Foucault e a disciplina na educação



Foucault apresenta ao longo de sua obra uma teoria a respeito da sociedade disciplinar, que mostra como as práticas e os saberes vêm funcionando ao longo da Modernidade: através do adestramento. Sua obra é inovadora porque demonstra, comparando hospitais, quartéis, escolas, prisões, que o poder é relacional, se dá, sobretudo sobre os corpos e encontra-se difuso na sociedade e é por isso que Foucault trata de uma microfísica do poder. Porém, o poder, ao contrário da dominação, permite resistência. "Veiga-Neto sustenta que o poder se dispõe em uma rede, na qual há pontos de resistência, minúsculos, transitórios e móveis." (Moreira, 2005, p. 311-312)
"Poder e saber, como dois lados do mesmo processo, entrecruzam-se no sujeito, seu produto concreto. Não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber, nem saber que não pressuponha e não constitua relações de poder." (Moreira, 2005, p. 312) O poder manifesta-se de diversas formas, mas o que aqui interessa é abordar como se manifesta nas instituições de ensino, forte expressão do exercício do poder relacionado ao saber.
Em seu livro Vigiar e Punir (2004), Foucault estuda o surgimento do presídio e como a disciplina já se fazia presente em outras instituições. Afirma que houve durante a época clássica uma descoberta do corpo como objeto alvo de poder. Comenta sobre a teoria de adestramento do corpo, que tem como intuito reduzir a alma e a manipulação do corpo através da "docilidade". Ele define como dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado transformado e aperfeiçoado. O adestramento do corpo é socialmente útil: torna os indivíduos produtivos, evita desordem.
As disciplinas são os mecanismos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade. "A disciplina "fabrica" indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício." (Foucault, 2004, p. 143) O adestramento dos corpos implica numa coerção ininterrupta, que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos.
A disciplina existe desde tempos remotos, mas se tornou, segundo Foucault, fórmula geral de dominação ao longo dos séculos XVII e XVIII. Difere-se da escravidão no sentido de que não se trata de uma relação de posse, mas de capacidade do exercício de poder sobre outrem.
O controle das mínimas parcelas da vida e do corpo leva a uma racionalidade econômica ou técnica, ao cálculo do ínfimo e do infinito, seja no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina. E é, segundo o autor, desse esmiuçamento que surge a modernidade e o homem moderno.
Para Foucault, a disciplina procede à distribuição dos indivíduos no espaço. Neste sentido, o autor aborda a clausura, o quadriculamento, que visa evitar as distribuições por grupos e decompor as implantações coletivas e também as localizações funcionais, que têm como objetivo criar espaços úteis.
A escola é uma instituição na qual todos (pelo menos deveria ser assim) passam boa parte de sua infância e juventude. Foi concebida como uma grande máquina capaz de fazer corpos dóceis, maleáveis e, à medida que os indivíduos passam mais tempo nela, os efeitos do processo disciplinar se tornam notáveis. (Veiga-Neto, 2005)
Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. (Foucault, 2004, p. 126)

A disciplina encontra-se na base de sustentação da escola. Os mecanismos utilizados para exercer o controle são muitos.
Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico. (Foucault, 2004, p. 123)

O controle espacial serve para anular as aglomerações, as deserções, a vadiagem. A ordenação por fileira, além de coordenar os alunos dentro da sala, também os controla nos corredores, nos pátios. As filas parecem ser especialmente úteis dentro das salas de aula, pois de onde o professor se encontra, em posição de destaque (que já demonstra hierarquia), pode estabelecer quem está presente ou faltou à aula, onde cada um se localiza, facilitar a comunicação com os alunos e ao mesmo tempo controlar a comunicação entre eles, sempre vigiando o comportamento de cada um.
As disciplinas, organizando as "celas", os "lugares" e as "fileiras" criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. (Foucault, 2004, p. 126)

O alinhamento se manifesta não apenas fisicamente, nas fileiras de alunos, mas também através de um conjunto de alinhamentos obrigatórios: cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra. "Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil." (Foucault, 2004, p. 123) Esta organização permite tornar o ensino mais eficiente, uma vez que o professor tem controle sobre todos, que podem participar ao mesmo tempo, o que evita o ócio e a consequente confusão desse grupo que ficaria a toa enquanto o professor atende apenas um aluno.
A eficiência se dá também através das séries por idade, que permite que o professor trabalhe determinado conteúdo que seria, teoricamente, apropriado e facilita, assim, o controle. As exclusões, repetências, advertências, os cinco minutos a menos no intervalo, os pontos a menos na média... essas e outras são punições consequentes do mau comportamento dos alunos.
Um fenômeno recente do controle sobre os alunos é a instalação de câmeras pela escola com o suposto intuito de trazer segurança e que na maioria das vezes acaba por inibir os alunos.
Existe uma série de normas a serem seguidas, tanto por alunos quanto por professores. É proibido falar durante a aula, os alunos têm que sentar na posição correta, não podem levantar-se da cadeira, é preciso levantar a mão para falar ou pedir para sair da sala, muitas escolas exigem uniformes. Os professores, por sua vez, também devem evitar uma série de atitudes e comportamentos como, por exemplo, se ausentar da sala ou usar roupas consideradas indecentes. São sempre vigiados por coordenadores, inspetores. Em algumas situações, o professor também está sujeito a punições ou ameaças. Já com os pais, o poder se apresenta na ameaça de punição contra os filhos. (Barbosa, 2001)
Foucault também fala do controle do horário, que trata de constituir um tempo integralmente útil. O tempo se faz tão presente que é incorporado pelos indivíduos. "O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder", diz Foucault (2004, p. 129). Se um aluno chega atrasado, ele já sabe que dificilmente conseguirá entrar na sala. Se ele conseguir, já sabe que provavelmente sua atenção será chamada.
Um bom exemplo das relações de poder dentro da instituição escolar é o filme "Entre os muros da escola" (Entre les murs, Laurent Cantet, França, 2008). O professor passa o tempo todo tentando manter a ordem dentro da sala e a situação se agrava quando tem um problema sério com um aluno, que é levado ao conselho escolar e acaba sendo expulso. O professor também havia cometido um erro, que, entretanto, é apenas citado no conselho. Nota-se portanto, que muitas vezes a disciplina segue padrões de rigidez diferentes dependendo da hierarquia que está determinada.
A forma de organizar espaço, tempo e o controle em geral parece estar intimamente ligada à racionalidade, no sentido de tornar as práticas mais eficazes, no melhor tempo possível, utilizando o melhor espaço possível, com intuito de obter o melhor resultado possível. Ninguém pode ficar ocioso, nenhum minuto pode ser perdido. "No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil." (Foucault, 2004, p. 130) Isso é extremamente visível na sala de aula: se um aluno dorme, não importa se ele teve um problema em casa e não pôde dormir a noite, ele está errado, porque está sem fazer nada. Se os alunos dispersam por algum tempo, o professor provavelmente dará um sermão sobre a perda de tempo.
Um exemplo para este tipo de ocorrência acima citada se dá também no filme já comentado. No começo de uma aula, o professor demora a conseguir a atenção dos alunos, que estão muito empolgados com o retorno a escola após as férias. Quando o professor, após algumas tentativas, finalmente consegue que os alunos olhem para ele, ele fala sobre quanto tempo perderam no pátio, quanto tempo perderam para chegar à sala de aula e quanto foi desperdiçado em conversa e que os alunos de outras escolas teriam vantagem sobre eles pelo fato de não perderem tanto tempo para iniciarem as aulas.
Foucault apresenta alguns exemplos de como os mecanismos de poder foram sendo incorporados e podemos observar que muitos destes se visualizam ainda hoje. Um dos modelos de como se apresentava o controle no ambiente educacional citados pelo autor é a escola de aprendizes da fábrica Gobelins, onde um livro geral é mantido pelos professores e para registrar dia por dia o comportamento dos alunos e tudo o que se passa na escola. Cita também a escola mútua,do século XII ao XIX, que se constitui como uma máquina com diversas engrenagens: a aprendizagem dos alunos se combina com o dever de contribuir com o aprendizado do próximo. Havia também, na escola mútua- que não difere muito de como a escola funciona atualmente-, um código de sinais que o aluno deve aprender e responder a eles automaticamente.
O soldado disciplinado começa a obedecer ao que quer que lhe seja ordenado; sua obediência é pronta e cega; a aparência de indocilidade, o menor atraso seria um crime. O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais. (Foucault, 2004, p. 140)

"O próprio edifício da Escola devia ser um aparelho de vigiar;" (Foucault, 2004, p. 145) A construção das escolas muitas vezes se assemelhava ao modelo panóptico, forma como eram construídas prisões, com objetivo de que poucos pudessem ver muitos e estes não soubessem quando estavam sendo assistidos. "Escrúpulos infinitos de vigilância que a arquitetura transmite por mil dispositivos sem honra." (Foucault, 2004, p. 145) Talvez os prédios neste estilo não sejam mais exatamente iguais aos de outrora na atualidade, mas será que a realidade que se apresenta atualmente é muito diferente disso?
"As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento;" (Foucault, 2004, p. 145) Segundo o autor, o poder disciplinar tem a característica paradoxal de ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta - ele não se esconde, todos sabem quem está encarregado de controlar - e ao mesmo tempo é absolutamente discreto, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio, o que se demonstra pela atitude do indivíduo e mais especificamente no contexto escolar, do aluno, que tem como referência as regras a serem seguidas: ele está sempre pensando nas consequências de sua ação, embora não saiba se alguém o assiste naquele momento ou se virá a ser descoberto. O controle é físico, mas com intuito moral. As normas- que individualizam e ao mesmo tempo remetem ao conjunto- existem, portanto, para serem incorporadas, com intuito de não haver necessidade de punição. Mas estas existem e serão acionadas sempre que houver necessidade.
A obra de Foucault tem importante contribuição porque evidencia relações de poder cotidianas que nos parecem muitas vezes ínfimas ou nem são notadas. Tem sido amplamente usada no pensamento sobre a educação, segundo Moreira, às vezes até abusivamente, mas, para este mesmo autor, ainda tem muitas contribuições a trazer.
Tratar dos discursos e das relações de poder nas mínimas práticas cotidianas e institucionais, seguindo o que Foucault nos ensinou em suas pesquisas, é um modo de fazer história, história do nosso presente, lançando um olhar profundamente crítico a todas as formas de sujeição do homem, as quais são visíveis nos diferentes campos institucionais e nas inúmeras técnicas, procedimentos, estratégias, discursos e arquiteturas construídos historicamente. É estudar relações de poder, entendendo que o poder sempre existe em ato e jamais se exerce de um lado só: em ambos os lados há agentes e sempre há
espaço para respostas, revoltas, reações, efeitos, já que o poder só se
exerce sobre homens livres. (Fischer, 2003, p. 385)
O estudo da obra foucaultiana nos mostra como a escola tornou-se fábrica de corpos dóceis, nos levando a questionar a legitimidade dos métodos utilizados nesta instituição. Apesar de não apresentar o caminho para que mudanças ocorram, Foucault é, sem dúvida, um grande estimulador da reflexão.



Bibliografia:
NETO, Alfredo Veiga. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
FOUCAULT, Michel."Disciplina". In: Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004.
Disponível em:
Consultado em 9 de novembro de 2010.
BARBOSA, Rita. "A disciplina e as táticas no universo escolar segundo Michel Foucault: a anatomia política do detalhe". In: Revista Espaço Acadêmico No. 74 Julho 2007
MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa. O pensamento de Foucault e suas contribuições para a educação. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 90, p. 309-313, Jan./Abr. 2005
Disponível em:
Consultado em 9 de novembro de 2010.
FISCHER,Rosa Maria Bueno. Foucault revoluciona a pesquisa em educação? In: Perspectiva, Florianópolis, v. 21, n. 02, p. 371-389, jul./dez. 2003
Disponível em:
Consultado em 9 de novembro de 2010.

Autor: Amanda Noronha Fernandes


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