráfica ou telégrafo). Ou o namoro com moças de família da cidade, com seus dotes católicos, domésticos e, às vezes, de prendas literárias capazes de ler e entender os poemas que produziram os vates desde a recente puberdade.


Um fecho que é narrado como uma mocidade heróica por escolher duelar na "arena das letras". Prova que a boemia local esteve sempre muito distante da vida boêmia vivida nas grandes cidades, misturando mais ilustração que outra finalidade e, ainda assim, uma ilustração despretensiosa para maioria de seus participantes. É o que relata esta engaçada brincadeira sobre "quem é o moço?":


Ele é moço elegante. Audaz e altivo, trabalhador e alegre. Fizeram-no boêmio. (...) O burburinho da cidade, o rebuliço das ruas lhe é agradável, porque é moço, porque sente. Todos gostam de ouvi-lo. Tem a voz ébria e ardente, embora sempre satírica. Começa os primeiros ensaios na imprensa literária, com amor e muita dedicação. É amigo que sabe agradar aos que o conhece, com afabilidade (...) .


Na edição seguinte sai o veredicto: o perfil é fulano de tal. Nesse caso do "moço elegante", uma notinha narra que durante o Congresso Literário e Bohemio de fevereiro de 1895, deram-se "votos" para aferir a opinião geral:


Despertou algum interesse o perfil publicado em nosso nº. 2. Diziam uns: ? É o perfil do Temístocles de Aguiar, outros: ? Qualidades de Fábio Silva. No Congresso Literário fizeram até um plebiscito nesse sentido e foi esse o resultado: Temístocles de Aguiar, 8 votos; Fábio Silva, 6 votos; Fernando Griz, 5 votos; Fenelon Campos, 5 votos; João Carvalho, 2 votos.


Essas e outras "estripulias" dos "Heróis da Época" podem ser conhecidas na obra autobiográfica de Fernando Griz. O livro Sonhos e Lutas. Um registro da boêmia de metade dos anos 1890, escrito no "atormentado" 1917 e somente publicado em 1924. Segundo o autor, escrito para contrariar o sentimento magoado e desiludido daquelas velhas e boas esperanças, derrotadas pelo auto-exílio no Recife, pela "guerra de todos contra todos" e pela mesquinhez capitalista que se seguiu depois da virada do século. Por isso, nada melhor do que lembrar a ingenuidade e o destemor das primeiras lutas travadas "ao lado de rapazes que amavam a instrução, a liberdade e o duelo na arena das letras", deixando clara a filiação do escritor aos embates sofridos pela Geração 1870.




Maio, 2010.


REFERÊNCIAS:


BOURDIEU, Pierre (1974). A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.


CERTEAU, Michel de (1994). A Invenção do Cotidiano (Artes de fazer). 11ª ed. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes.


DARNTON, Robert (1987). Boemia Literária e Revolução. O Submundo das Letras no Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras.


ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.


GRIZ, Fernando. (1924) Sonhos e Lutas. Recife: Imprensa Industrial.


RAMA, Angel (1988). A Cidade Letrada. São Paulo: Brasiliense.
REIS, José Carlos (2004). Escola dos Annales: a inovação histórica. São Paulo: Paz e Terra.


SEVCENKO, Nicolau (2003). Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense.


SÜSSEKIND, Flora (1987). Cinematógrafo das Letras: Literatura, Técnica e Modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.


VELLOSO, Mônica Pimenta (2006). Um Folhetinista Oral: Representações e dramatizações da vida intelectual na virada do século XIX. In: LOPES, Antonio Herculano; VELLOSO, Mônica Pimenta; PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e Linguagem. Texto, Imagem, Oralidade e Representações. Rio de janeiro: 7 Letras.
Autor: Vilmar Antonio Carvalho


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