Crítica do filme Os mestres loucos



O filme "Os mestres loucos" de Jean Rouch é um documentário acerca de um ritual dos Haouka,um movimento religioso que surgiu na Nigéria. Segundo Costa, o objetivo dos filmes de Rouch é retratar a desconstrução de mundos em crise ou em vias se perderem. Filma sabendo que a imagem que acabamos de ver se apaga no instante seguinte e sem a película tudo o que vemos nos escaparia. Ainda de acordo com Costa, para o diretor, com o filme não só é possível tornar visível a realidade que se extingue como aquela que se esconde. Para Rouch, A câmera é a melhor forma de reproduzir o que se passa e é por isso que decide fazer filmes etnográficos.
Contudo, a câmera não passa despercebida, só pode filmar se participar. Há também a questão de que o diretor do filme é responsável não só por decidir o que será filmado, mas também por manipular as imagens na montagem. Talvez, estes sejam alguns dos motivos pelos quais os filmes de Rouch tenham sido criticados. Contudo, segundo Ricardo Costa, Jean Rouch é cheio de surpresas, mas sempre respeita os imperativos da ciência. Para Evans-Pritchard (2005), o antropólogo que vai para o campo deve ter ideias preconcebidas, porque não fosse assim, não saberia o que nem como estudar. Pensando desta forma, os recortes de tema e imagem feitos pelo diretor do filme podem ser comparados aos recortes de tema e feitos no diário de campo do antropólogo e isso não necessariamente é ruim, se feito com rigor científico.
Logo no início, o filme adverte que cenas de violência e crueldade se seguirão, que o ritual é uma forma de resolver o problema da readaptação e que ele mostra como certos africanos representam a civilização ocidental. O narrador também afirma que, vindos do mato para as cidades, os jovens se deparam com uma civilização mecânica e é assim que surgem conflitos e novas religiões e foi assim que surgiram os Haouka em 1917.
Os homens da seita Haouka se direcionam em transportes alugados numa manhã de domingo a um local afastado da cidade. Deixados em certo ponto, ainda caminham por uma hora para chegar à concessão de Mountyeba (padre de todos os Haouka).
Lá, encontram-se lençóis coloridos pendurados representando a "Union Jack", a bandeira do Reino Unido e logo embaixo encontra-se a "Estátua do Governador", com bigode, sabre, armas e cavalos.
A cerimônia começa com a apresentação de um novato que está possuído há um mês por um Haouka. Logo em seguida, há a confissão pública em torno de um altar: os Haouka culpados devem se acusar. O primeiro admite estar impotente por ter tido relações com a mulher de seu amigo. O segundo diz que é sujo e o terceiro admite negar os Haouka. Há uma multa por essas confissões: um carneiro e uma galinha são sacrificados. Os homens são, então, divididos em duas filas: castigados e não castigados. O sacrifício é feito e o sangue é derramado no altar e no "palácio do governador". Segue-se um sermão e um juramento de não mais cometer os mesmos erros e, então, os castigados são levados para fora da concessão e só podem voltar quando estiverem possuídos.
Para aperfeiçoar a purificação, um homem rega as árvores sagradas- estacas do "Union Jack" e do "palácio do governo", com uma libação de gim. Um homem toca violino de uma corda enquanto esperam por um cão, alimento proibido que eles querem comer para mostrar sua força superior a dos outros homens.
Os homens reúnem-se em volta do altar. A dança começa. Têm chicotes e armas de madeira nas mãos. Os castigados tentam voltar, mas são expulsos e passam a ser vigiados por sentinelas. As sentinelas apontam para os que vão ser possuídos. A possessão começa, os homens tremem, os olhos reviram, uma baba espessa sai pela boca O primeiro a ser possuído é o "caporal de serviços", que pede fogo para se queimar e mostrar que está realmente possuído. Em seguida, um dos castigados retorna possuído pelo "condutor da locomotiva" e ele caminha quase o tempo todo entre o "palácio" e o altar de sacrifício. Depois quem aparece é o "capitão do mar vermelho", que marcha como o exército britânico. Em seguida aparecem a "mulher do médico", o "tenente do mar vermelho", o "governador" e a "mulher do tenente Salmon", que vai fazer inspeção da nova "estátua do governador".
O "tenente" parte um ovo na cabeça da estátua para representar o penacho que os governadores britânicos usam no chapéu. Nesse momento aparece uma cena da cerimônia de abertura da Assembléia Legislativa em Accra e o narrador compara esta com o ritual, dizendo que se a ordem das cerimônias é diferente, o protocolo é o mesmo.
O "Estado maior" se reúne para inspeção do "palácio do governo". Se o governador não gostar, haverá multa. Mas ele mostra-se satisfeito. Mais adiante aparecem o "general", um "soldado", o "secretário geral", um "motorista de caminhão", e o "comandante mau"- estes três últimos castigados. O "governador" pede que o "comandante mau" prove que está possuído e ele coloca fogo em si mesmo e os outros têm que ajudar a apagar.
O "governador" reúne uma mesa redonda, a "conferência do cão". O cão é sacrificado e todos se precipitam a beber diretamente seu sangue e lamber o altar. Nova conferência é feita para decidir se o cão será comido cru ou cozido. Decidem por cozinhar o cão para poder levar caldo e pedaços para quem não pôde comparecer.
Enquanto o animal é cozido, os homens não temem ao fogo e nem à água quente. O "comandante mau" fica com a melhor parte: a cabeça. Ao perceber isto, a "locomotiva" come uma orelha. As tripas também são muito procuradas. Há disputa pelos melhores pedaços. Pedaços são embrulhados em folhas de bananeira e caldo em vidros de perfume para serem levados embora.
É tarde e a festa tem de acabar para que eles não precisem pagar uma nova taxa pelo transporte. Os ajudantes guiam os homens ao "palácio do governo", onde as crises acabam. A "locomotiva" não quer partir. Ele diz que a festa correu muito bem e que no ano seguinte devem fazer duas destas. Por fim, todos se vão, um a um.
No dia seguinte, cada um volta a sua vida cotidiana. O filme mostra cada um deles em suas atividades. São vendedores, soldados, batedores de carteira, entre outros. Por fim, o narrador diz que ao comparar seus rostos felizes com as expressões horríveis do ritual, não se pode deixar de perguntar se estes homens não conhecem certos remédios para acabar com os problemas de integração com o meio, remédios estes que desconhecemos.
No ritual dos Haouka, cada indivíduo suprime o que é para viver o "outro lado da questão" em que se encontram. É difícil entender a complexidade do ritual: os indivíduos estão confusos sobre o momento que vivem e principalmente porque tentam manter a tradição, mas sem deixar de lado o contexto atual.
É interessante como os integrantes e objetos utilizados representam estruturas sociais, representação esta que parece ser uma tentativa de dar inteligibilidade ao processo de colonização pelo qual passam. Não é a toa que buscam reproduzir diversos símbolos da colonização, o que se evidencia com a exibição das cenas da cerimônia de abertura da Assembléia Legislativa. Os panos representando a bandeira, o "palácio do governador", a incorporação de pessoas de cargos do aparato governamental, de status na sociedade ou mesmo trabalhadores como eles mesmos que estão incorporando- por exemplo o "motorista de caminhão"-, o ovo na cabeça da estátua representando o chapéu utilizado pelos governadores, tudo seguindo o mesmo "protocolo" dos colonizadores. Há muitos insultos e violência até mesmo física, o que talvez também represente a "sociedade ocidental".
Outro símbolo interessante de ser observado é o cão comido por eles como demonstração de força: pelo menos no ritual eles podiam demonstrar que eram mais fortes que qualquer outro homem, fosse branco, fosse negro.
Não é exclusividade dos Haouka a utilização de rituais como reflexo da sociedade e para solucionar questões sociais. Para os Ndembu, estudados por Victor Turner em "Floresta dos símbolos", as doenças devem ser entendidas em um quadro de referências que é público ou social. As doenças são ações punitivas das sombras por, entre outros motivos, problemas nas relações interpessoais. Para resolver o problema, há um "ritual de aflição", através do qual o curandeiro extrai do corpo do paciente um ihamba, um dente que está causando o mal à pessoa. Faz parte do ritual a admoestação do curandeiro para que as pessoas exponham seus ressentimentos, inclusive o paciente, com intuito de resolvê-las e afastar dessa forma a doença.
Para o autor, os curandeiros acreditam sinceramente que sua terapia tem uma eficácia positiva."De qualquer forma, eles são bastante conscientes dos benefícios dos seus procedimentos para as relações do grupo, e não medem esforços para ter certeza de que explicitaram as principais fontes de hostilidade latente existentes no grupo." (Turner, 2005, p. 458)
Os rituais têm como objetivo sanar principalmente questões de ordem social causada pela penetração da economia monetarizada junto com um acelerado ritmo de migração que criam novas necessidades econômicas e novas tensões. Assim como o ritual dos Haouka, "o Ihamba pode, assim, ser visto como parte de uma ação defensiva por meio da qual a cultura (...) está lutando contra a mudança." (Turner, 2005, p. 456)
"Como existem muitos cultos e como os símbolos focais de cada um deles se referem a crenças e valores básicos compartilhados por todos os Ndembu, pode ser dito que o sistema total dos cultos de aflição mantém vivo, através da sua constante repetição, o sentimento de unidade tribal." (TURNER, 2005, p. 452)
O ritual é, em ambas as sociedades, uma ferramenta de coesão. "O indivíduo doente exposto a esse processo é reintegrado no seu grupo, assim como, passo a passo, os membros deste são reconciliados uns com os outros em circunstâncias emocionalmente carregadas." (TURNER, 2005, p. 487)
Outra sociedade em que o ritual tem papel essencial é a dos Azande, estudada por Evans-Pritchard em "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande" (2004-2005), na qual os elementos místicos têm um papel importantíssimo, porque são racionais- "A bruxaria, os oráculos e a magia formam um sistema intelectualmente coerente. Cada elemento explica e prova os demais." (E. Evans-Pritchard, 2005, p. 254)- e, acima de tudo, porque refletem estruturas sociais.
A bruxaria e a feitiçaria explicam praticamente todo infortúnio que acontece na vida dos indivíduos, desde o que chamamos de coincidência a doenças e mortes. Para fazer e desfazer a bruxaria e a feitiçaria, os Azande contam com diversos mecanismos, tais como oráculos, adivinhos, mágicos, ritos, alguns com utilização de drogas, intermediários responsáveis por intervir na situação, enfim, todo um aparato "legal" com intuito de que os conflitos sejam resolvidos sem maiores prejuízos.
Os oráculos, a bruxaria e a magia entre os Azande, de acordo com Márcio Martins dos Santos, na interpretação de Evans-Pritchard, são crenças cuja função primordial é garantir a continuidade do funcionamento adequado da sociedade:
"A crença na bruxaria é um valioso corretivo contra impulsos não caridosos, porque uma demonstração de mau humor, mesquinharia ou hostilidade pode acarretar sérias conseqüências. Como os Azande não sabem quem é ou não é bruxo, partem do princípio de que todos os seus vizinhos podem sê-lo, e assim cuidam de não os ofender à toa" (p. 81, E. EVANS-PRITCHARD, 2004).
Outro momento do texto em que isso fica claro é visível a partir da citação:
"As chances de uma ação violenta por parte de parentes do enfermo são minimizadas pela rotina característica do procedimento, pois, sendo modos de agir estabelecidos e com valor normativo, as pessoas pensam, salvo raramente, em agir de outro modo." (E.Evans-Pritchard, 2005, p. 82, 83)
Os rituais também têm um papel de cura, seja de problemas físicos ou metafísicos. Por exemplo, no caso dos Haouka, o homem que se dizia impotente deixou de sê-lo após o ritual. Assim como os demais castigados têm seus "pecados expiados" através da cerimônia. O ritual Ndembu, bem como o Azande, trata de doenças com sintomas físicos que são supostamente causados por "doenças" nas relações.
Segundo Márcio Martins dos Santos, o "idioma místico" explica e soluciona praticamente todos os conflitos que surgem entre os Azande. Por isso, "talvez seja possível dizer que a bruxaria tem como uma de suas principais "funções" atuar como "força conservadora", lidando com as tensões de forma a garantir a manutenção e o equilíbrio na estrutura social." (Santos, Márcio Martins dos) Quiçá seja possível ir além e afirmar que o "idioma místico" explica e soluciona conflitos não apenas entre os Zande, mas também entre os Haouka, os Ndembu, entre outros povos e que muitos rituais- cada um em suas particularidades e dimensões (por exemplo, os Haouka são apenas uma parte da população Accra)- e não apenas a bruxaria, tem essa "função" de lidar com as tensões para garantir a manutenção e o equilíbrio social.
Em suma, fica evidenciado através dessa breve análise do filme "Os mestres loucos", que os rituais não são apenas crenças. Ao contrário, são extremamente racionais: são formas que o povo encontra de expressar o contexto em que se inserem, o que pensam ou sentem sobre ele e funcionam, muitas vezes, como "remédios" para os problemas de integração com o meio.

Bibliografia:
E. Evans-Pritchard. "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
E. Evans-Pritchard. "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Turner, Victor. "Um curandeiro Ndembu e sua prática" In: Floresta dos Símbolos. Niterói: Editora UFF, 2005.
Sites:
"Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande", por SANTOS, Márcio Martins dos em: http://antropologia.com.br/res/res27_1.htm Consultado em nove de junho de 2010.
A outra face do espelho. Jean Rouch e o "outro", por COSTA, Ricardo em:
http://www.bocc.uff.br/pag/costa-ricardo-jean-rouch.pdf Consultado em oito de junho de 2010.
Autor: Amanda Noronha Fernandes


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