CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABANDONO AFETIVO PARENTAL



CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABANDONO AFETIVO PARENTAL

Difícil desassociarmos questões sociais do âmbito jurídico, mesmo quando arriscamos encontrar a justiça perdida em esteios moralistas ultrapassados. A evolução ainda não se desenvolveu por completo e novos meios de instrumentalizar o direito devem ser buscados frente aos desafios propostos pela sociedade. Então, as pessoas tentam encontrar no judiciário uma válvula de escape ou mesmo um apoio, nem sempre a partir de demandas sobre questões claras e objetivas, de fácil compreensão e baixa complexidade, mas subjetivas, com toda sua densidade em matéria de questões humanas. Por isso, nem toda demanda pode ser atendida. Como o jurídico tem como base o sentimento de servir à sociedade, o Direito não está voltado só para interesses pessoais. Mesmo quando atuando a partir de um interesse apresentado por um indivíduo, ele desenvolve-se cuidando dos interesses coletivos, pois tem sua própria função social inata.
Atualmente, a sociedade tem apresentado demandas individuais complexas, levando-as aos tribunais. Questões pessoais e subjetivas que eram abafadas e alguns assuntos delicados, principalmente no âmbito do Direito de Família, entraram em ebulição nas últimas décadas, e o que antes era uma massa informe, representada em demandas subjetivas, começou a ter distinções no campo da moral e ética.
Rodrigo da Cunha Pereira, durante uma palestra patrocinada pelo IBDFAM e pela Escola Lacaniana de Psicanálise, comenta que o campo jurídico tem uma coesa interação com a Psicanálise, hoje entendida como interação multidisciplinar. E que por meio dessa ligação entre essas disciplinas, podemos diferenciar o moralismo ultrapassado e, por meio da ética, encontrar a justiça tão almejada, no seu sentido lato.
O Direito fala de termos usados na Psicanálise, como o gozo, o qual se identifica com a definição de usufruto, que é uma noção dada pela ciência do Direito. Em um seminário sobre ética, Lacan mostra uma diferença entre o que é útil e o que é gozo e ressalta que o usufruto que entendemos juridicamente é um gozar sem gastar demais.
Ainda segundo a fala de Rodrigo da Cunha Pereira, citando Lacan ao dirigir-se a participantes de uma conferência, em uma faculdade de direito, tem-se que "a existência de códigos torna manifesta a linguagem" . O Direito, como um conjunto de códigos construídos pela sociedade, através de uma linguagem própria, explicita um campo normativo. Mas o recheio desse campo jurídico, dentro dessa visão, preenche-se com a Psicanálise, quando entendemos que o sujeito não é apenas um sujeito de direito, mas um sujeito com rompantes de desejo e gozo. Há, então, a desconstrução das velhas formas jurídicas de conhecimento, e a Psicanálise é uma revolução que se faz no Direito, como sustenta Rodrigo da Cunha Pereira.
Isto é, pode-se compreender o Direito como o campo normativo construído pela sociedade e não como um conjunto de regras imutáveis. Acreditar na falsa rigidez das leis, que não se sustenta por si própria, suprimindo os sujeitos que a fazem existir, é um equívoco.
A codificação dos Direitos da Personalidade foi se ampliando com a evolução dos Direitos Fundamentais e em paralelo com nossas mudanças de paradigma, que atualmente têm como base a complementaridade e integração, e não mais a disjunção. O conhecimento da formação da personalidade aponta assim para um contínuo entre a psique e corpo, indivíduo e família, família e sociedade.
Rodrigo da Cunha Pereira3 trata, especificamente, do Direito de Família, enfatizando a presença da subjetividade do indivíduo na objetividade dos atos e fatos jurídicos, onde podemos digressionar para questões em que é considerável o que determina o sujeito a fazer algo e a própria essência do ser humano. O objeto do Direito não são as leis, mas, sim, o homem. O sujeito de direito é um sujeito de desejos. Uma característica elementar que se insere na constituição do que chamamos de família. Mas o que complementa a compreensão da possibilidade de vários arranjos jurídicos sobre entidades familiares e suas representações sociais é a Psicanálise.
"E somos seres que repetem ao longo de gerações as mesmas experiências que constituem nossa subjetividade, nossa objetividade e nossa intersubjetividade".

A paternidade, então, torna-se questão fundamental para o ser humano, seja para o âmbito do filho quanto para o pai, pois ajuda a entendermos porque somos como somos. O filho busca uma referência. Saber quem é seu pai e através dele encontrar outros elementos de sua própria história são demandas inscritas nos aspectos não só materiais, mas sobretudo psicológicos dos indivíduos.
No "Dia dos Pais", muitos se sensibilizam, pois inconscientemente ligam a data com suas origens, insiste Rodrigo da Cunha Pereira em um seminário sobre parentalidade e filiação para estudantes de Direito e Psicanálise. Encontramos aí a persistente interação multidisciplinar e o estudo do inconsciente. "A partir do momento que tivemos conhecimento do inconsciente, tudo mudou, inclusive o Direito", conforme Freud.
Podemos entender dessa análise de estudos, apresentada por Rodrigo da Cunha Pereira, que a primeira lei de Direito de Família foi a lei do incesto. E não só através dele, pois em uma entrevista concedida com exclusividade a mim pela Desembargadora Maria Berenice Dias, a mesma enfatizou a importância em entender esse interdito proibitório e suas conseqüências no campo da indenização por abandono afetivo. Por meio da tênue ligação entre pais e filhos vai se construindo emaranhados de subjetividades familiares.
Inconscientemente, a proibição ao incesto significa a interdição que o pai faz em relação ao filho que deseja a mãe, para separá-lo da simbiótica relação mãe-filho e permitir que esse filho se torne uma pessoa ou se torne um sujeito. Não um sujeito do mero dever-ser ou do ter, mas um sujeito do ser.
"O" pai equivale a "um pai", ou seja, pode ser qualquer pai, pode até ser a mãe. Desse modo, a visão familiar que sobrevém é que pai e mãe são funções exercidas que estruturam o sujeito, questões não exclusivamente da ordem da natureza, mas da cultura. Uma grande contribuição de Lacan para o conhecimento jurídico é o pensamento de que "as famílias vão variando de acordo com a época" , ao falar que a família ? núcleo básico, essencial, estruturador e estruturante do sujeito - não está necessariamente ligada à genética, à biologia, como pensamos de uma forma condicionada ao moralismo social.
Parafraseando Giselle Câmara Groeninga:
A natureza, a família, a cultura ? ingredientes que formam a personalidade ? em uma combinação única, singular. Cultura que muitas vezes ameaça a singularidade da personalidade, e perante a qual é necessária a tutela negativa, a proteção e o constante redimensionar do público e do privado.

Surgem assim novas nomenclaturas, como por exemplo, a paternidade socioafetiva, que é a mais importante em termos significativos para os pais e filhos, opinião reiterada de Rodrigo da Cunha Pereira. A verdadeira paternidade é adotiva, como diz Paulo Lobo: "pai é aquele que adota afetivamente seus filhos todos os dias".
O pai se presentifica até mesmo na ausência, pelo discurso da mãe, e a psicanálise nos orienta ao entendimento do que seja a imago paterna, que é muito mais uma representação, não tendo necessariamente a corporificação da figura genética. Voltamos então ao exemplo de Lacan, que afirma que a família não está necessariamente condicionada à genética ou à biologia. Hoje em dia, a ciência oferece a inseminação artificial . Outro exemplo contemporâneo dessas mudanças visíveis no mundo jurídico é o "contrato de geração de filhos", exemplo de Rodrigo da Cunha Pereira no Seminário de Direito e Psicanálise , no qual um casal que não pode ter filhos por um motivo relevante escolhe outro casal que tem condições para gerar esse filho e, ao nascer, o filho será do primeiro casal que não tinha condições biológicas.
Tornam-se visíveis as necessárias mudanças na rigidez moralista dos responsáveis do Direito para com os indivíduos que buscam um meio de encontrar uma tutela para a satisfação pessoal, por meio da afetividade e solidariedade. E essa busca pela satisfação pessoal dentro da noção de bem-estar, motiva a conseqüente evolução jurídico-social.

1 Diferenças sociais impostas pela cultura
Quando encontramos na sociedade dois irmãos, formando uma família anaparental, não há dúvida que são uma família, mesmo que esta não corresponda ao arranjo tradicional. Rodrigo da Cunha Pereira mostra que o anormal não cabe como classificação para essa espécie de família. Entramos, então, em um conflito entre concepção moral, que é de natureza particular, e o quanto ela pode ser perigosa, pois é relativa e relativizável, e o conceito de ética que a supera, enxergando a individualidade do sujeito.
Rodrigo da Cunha Pereira exemplifica como a ética se sobrepõe à moral:
Foi uma vitória da ética sobre a moral o julgamento recente que, embora de ordem privada, tornou-se público, onde concedeu-se a tutela de uma criança à companheira da falecida mãe, uma cantora conhecida, em detrimento do avô, que estava na ordem de preferência do então Código Civil.

Para evitar danos afetivos, nas relações intersubjetivas, a interação multidisciplinar com a Psicanálise respalda essas mudanças, comprometendo-se com os direitos das crianças à convivência familiar, garantido na nossa Carta Magna, tema de amplo conhecimento entre os profissionais do Direito.
Para entendermos o amplo conceito de família, podemos recorrer a quem melhor trata desse conceito, não restrito ao mundo jurídico, complementando-se com a Psicanálise, que é Lacan : "família é uma estruturação psíquica onde cada membro ocupa um lugar, uma função; são esses lugares estruturantes e definidos. São definidores da estrutura do sujeito". Devemos evitar exercer o juízo moral das questões particularizadas para não repetirmos a história do Direito de Família, que é uma história de exclusões, muito bem apresentadas por Rodrigo da Cunha Pereira. Como exemplo, temos o tratamento dado aos filhos havidos fora do casamento, que não podiam ser registrados: "moral hipócrita levava o filho a existir no mundo real e não poder existir no mundo legítimo". Neste caso, não podia ser incluído no âmbito social em nome de uma moral, indigna-se Rodrigo da Cunha Pereira .
A grande mudança da família se deu a partir do momento em que as pessoas começaram a casar por amor e não mais por uma questão econômica, patrimonial. A família era essencialmente um núcleo econômico de reprodução e quando o amor, o afeto tornou-se um valor jurídico, mais que um valor, um princípio, as pessoas saíram da esfera superficial e objetiva para mergulhar na subjetividade dos atos e fatos existentes na sociedade, na subjetividade inerente a todo ser humano. Kant há muito desenvolveu seu pensamento no sentido de que para surgirem os princípios, temos que entender a diferença entre a moral e a ética.
Na família é que podemos apreender e compreender as diferenças, passando de um amor egoísta para um altruísta. Cito Freud : "O amor por si mesmo (narcisismo, a paixão por si) conhece só uma barreira ? o amor pelos outros [...]". E no desenvolvimento da humanidade como um todo, assim como nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador no sentido de trazer uma mudança do egoísmo para o altruísmo.
Os princípios são associados à evolução da tecnologia, evolução do conhecimento científico. Antigamente, o Direito de Família era esteado no clássico tripé: sexo, casamento e reprodução. O casamento legitimava as relações sexuais, mas hoje nem é necessário mais sexo para haver reprodução. A sexualidade é plástica, podemos inventar formas alternativas. Rodrigo da Cunha Pereira inova os conceitos e desenferruja os princípios incrustados no direito de família.
Novas formas de manifestação da paternidade e da maternidade baseadas na influência que os pais exercem sobre os filhos em função da parentalidade, enquanto relação socioafetiva, estão sendo valorizadas e ressaltadas no Direito de Família. Se a família tem um papel predominante na estruturação psíquica da pessoa, um exemplo da valorização de uma nova concepção de parentalidade é a nova lei de guarda compartilhada. Se não tivesse sido legitimada a guarda compartilhada, retrocederíamos à desvalorização do afeto e ao descaso ao melhor interesse da criança e sua proteção.
Podemos exemplificar fatos recentes, como aduz Giselle Groeninga: "Nos casos de disputa pela guarda de filhos, tende-se a diminuir a importância de um dos pais. Nesse sentido chamo a atenção para a necessidade de compartilhamento da guarda ? princípio norteador das relações parentais - após a separação. Na atribuição da guarda única, o sistema legal replica nos filhos o trauma da separação conjugal".
Resultado de um movimento de pais que se uniram e apresentaram um projeto de lei reivindicando seu papel afetivo na história dos filhos, a nova lei preserva o papel do pai como provedor de proteção e afeto e não apenas como provedor material,ventende assim Rodrigo da Cunha Pereira . A função do Direito frente às disputas dos casais é muitas vezes colocar um "não", colocar um limite nesse arenoso e movediço espaço afetivo familiar.
O Direito vinha proclamando a mãe como principal figura do afeto e da proteção, relegando o pai, nos casos de disputa de guarda dos filhos, em casos de separação do casal, mediante precedência dos interesses da mãe. Exemplo disso é a recorrência de exclusividade à convivência com a mãe, reservando-se ao pai o espaço das visitas periódicas.
Os direitos atribuídos na prática à mãe eram de qualidade diferente daqueles reconhecidos ao pai, em caso de separação do casal. Pais inconformados com a redução de seu papel às obrigações econômicas realizaram um movimento de conscientização deste conteúdo das sentenças, que reduzia o papel paterno e limitava seus direitos, assim como os direitos da própria criança, desrespeitando e violando os princípios do melhor interesse da criança e sua proteção, do direito de convivência com os pais e do direito à personalidade.
Vários fatores históricos vêm relativizando a autoridade paterna. Abre-se um campo de construção de novos significados à parentalidade e aos personagens da família. Os papéis se intensificam e a falta de atitude, a ausência dos genitores, não mais condiz com o modelo contemporâneo do Direito de Família.
Para Ana Luiza Ferrer , o direito é uma sofisticada técnica de controle das pulsões. Podemos dizer que hoje o declínio da autoridade paterna é o resultado de diversos elementos como: o mercado, o consumo, associado com a revolução feminista (mulher sujeito de direito) sustentada pelo princípio da igualdade.
Podemos, também, pensar que a partir da lei do divórcio, as mulheres conquistaram a ferro e fogo seu espaço no mercado de trabalho, e o homem que era o provedor perdeu força ao encontrar uma forte adversária.
Todos estes fatores, aparentemente contraditórios, levam ao questionamento de normas e ao reconhecimento de aspectos subjetivos das relações parentais. Mas o aspecto da subjetividade que se aborda aqui, nesse trabalho, é: esse homem que tem seu papel relativizado, em declínio, como ele pode ser pai? O que é ser um pai? Muitos, de uma forma racional entendem que é o que paga as contas. Ou o que deu espermatozóides para gerar o filho. Questão mais complexa frente à o que é uma mãe (mais umbilicalmente ligada), pois não se tem dúvidas quanto a quem é a mãe. Essa é uma questão recorrente e que pode ser vista pelo ângulo da naturalização das funções paterna e materna, mas na sociedade atual essa concepção naturalista está posta em questão. Assim, para o Direito é também oportuno questionar-se quanto a esta concepção natural como seu esteio, parafraseando Rodrigo da Cunha Pereira.
Há que se distinguir as categorias ?paternas?: paternidade registral (civil, não necessariamente biológica), pai biológico (não necessariamente no registro civil), pai afetivo, de onde surge a importância da função "adotiva"24 para suprir lacunas de sujeitos carentes de afeto que somos.
Na década de 80, com o maior acesso a exames de DNA, mudou-se o foco de argumentos que antes eram utilizados na defesa do homem e, até mesmo, sua saída de emergência, isto é, a alegação do excesso pluri-concumbente da mãe, nos casos em que uma mulher afirmava ser um homem o pai do seu filho. Era invasiva e prepotente essa visão, pois a investigação se dava em relação à vida moral, sexual da mãe. Com a ampliação dos conhecimentos da engenharia genética, através do exame de DNA, retira-se o foco moralista e atém-se mais ao foco científico, que é ético e justo.
Nos casos exemplificados, em debates atuais, o homem tem o papel do genitor, mas "pai" tem outro significado. O pai é aquele que exerce o papel socioafetivo, questão nova para o direito, a qual precisa amadurecer mais no campo normativo.
Amadurecer no sentido de absorver essas mudanças de uma forma que se coloque em prática essas questões intrínsecas e subjetivas de cada um, conforme propõe Rodrigo da Cunha Pereira. E não devemos nos amedrontar frente a esses novos modelos, arranjos e conceitos familiares. Temos que seguir o fluxo da onda para podermos velejar seguros nessas novas águas.

2 Certa intimidade entre estranhos
As novas representações de família nos assustam porque ao mesmo tempo em que evitamos o pensamento de que filhos sejam o resultado de uma relação instintiva, fruto de qualquer relação entre homem e mulher, também não queremos seguir o modelo que reduz a maternidade/paternidade a um cálculo onde o filho é um mero resultado pretendido.
Ainda que as novas tecnologias reprodutivas permitam os mais variados arranjos familiares, há um tempo diferente para a aceitação social e para a construção normativa frente a estes novos arranjos, afirma Rodrigo da Cunha Pereira. Uma das questões recorrentes no argumento de não aceitação destes novos modelos é o questionamento: será que essas crianças serão anormais? "Certamente que não. O mesmo preconceito se tem com o filho adotivo. Quando ele dá problema é porque é filho adotivo: ?falei que não era pra adotar?, reafirmam alguns. O que é um grande preconceito, porque filho dá problema. Qual é o filho que não dá problema?", passa a vez a quem se atreva a responder, o autor Rodrigo da Cunha Pereira .
O relevante da indagação é como os pais adotivos vão lidar com o desamparo, sentimento que pode sobrevir nesta relação, de parte do filho adotivo. Mas, vejamos, segundo alguns autores da Psicanálise, no fundo, somos sujeitos desamparados e estamos sempre querendo o amparo. Pensamos ter saído dessa esfera quando encontramos o grande amor da vida, por exemplo. O que não passa de uma ilusão, pois muitos psicanalistas sustentam que somos desamparados, sujeitos de desejo de desejo, como diz Lacan : "estou sempre desejando alguma coisa".
O sentimento de que está sempre faltando alguma coisa é uma questão humana e não uma questão específica daqueles que são filhos adotivos. Esse ponto de vista, como outros que já referimos sobre a parentalidade, desconstrói mitos que muitas vezes levaram a normas que hoje vêm sendo modificadas, conforme exemplificamos antes.
Para o filho que é adotivo nos termos jurídicos, o sentimento de desamparo pode ser maior que o de outro filho, biológico, que sofre a ausência do pai em virtude de uma separação, por exemplo. Isto porque o sentimento de ter sido abandonado também pela mãe biológica, sua ligação umbilical, estará presente. Mas se bem trabalhada a formação e desenvolvimento de sua personalidade, ele será filho como qualquer outro, sem distinção.
O desamparo relacionado ao afeto como valor jurídico e associado ao princípio da dignidade humana nos dão uma pista de como devemos trilhar esse caminho para não cairmos em lugares arenosos e movediços, pois o afeto é uma parte integrante dessa estrutura de família, e como diz Rodrigo da Cunha Pereira : "assim como se precisa de alimento para o corpo, precisa-se de alimento para a alma, que é o afeto".
Quando falamos que pai e mãe são funções, as mesmas são inerentes do poder familiar, termo ora preconceituoso, pois devemos entendê-lo no contexto da parentalidade. Impor limites é também dar afeto; pai que não dá afeto, que abandona afetivamente o filho está descumprindo um dever. Mas temos como obrigar alguém a dar afeto, a dar amor? Não temos como obrigar, da mesma forma que sabemos que o amor não tem preço . Caímos então, em um primeiro momento, em um poço onde tentamos visualizar as chances de conseguirmos sair e nos perguntamos qual será a mola propulsora.
Na relação parental do pai com o filho ou da mãe com o filho tem-se um dever, uma obrigação. Nesta concepção "temos que distinguir regra moral de regra jurídica; e se é uma regra jurídica tem que ter uma sanção, então como deverá ser essa sanção?"
A polêmica torna-se a requisitada mola propulsora para a saída do poço. O caso do TJMG que condenou um pai a pagar 200 salários mínimos por abandono afetivo, o qual o STJ cassou, será julgado no STF. Refere-se ao processo nº RE/567164, Relatora Ellen Gracie. A defesa de Rodrigo da Cunha Pereira argumenta: "essa decisão é muito importante porque traz outro paradigma: o que estrutura, o que garante a existência do sujeito não são só os bens materiais. Para que sejam sujeitos da própria vida é preciso mais que isso. Na essência desse sujeito está o amor e o afeto", defende o advogado do Autor.
Não podemos deixar de transcrever na íntegra o conteúdo jurídico que Rodrigo da Cunha Pereira leu no Seminário de Direito e Psicanálise , como sua defesa humanista e tocante sobre a questão:
O declínio da autoridade paterna como fim da ideologia patriarcal apresenta hoje sintomas sociais sérios e alarmantes: se os pais fossem mais presentes na vida dos seus filhos, certamente, não haveria tantas crianças e adolescentes com evidentes sinais de desestruturação familiar; ingenuidade pensar que esses sintomas sociais que o cotidiano nos escancara são conseqüência apenas do descaso do Estado e de uma economia perversa. O que empurra um sujeito da favela para a marginalidade e o faz por fogo em um ônibus é o mesmo desejo desencaminhado que faz o adolescente de classe média ou rica, em Brasília, atear fogo em um índio dormindo num ponto de ônibus. É muito mais cômodo para nós, inseridos nesse contexto histórico do declínio do patriarcalismo e da sociedade de consumo, explicar e entender pela teoria econômica como se fabricam ?Fernandinhos Beira- Mar?, e o porquê de tantas crianças abandonadas, criminalidade juvenil, de tanta droga..., podemos até mesmo enveredar por uma visão moralista e pensar que todos esses sinais de violência começaram após 1977 com o divórcio no Brasil e, conseqüentemente, um aumento crescente de separação de casais e novas formas de constituição de família. A compreensão de uma organização social e jurídica da família contemporânea deve pressupor que a subjetividade interfere e está contida nessa organização, é nesse sentido que os julgamentos que dizem respeito às relações familiares devem levar em conta não apenas o texto jurídico, mas o contexto jurídico e social. É assim que alguns casos particulares emprestam sua história e com coragem abrem mão de sua privacidade tornando pública sua tragédia pessoal para fazer avançar tais discussões. É assim que, recentemente, no STF deu-se o julgamento sobre a antecipação terapêutica do parto, nos casos anencefálicos; e no dia 29 de novembro de 2005, no STJ, o julgamento de um caso em que um filho abandonado afetivamente pelo seu pai reivindicou, com base nisso, reparação pelos danos morais sofridos, desse julgamento a Quarta Turma, com 4 votos a 1, anulou a decisão do TJMG em que este havia concedido a indenização ao filho; história de pai que abandona, isto tem sido quase um lugar-comum, quase uma repetição de histórias de centenas ou milhares de crianças..., o casal se separa e uma das partes vai viver uma outra história amorosa, constitui uma nova família, e encontra muitas justificativas para não estar presente na vida do filho do casamento anterior..., pais que não se comprometem com os filhos e empurram para a mãe a função paterna; no caso julgado pelo STJ , o abandono era apenas afetivo, o pai sempre pagou pensão alimentícia ao menor, mas faltou alimento para a alma, afinal de contas nem só de pão vive o homem; o pai por seu lado apresentou suas razões de que a ausência se justificava por ter se casado novamente, moravam em cidades diferentes, etc. Será que alguma razão, alguma justificativa é válida para um pai deixar de dar assistência moral e afetiva a um filho? Ausência de uma prestação material seria até compreensível se se tratasse de um pai totalmente desprovido de recurso, mas deixar de dar amor e afeto a um filho? Não há razão capaz de explicar tal falta. A importância desse caso transcende a esfera do particular e traz uma nova reflexão para o direito: um pai ou uma mãe que se nega conviver [grifo nosso] com seu filho menor ou não dar afeto está infringindo a lei e deve ou pode ser punido por essa falta? O exercício do poder familiar, que é o conjunto de direitos e obrigações dos pais segundo o artigo 1634 do CC - está claro que este é um dos deveres dos pais com relação aos seus filhos - disso ninguém duvida; e se nem desconhece a razão denegatória do STJ36 ao pedido do filho; as razões apresentadas estão apoiadas em que não se pode coagir um pai a amar seu filho, pois afinal o amor não tem preço e não há como obrigar alguém a amar outrem e nem pais aos filhos e vice-versa. Tudo isso é bem compreensível, claro, não se pode obrigar ninguém a amar, no entanto a essa desatenção e a este desafeto deve corresponder alguma coisa, pois senão o que se teria? Um direito vazio, inexigível, o que, como se vê, não faz sentido algum. Se um pai ou uma mãe não quiserem dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, ninguém pode obrigá-lo; a indenização, então, estaria monetarizando o afeto? De maneira alguma, o valor da indenização é simbólico, apenas uma função punitiva, mais que isso, uma função educativa, afinal não há dinheiro no mundo que pague o dano e a violação dos deveres morais à formação da personalidade de um filho rejeitado pelo pai. No caso do Alexandre (Autor), ele vai pegar o dinheiro e dar para uma instituição de caridade, o dinheiro é simbólico. A indenização por danos morais vem crescendo no Brasil; a partir de 1988, da nova Constituição da República, principalmente, nas relações de consumo, indeniza-se facilmente por um constrangimento ou sofrimento causado por um cheque devolvido, incorretamente, ao banco. Por outro lado, o STJ não admite nas relações de família - realmente, assunto perigoso e o terreno pode ser movediço, pois corre-se o risco de se instalar uma indevida indústria indenizatória com uma avalanche de pessoas reivindicando aos tribunais indenizações por todos os sofrimentos das relações amorosas. Precisa-se separar o joio do trigo. Certamente os tribunais terão maturidade para entender que não é bem assim, afinal sofrimento faz parte da vida e os adultos são responsáveis por seus encantos e desencantos, mas os pais são responsáveis pela educação de seus filhos, sim, e pressupõe-se aí dar afeto, apoio moral, atenção; abandonar e rejeitar um filho é violar um direito, insista-se, a toda regra jurídica deve corresponder uma sanção sob pena de tornar-se uma mera regra moral. Uma das razões da existência jurídica é de obrigar e colocar limite em quem não o tem. A lei jurídica, externa ao individuo, é voltada àqueles que não a tem internamente, isto é, para quem não age conforme os preceitos éticos e morais internalizados pelo seu próprio espírito. Se todos agissem com retidão não haveria necessidade da lei jurídica; o direito só existe porque existe o torto; o afeto é um valor jurídico e também um pressuposto da autoridade e das funções paternas e como não é possível obrigar ninguém a dar afeto, a única sanção possível é a reparatória; não estabelecer tal sanção aos pais significa premiar a irresponsabilidade do abandono paterno. Nossa esperança no judiciário é que ele possa entender a importância e a dimensão simbólica de casos como este e propor julgamentos alicerçados em novos paradigmas jurídicos que traduzem as concepções de uma justiça mais contemporânea; premiar pais abandônicos significa também que pais poderão continuar deixando às mulheres o exercício de educação dos filhos, e, com isso, enfraquecendo cada vez mais a autoridade paterna que já está em declínio, já que o afeto é um dos principais integrantes dessa autoridade e do exercício do poder familiar. Se a decisão da justiça mineira negada pelo STJ38 e agora no STF39, além de inédita e paradigmática, é histórica, ela consolida, instaura, instala o afeto como novo valor jurídico. Repita-se, elemento essencial de toda e qualquer forma de família, e reconhece que a ausência dessa responsabilidade paterna e filial fere o direito constitucional e fundamental no campo de um macro princípio que é o da dignidade humana, que é também base de sustentação dos direitos humanos. Embora essa decisão ainda não tenha transitado em julgado, ela já se tornou uma das mais importantes fontes jurisprudenciais. Ela abriu caminhos, possibilidades, e, até mesmo esperança, para milhares de crianças e adolescentes desse Brasil.

Vendo por esse lado humanista, que não diverge do racional, Lacan reivindica que a Psicanálise é a única teoria que leva em conta o sujeito, e afirma que um direito que inclua uma concepção psicanalítica é uma ciência das normas que inclui uma singularidade caso a caso. Temos aí uma visão futurista que deve ser praticada pelo Direito contemporâneo.
A noção de família, que é muito cara à Psicanálise, relaciona-se aos lugares necessários para uma estruturação subjetiva da personalidade do sujeito. O desamparo, ou abandono, para a Psicanálise é, fundamentalmente, o abandono de um lugar no qual aposta um sujeito em um discurso (contexto) parental, em como ele vai ser entendido em sua posição dentro da sua família.
A questão da parentalidade se baseia, então, na questão do amor. O parental é o conjugal? O pai está em função com o filho por ter desejado outra pessoa, ter estabelecido uma relação de desejo e gozo que foi transmitida para além e atinge a esfera do amor? São questões que passam pela cabeça de qualquer um que mergulhe nessas águas misteriosas. A sentença jurídica, no entanto, coloca um limite nesse gozo, ou seja, a sentença jurídica traz o conceito de usufruto, de utilidade deste bem que deve estar disponível, e que está sendo reivindicado.


Autor: Vinícius Spíndola Campelo


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