Meus fantasmas



meus fantasmas

i. lobo mau

Quatro ou cinco anos.
O bicho papão para mim
era o Lobão do Walt Disney.
Foi o primeiro vilão
depois da barata.

Comecei a andar,
fugia pelado pela casa
após o banho.
A mãe alertava:
?vem botar a roupa
que a barata vai comer
seu lulu?.

Quando tomei banho
com minha irmã,
achei que a barata
tinha comido
o lulu dela.

Lulu e lalá.
O fantasma passou a ser
o bicho papão.
Seu ataque era apenas
se manter colado de costas ao teto,
bem acima da minha cama.

Bastava que eu me mantivesse
de bruços
e não abrisse os olhos por nada.
Sonhos bons logo
ocupavam meu sono de criança.

13.10.2010

ii. Dona Aurora

Mais para fada
do que propriamente fantasma.
Uruguaia, solitária,
moradora da última casa da vila.
Viúva, abandonada, tinha família,
ninguém sabia.

Cobria-se com um hábito preto,
tal qual o das freiras.
Dava biscoito para as crianças.

Um dia, morreu.
Fui pentear cabelo
e a vi no espelho da penteadeira,
atrás de mim,
sorrindo,
o pote de biscoitos nas mãos.

Corri lá fora,
achei a Sílvia,
ou a Paula.
Ela também viu
Dona Aurora no espelho,
corremos os dois.

Nenhum adulto
deu trela.
Ainda a vi por alguns dias,
sei lá,
tempo de criança.
Depois se foi.
Mais tarde, mudamos da vila.

13.10.2010 .

iii. a viúva macabra

Se algum amigo meu
tem poderes extrassensoriais,
ele é o Lasneaux.
Ficamos amigos
no curso de alfabetização.

Criativo, sensitivo, talentoso.
Um menino de brincadeiras inteligentes.
Botão de galalite,
figurinhas de chicletes,
futebol, playmobil.

Ali na subida do quartel,
ele me contou que naquela casa,
com dois leões ladeando
o portão de entrada
sentados sobre as colunas,
morava uma viúva
que mantinha o caixão
com o amado morto dentro
no porão.

Diziam que conversava
com ele
à noite.
Outros, que bebiam vinho
na mesma taça.
Diziam até que fora ela
a assassina.

Fiquei muito tempo
sem passar sozinho
em frente àquela casa.
Os leões, sérios e quietos.

13.10.2010

iv. são cristóvão do castanheiro

Mudei para o B.N.H.
Meu pai tinha um fuscão vermelho.
Virei rapaz.

Namoradinhas, bebidas.
Voltava sozinho tarde da noite
a pé,
três quilômetros.

O pai levava a gente
a toda procissão de São Cristóvão,
padroeira da igreja
do Jardim Valença.
Procissão de carros,
um barato.

Madrugada,
voltando sozinho a pé,
via pelo rabo-de-olho
o santo inteiro,
com Jesus menino no colo,
na frente do portão
do cemitério do Castanheiro.

Andava mais rápido
e o santo não corria atrás.
Curava um pouco o porre.

Roubaram o fuscão do pai.
Não fui mais
à missa de domingo,
porque estava sempre de ressaca
pela manhã.

Não vi mais São Cristóvão.

13.10.2010

v. o guardarroupa

Vô Filhinho, eu moleque,
me perguntava sempre
se eu já fechava a porta do banheiro
quando ia mijar.
Morreu, eu tinha onze anos.

No meu quarto tinha
um guardarroupa cascudo,
de madeira boa, indestrutível,
duas portas, sem gavetas.

Sonhei uma noite com o Vô.
A mãe me puxou pelo corredor
e me apresentou uma mulher
com um filho no colo,
que só me olhou de lado.
Já achei estranho (e a mulher era albina).

Música de sanfona vinha da sala.
O Vô dançando, ao me ver,
me agarrou forte, besteiro,
e me perguntou enquanto girava
se eu já fechava
porta do banheiro.
Lembrei-me de que o Vô morrera,
quis acordar.
Mas o Vô apertava mais,
eu sentia seu cheiro.
Estava de costas para o guardarroupa.

Tentei gritar
para fugir do sonho.
Fiz muita força e só ouvi
sussurros sufocados.
Resolvi abrir os olhos.
Vi, por uns dez segundos,
uma tela meio azul claro,
meio verde,
da cor dos meus olhos
(parecia ver por dentro),
até que, de repente,
o quarto voltou.

Não dormi mais.

A assombração passou
para o guardarroupa.
Eu sabia tudo o que tinha
na minha bagunça,
cada roupa, cada cobertor,
cada coisa que escondi,
litro de conhaque,
maço de cigarro,
pôster de mulher pelada
em close.

Mas, à noite,
se me pegasse dormindo
de costas para o guardarroupa,
fazia muita força
até que, enfim e bufando,
acordava
e tomava de novo posição frontal.

Não sonhei mais com o Vô.

13.10.2010

vi. a casa do Benfica

Tia Nante,
na verdade Hibernant
e tia-avó,
morou sozinha lá.
Solteirona.

Primeiro moravam
ela e um tio mais velho.
Depois, só ela,
até que ficou bem velha
e foi morar
com a Vó Marcela.

O Tio Coto passou
a administrar a casa vazia
e a loja na frente.
Um dia me ofereceu de graça
a casa,
sem condições de uso.
O pai me ajudou na reforma.

Um quatro continuou
muito tempo trancado
com velharias lá dentro,
lembranças de outros,
fantasmas antigos
de outras histórias.

O Lasneaux foi lá uma vez,
das raras em que volta de Brasília.
Franziu a testa.
Arregalou os olhos
e falou baixo que sentia ali
uma energia ruim.

Hoje a casa velha já foi derrubada.
Tia Nante morreu, Tio Coto vendeu.
Funciona um estacionamento.

13.10.2010

vii. a casa dos Pitocos

Juntando um dinheiro
para construir um xalé
no Vale Verde,
mas há mais de quatro anos
no Canteiro,
na casa dos falecidos Pitocos.

O Saporil é sobrinho deles.
Brincou um dia,
disse que a casa é assombrada.
Não é o Lasneaux,
não liguei.

Mantive, estranha coincidência,
coisas velhas da casa
no quarto dos fundos,
e o vício de beber
após o expediente,
do regime semieterno
direto para o bar.
Se ventava, coisas faziam
barulho
no quarto dos Pitocos.
Ia lá de bom humor
e fechava a janela.

Um dia voltei para o meu quarto,
janela de lá fechada,
e me deitei de foguinho
para dormir.

Pela porta entreaberta
pude ver a luz do banheiro
se acender.
Morri de susto:
será que os PItocos
não querem errar o vaso!?
Era só mau contato
no interruptor.

Um dia, sonhei
como no tempo do guardarroupa.
Achei que havia
um homem barbudo na janela,
uma mulher na porta
me espiando dormir.

Demorei para acordar,
apesar da vontade.
Eles não estavam (mais) aqui.
Que estejam bem
onde estiverem.
Estou bem aqui,
tenho bebido bem menos,
graças a Deus.

Não sonhei mais com eles,
o quarto dos fundos
agora é aproveitado
como quarto do Kareca,
música, leitura e conversa.

Troquei o interruptor
do banheiro,
venho mais calmo,
sorrindo mais,
reparando nas asas
dos meus fantasmas.

18.10.2010

Autor: Roberto Jr Esteves Siqueira


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