Murilo Mendes e Alexandre O'Neill



MURILO MENDES E ALEXANDRE O'NEILL
Cleber Gimenes

AGORA ESCREVO...
"Um poema é sempre mais do que um poema: é uma poética, uma idéia de arte poética" (Sousa Dias)


A obra do brasileiro Murilo Mendes (1902-1975) e a do português Alexandre O'Neill (1924-1986) apresentam em diversos momentos, uma preocupação com o "fazer artístico", podendo ser observado nos poemas de ambos, ora implícita, ora explicitamente, um "conceito do poético", uma manifestação metalinguística que nos permite compreender um pouco as artimanhas do ofício de poeta.

O desejo de libertação do homem, que permeia toda a obra de Alexandre O'Neill, evidencia-se também na experimentação linguística que o poeta aplica à construção dos seus versos. Essa busca pela liberdade, maior prova de sua relação com o universo surrealista, leva O'Neill, assim como outros poetas de sua geração, a pensar o "fazer poético", reivindicando a libertação total da palavra.


PERICLITAM OS GRILOS
Periclitam os grilos:
a noite é nada.
Quem tem filhos tem cadilhos.
(Que quadra tão bem rimada!)

Não espere, leitor, que eu diga:
"Debaixo daquela arcada...".
Não venho fazer intriga:
versejo só ? e mais nada.

Assim o terceiro verso
desta tirada
(reparou que é um provérbio?)
não significa mais nada.

Se a noite é nada e os grilos
não estão de asa parada,
não vou puxar só por isso,
o fio à sua meada,

leitor que me pede a história
que já traz engatilhada,
leitor que não se habitua
a que não aconteça nada

em poesia que comece
como esta foi começada
e acabe como esta
vai ser agora acabada...

Neste poema, Alexandre O'Neill desenvolve um bem-humorado diálogo com o leitor, que, conforme vai lendo, toma conhecimento dos artifícios utilizados pelo poeta na construção do texto.

Assim o terceiro verso
desta tirada
(reparou que é um provérbio?)
não significa mais nada.

Aqui, vemos um poeta que reflete sobre a língua, ou, mais precisamente, sobre o uso que faz da língua na elaboração do poema. A liberdade ao nível da linguagem manifesta-se no poema Periclitam os grilos, pela ruptura que apresenta em relação ao tradicionalismo literário, em que o poeta se serve do humor e da linguagem coloquial. Sua poética subversiva aparece no uso que O'Neill faz de lugares-comuns ou clichês:
não vou puxar só por isso,
o fio à sua meada,

O poeta que verseja, "e mais nada", demonstra mesmo assim uma preocupação com a criação poética. Sousa Dias assevera que um poema "nada quer explicar", porém, os versos de O"Neill revelam, o que "só pelos meios da poesia pode ser dito", a sua concepção de poesia, na qual vigora a liberdade, sobretudo a liberdade da palavra.

A aproximação entre as obras de Murilo Mendes e Alexandre O'Neill não se dá apenas pela utilização da língua portuguesa como matéria prima, mas, principalmente, pela influência do movimento surrealista que faz com que os dois tenham a liberdade como seu horizonte poético. Assim como em O'Neill, a recorrência de poemas que remetem a construção poética, é muito comum em Murilo. Por isso, nota-se o grande número de (meta)poemas com títulos como Poema dialético, Pós-poema, Poema novo etc. Outro poema cujo título já nos leva a pensar no labor poético é Ofício humano, de Poesia Liberdade:

OFÍCIO HUMANO
As harpas da manhã vibram suaves e róseas.
O poeta abre seu arquivo ? o mundo ?
E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejam reajustadas na unidade.

É preciso reunir o dia e a noite,
Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos clarins do sangue.

Esperemos na angústia e no tremor o fim dos tempos,
Quando aos homens se fundirem numa única família,
Quando ao se separar de novo a luz das trevas
O Cristo Jesus vier sobre a nuvem,
Arrastando por um cordel a antiga Serpente vencida.

Da mesma forma que O'Neill, Murilo Mendes não deixa de fazer alusão ao trabalho do poeta, que, buscando no "arquivo do mundo" o material com o qual construirá seus versos, reunirá tudo, após passar pelo coração, na unidade do poema. Porém, isso não implica dizer que há nesse processo algum tipo de "espontaneidade", fruto da vivência, já que o resultado, o poeta só conquista palavra a palavra, depois de muito esforço. O poeta busca no cotidiano do mundo moderno, as palavras que vão compor seus poemas, e o uso que fará delas possibilitará a ele "inventar na língua uma nova língua":

É preciso reunir o dia e a noite,
Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos clarins do sangue.

Como podemos notar nesse trecho, a poesia pode abarcar tanto o "divino" quanto o "criminoso", que recebem um novo sentido dentro do poema no uso que o poeta faz da língua. O trabalho, tanto de Murilo Mendes como de Alexandre O'Neill, revela um grande esmero em torno da palavra, um exercício metalinguístico que faz com que a língua "atinja o seu limite", permitindo a compreensão do que Souza Dias chamou de "heterolíngua poética".

O verso "Quando aos homens se fundirem numa única família", que aparece na última estrofe do poema Ofício humano, nos remete a outro aspecto da obra de Murilo Mendes, presente também em O'Neill: o caráter cosmopolita, o desejo de convergência entre os povos, entre o local e o estrangeiro.

CIDADÃO DO MUNDO
"Já andei para marinheiro, mas pus óculos e fiquei em terra"

A miopia teria frustrado o sonho de ser marinheiro de Alexandre O'Neill, mas não impediu que o poeta, como bom lusitano, nutrisse em sua obra uma nostalgia pelo passado cosmopolita português. Como salienta Silviano Santiago acerca do povo português:
"Povo de marinheiros, o português acaba por exilar-se na própria terra."

Os poemas de O'Neill fazem eco a essa "voz antiga", refletem este sentimento tipicamente português, a saudade, bem como o cosmopolitismo de seu autor.

DAQUI, DESTA LISBOA...
Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por suíços habitada,
onde a tristeza vil e apagada
se disfarça de gente mais activa;

daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga

daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira de vida e piaçaba
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

daqui, só paciência, amigos meus!
Peguem lá o soneto e vão com Deus...

Consciente da ordem ditatorial vigente em Portugal, em que a "tristeza vil" rodeia a todos, O'Neill parece, neste poema, querer "gritar" ao mundo o que acontece em seu pais, onde uma realidade ameaçadora cerceia os direitos individuais. Realidade que o poeta busca subverter através das palavras.

Sonhando "ir do Brasil à China à cavalo", Murilo Mendes revela um cosmopolitismo que não respeita muralhas e fronteiras, como no poema Filiação, de Tempo e Eternidade, escrito em parceria com Jorge de Lima:

FILIAÇÃO
Eu sou da raça do Eterno.
Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.

Essas multiplicações que visam estar em toda parte, como podemos ver nos versos 3 e 4, "E desdobrado em muitas gerações / Através do espaço e do tempo", remetem ao nomadismo daqueles que levam uma vida errática. No verso 5, "Sinto-me acima das bandeiras", pode ser interpretado como a condição natural daquele que leva uma vida nômade, ou seja, perambulando de uma parte à outra não pertence a nenhuma pátria, logo não se submete a nenhuma bandeira. A seguir, nos versos 6 e 7, "Tropeçando em cabeças de chefes. / Caminho no mar, na terra e no ar", transparece a insubordinação daquele que, a despeito das autoridades, e não levando em consideração as fronteiras, leis e as muralhas, circula por toda parte, ainda que tenha que se embrenhar por entre as rachaduras destas muralhas, como os nômades que furam, ou contornam, as barreiras impostas pelo Imperador chinês, no ensaio "Poder sobre a vida, potências da vida", de Peter Pál Pelbart.

Nos poemas de O'Neill, assim como nos de Murilo Mendes, apesar da crítica que ambos dirigem à realidade presente, parece haver um otimismo em relação ao futuro, "como um apelo a uma comunidade por vir". Do lisboeta que quer dividir sua experiência com o estrangeiro, ao desejo de união entre os "órfãos da poesia", ressoa o desejo de liberdade e comunhão entre os homens. Em Murilo Mendes, o poema O poeta futuro, do livro As Metamorfoses, nos oferece uma síntese desse "ser/hoje" e "ser/futuro":

O POETA FUTURO
O poeta futuro já se encontra no meio de vós.
Ele nasceu da terra
Preparada por gerações de sensuais e de místicos:
Surgiu do universo em crise, do massacre entre irmãos,
Encerrando no espírito épocas superpostas.
O homem sereno, a síntese de todas as raças, o portador da vida
Sai de tanta luta e negação, e do sangue espremido.
O poeta futuro já vive no meio de vós
E não o pressentis.
Ele manifesta o equilíbrio de múltiplas direções
E não permitirá que algo se perca,
Não acabará de apagar o pavio que ainda fumega,
Transformando o aço da sua espada
Em penas que escreverão poemas consoladores.

O poeta futuro apontará o inferno
Aos geradores de guerra,
Aos que asfixiam órfãos e operários.


A denúncia, a solidariedade em relação aos oprimidos, o desejo de unidade entre os povos, o sonho de uma comunidade futura e da superação de uma realidade que amordaça a todos, o que também pode ser notado em O'Neill, transparecem nesse poema de Murilo Mendes, na voz de um poeta, um Poeta-Interventor.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DIAS, Sousa. O que é poesia?. s/l: Pé de Página Editores, s/d.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
O'NEILL, Alexandre. Poesias completas. 1951/1981. s/l: Imprensa Nacional ? Casa da Moeda, s/d.
PÁL PELBART, Peter. Vida Capital ? Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre ? Crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
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