E O MUNDO GIRA, ZIRA...



Ela se chamava Ana Cláudia. Nasceu sertaneja, nas mãos de parteira. A mãe, analfabeta, da vida nada esperava além daquilo que o destino trouxesse. O pai ela nem chegara a conhecer. Pouco depois do nascimento da filha, sumiu. Havia fugido daquela árida realidade. Dizem que para São Paulo. Nunca mais deu notícia. Zira, sua esposa, nem esboçou reclamação. Muito pelo contrário, comemorava ela para a filha:
- Aquele nunca prestou para a lida ? dizia, aliviada por se livrar do marido inútil, que sempre fora um fardo que ela carregara. Severino morria de preguiça da vida - ela resmungava sem desviar os olhos do fogão à lenha e o pensamento do vazio.
Mas Ana Cláudia não ouvia o que a mãe estava dizendo, absorta com o livreto que ganhara na única farmácia do vilarejo onde fora com a mãe no dia anterior comprar umas necessidades. Rapadura era necessidade? Era. Remédio contra verme também, isso a mãe entendia, mesmo sem saber ler a bula. Era um daqueles almanaques de farmácia que Ana Cláudia tinha nas mãos. Ela não compreendia o que estava escrito, mas ficara encantada com os desenhos, com o formato das letras. Era um mundo novo que se descortinava diante de seus olhos vivos, de curiosidade infinita.
O moço da farmácia quase a matara de vergonha quando lhe perguntou em que ano ela estava na escola. Seus olhos gigantes se arregalaram, tomando uma forma ainda maior naquele corpo miúdo, e sua única reação foi se agarrar ao vestido da mãe procurando proteção, assustada com a pergunta do farmacêutico e agora espantada com a expressão de ira com que sua mãe lhe fulminara. Ana Cláudia simplesmente não entendera nada. Em breve iria compreender.
A pequena Ana Cláudia não dormiu aquela noite. Deitada em sua rede, iluminada apenas pela luz do luar que deslizava pela janela semi-aberta, ela sorria. Estava fascinada pelo almanaque. Aquele livro minúsculo, simples, para ela era como um tesouro. Não. Era mais do que isso. Era uma revelação: ela queria aprender a ler.
De manhã a mãe já a encontrou de pé, ansiosa, agitada. Como já conhecia aquela expressão, e prevendo problemas, Zira se esquivou e fingiu não ouvir a pergunta:
- Mãe, eu tenho 8 anos, não é? Por que eu não estou na escola?
- Olha essa roupa. Não te falei para lavar e deixar de molho? "Tá" do mesmo jeito que deixei ontem.
- Mãe...
- Vai lavar essa roupa e depois "nóis conversa".
Ana Cláudia saíra à mãe. Obstinada. Não cederia. A mãe sabia disso, mas tinha esperança de que ela se esquecesse do assunto. Afinal, estudar era coisa para rico. Ela só precisava saber cuidar da casa. Um dia arrumaria um marido e a vida seguiria seu rumo como devia ser.
Mas não adiantava. Todo dia, a cada oportunidade, a insistente pergunta:
- Mãe, quando que eu vou entrar na escola?

Um dia, Alzira ? esse era o nome da mãe, Alzira, mas os poucos que a conheciam a tratavam por Zira ? ouviu palmas na porta da casa. Pela fresta da janela notou que uma senhora segurava Ana Cláudia pela mão.
- Dona Alzira, a senhora pode vir aqui um pouco? Uma voz de gravidade intimidante questionou, aguardando do lado de fora.
Zira não viu outro remédio a não ser ir ver do que se tratava. E se deparou com Ana Cláudia, sorridente, acompanhada de uma "madame" bem vestida, sorriso sereno.
- Mãe, essa é a Dona Amélia, diretora da escola. Ela veio me chamar para "eu ir" na aula da escola dela.
Zira não sabia se batia a porta, se batia na filha, se batia em retirada. Enfim, diante da firmeza no olhar de Ana Cláudia e da imponência da diretora, ferida em seu orgulho, cedeu, deu de ombros e com um sorriso de desprezo decretou:
- Leva ela, mas "dispois num reclama". Essa saiu ao pai. Não vai dar em nada não, dona.
- Mãe?!!
- E escuta aqui, Aninha: se "ocê" for com ela, "num" precisa voltar. Filha minha não tem que estudar. Tem é que aprender ofício de casa para" pudê" arrumar marido bom.
- Mas mãe, eu quero estudar. Eu quero aprender para ter um emprego e tirar a senhora desta vida miserável.
- Nunca te pedi favor nenhum! Agora vai, vai com ela. Faz igual teu pai e vê se não volta mais.
Zira não permitiu que nenhuma das duas a vissem chorar. Somente após os vultos se perderem no horizonte ela se deu conta do que fizera. E se arrependeu amargamente do que dissera. Mas já era tarde demais. Então se deixou desabar na cadeira de balanço, que naquela tarde parecia ranger ainda mais melancólica.
Naquele momento uma rajada de vento quente e seco impregnou o ar com a poeira secular do sertão, colorindo a paisagem de um vermelho-alaranjado. E tudo ficou em silêncio.
Ana Cláudia era só ódio. E dor. Sentia o coração rachando, imitando o barro seco que seus pés descalços quebravam enquanto caminhava. Ela não conseguia deixar de pensar na mãe, e aquelas palavras ainda ecoavam em sua cabeça. "Vai com ela...Não volta mais!" Como doía... Mas seguiu, segurando a mão da diretora, fisionomia séria, sem nunca olhar para trás. Seguiu seu destino. Ou fora sequestrada por ele, como um dia iria se questionar.
Segunda-feira, dia tumultuado no banco. Cidade pequena, município muito pobre. Era dia de pagamento de aposentados, única fonte de renda da maioria daquelas pessoas. A cidade se agita. A fila na porta da agência bancária é enorme e barulhenta. Mesmo sob um sol torturante, ninguém reclamava: era dia de pagamento.
Detrás da sua mesa, com um sorriso impecável no rosto, tentando esquecer o calor escaldante, a gerente recém-chegada chama o próximo. A cliente era uma
mulher idosa, manquitolante, cabelos grisalhos e expressão nula. Aproximou-se da mesa da gerente sem encara-la. Calada, olhava o chão, as mãos inquietas. Nunca se sentia bem naqueles ambientes de gente grã-fina. Por sua vez, a gerente a olhou displicentemente, sem se ater mais do que alguns segundos. Afinal, por aquelas bandas do Nordeste a fisionomia das pessoas não diferia muito. Preocupava-se apenas em se livrar logo daquela senhora e chamar o próximo, já que ainda eram muitos para cadastrar senha e receber seu sagrado provento. No fundo ela queria era aliviar o sofrimento daquela gente que tanto precisava da sua ajuda. E não escondia um certo orgulho disso.
Mas eis que, meio por acaso, quando a cliente já ia se retirar, houve um breve instante em que os olhos das duas se cruzaram. E o sentimento de torpor, de arrebatação tomou conta de ambas.
A gerente empalideceu, emudeceu, estática. A velhinha esboçou dizer alguma coisa, mas imediatamente desistiu e saiu dali às pressas, como que fugindo de algum fantasma. Nem se despediu dos velhos conhecidos que ainda aguardavam na fila. Correu dali como pôde, arrastando as pernas, sem receber o dinheiro. Estava em pânico.
Atônita, a gerente releu várias vezes a ficha que havia acabado de preencher. Não, não podia ser, pensava ela. Mesmo assim anotou o endereço.
Naquele dia, Zira não lavou roupa, não varreu a casa, não alimentou os animais. Apenas se sentou na velha cadeira de balanço à porta da casa e assim ficou. Acabou adormecendo, para acordar com um toque suave nos ombros.
- Mãe?
Zira abriu os olhos, e a única imagem que lhe vinha à mente era a menina Ana Cláudia segurando a mão da diretora, naquele dia em que a filha a deixara para sempre. Mas ela voltara. E como estava linda, naquela roupa de gente importante.
Ana Cláudia, que até então acreditava em uma história que lhe contaram, de que sua mãe morrera em um acidente de um caminhão pau-de-arara, não falava. Retirou da bolsa um embrulho e o abriu cuidadosamente. Era o velho almanaque, que ela nunca deixara de carregar consigo por onde fosse, como um lembrete para si mesma de quem ela era e do que a havia feito chegar onde chegara.
Entregou-o à mãe, que olhando para aquilo, via toda a sua vida se passando à sua frente. Os dias solitários, a saudade da filha, o arrependimento corroendo sua alma, a tentativa de procura-la, o acidente do caminhão pau-de-arara, a perna quebrada, a terrível sobrevivência no sertão até ser resgatada (nunca soube por quem) e conseguir chegar ao vilarejo, o tempo no hospital, dada por morta, a difícil recuperação. E depois o vazio, o sentimento de derrota que se abatera sobre ela, a convicção de aquilo tudo que sofrera era um castigo divino, o que acabou por faze-la desistir de procurar a filha que ela um dia covardemente deixara que lhe levassem. E desistiu de acreditar na vida, esperando apenas que os seus dias terminassem logo.
Despertando de seus devaneios, Zira segurou as mãos de Ana Cláudia e expurgando seus pecados, suspirou:
- Minha filha. Minha filha... e segurando o almanaque, fez, olhando nos olhos de Ana Cláudia o seu mea-culpa, que tanto desejou durante toda a vida:
- Aninha, leia para mim? Disse, entre um sorriso nervoso e um olhar orgulhoso.
Nos confins do sertão, depois de décadas, um humilde casebre abrigava o que há de mais precioso: a vida concedia uma segunda chance àquelas duas bravas sertanejas.
Ana Cláudia se sentiu novamente uma criança, e o colo da mãe agora era o seu refúgio. Para sempre. Exultante, seu coração em chamas agradecia. Nunca mais iria deixar que a levassem pela mão. Não sem a mãe segurando a outra.
Naquele momento uma rajada de vento quente e seco impregnou o ar com a poeira secular do sertão, colorindo a paisagem de um vermelho-alaranjado. E tudo ficou em silêncio.
Autor: Aloisio Dias


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