O Caso Isabella E A Banalização Do Poder De Gerar



Pelo fato de o caso Isabella Nardoni ter provocado comoção público-midiática, enquanto diariamente, à sombra doméstica, outras crianças continuam sendo assassinadas, já sabemos que a justiça está perseguindo os assassinos e que a opinião pública parece satisfeita. À primeira vista, a mãe da menina está sendo elevada aos altares, também midiáticos e dominicais.

Entretanto, o intelectual que tem a tarefa de pensar fatos socialmente relevantes e até a tarefa de propor ações individuais e coletivas que previnam ou corrijam desatinos humanos, esses não têm a obrigação de dizerem o que a turba quer ouvir, muito menos de santificarem este ou aquele cidadão ou cidadã.

Pelo contrário! Por dever do ofício, às vezes esse tipo de profissional, formador de opinião, precisa ser amargo e mesmo cruel, no sentido de ver a realidade em sua crueza dura e sem o menor eufemismo.

Ao reverberar aqui neste artigo algumas falas de um desses que considero um intelectual que fala o que pensa, e não o que os ditames do pão e do circo querem que seja dito, talvez eu possa mexer com a sensibilidade de algum leitor. Entretanto, antes de qualquer idéia pré-concebida, antes de qualquer preconceito, o convite é à reflexão, à coragem de olhar a realidade tal qual ela é.

Vivemos em uma sociedade que absolutiza o "ter" em prejuízo do "ser". As pessoas se encontram numa correria tresloucada para acumularem coisas sobre coisas, as quais não levarão consigo quando deixarem este mundo.

Submissas aos imperativos do ter, possuir, acumular, consumir, lucrar... Muitas pessoas chegam ao cúmulo de verem a vida, a própria e a alheia, como uma mercadoria entre as mercadorias. Assim, em vez de um fim em si mesma, a vida passa apresentar a característica de meio, ponte para que outros objetivos e finalidades sejam alcançados. Entre eles, segurança econômico-financeira, estabilidade familiar, prazer lúdico e satisfação estritamente egoísta.

Já vi criança ser tratada como "meu brinquedinho", "minha princesinha", "minha companheirinha de oração". Minha, minha, minha... A possessividade falando mais alto do que qualquer outro valor que possa estar intrinsecamente presente no ser de uma pessoa que começa a viver.

É muito comum casais jovens dizerem: "É... os avós já estão cobrando um netinho..." Cobram um netinho como cobram o valor de uma dívida qualquer. Isso é fato, e não adianta dizer que não é assim.

Ao alertar-nos que "O 'problema da vida' surge apenas quando a vida não funciona", Cabrera (CABRERA, J. Projeto de ética negativa. São Paulo: Mandacaru, 1990), em seu livro Projeto de ética negativa, afirma que "A ética tradicional foi construída como se a vida fosse algo compulsivo, jamais enfrentou a possibilidade de tratar-se de uma escolha". Por esse motivo, o autor afiança-nos que ser "filho pode ser um Destino", assim como o são o nascer e o morrer. Em seguida, ele indaga: "... mas por que ser pai [mãe] o seria também?"

O fato é que ser filho não é fruto de uma escolha. Ser pai e mãe, porém, o é. E é exatamente nesse ponto, o da escolha, que residem motivos extrínsecos à própria vida que fazem certas pessoas quererem "ter um filho".

No caso Isabella, a coisa parece clara: um bom reprodutor, o pai, econômica e financeiramente garantido pela estrutura familiar, sendo disputado por duas mulheres pouco mais novas do que ele. Parece que elas vêem no estagiário de Direito aquilo que chama por aí de "bom partido", o eufemismo para "ele tem dinheiro".

Nesse caso, o "ciúme" denuncia interesses e as brigas escancaram os desejos egoístas de todos os lados. Em meio a tudo, as crianças, as únicas que não puderam escolher coisa nenhuma.

Não conheço as pessoas envolvidas nesse caso em discussão mais do que o brasileiro que vê televisão e lê jornais e revistas. Por isso não insinuo aqui que as maternidades e a paternidade envolvidas no episódio foram alcançadas por egoísmo cego. Porém, aproveito o ensejo desse debate para chamar a atenção para o fato de que isso tem ocorrido diariamente entre nós: o fato de interesses, caprichos, necessidades e desejos puramente egóicos estarem determinando a escolha por "ter filhos". Quando isso acontece, a vida não pode mesmo funcionar.

Penso que já entre nós uma certa banalização do poder de gerar. Por aqui, engravida-se para "segurar" um marido, à revelia dele; para se ter uma pensão alimentícia; para se herdar bens materiais e até para se ter com quem rezar.

Talvez seja o momento de pensarmos melhor no significado da patermaternidade. Se for para fazer com que a vida não funcione, é melhor que nos abstenhamos de procriar. Ou continuaremos a fazer vistas grossas para o fato de que muitas mulheres se engravidam apenas para tentarem a solução de problemas particulares? 


Autor: Wilson Correia


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