DA RODA DOS EXPOSTOS À CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA DA INFÂNCIA: UM REPENSAR SOBRE OLHARES, CONTEXTOS E DIREITOS EDUCACIONAIS DA CRIANÇA



Ana Paula Bittencourt Santana

INTRODUÇÃO

Concepções de criança, educação infantil, formação de profissionais, atendimento institucional, reordenamento legislativo, são temas que vêm norteando uma série de discussões sobre a necessidade da construção de uma pedagogia que dê conta tanto das particularidades da criança, ao considerar seus processos de constituição como ser humano que se desenvolve em diferentes contextos sócio-culturais com capacidade cognitiva, criativa, estética, expressiva e emocional singulares, quanto à condução da sociedade no que se refere à inclusão de um novo olhar, de um novo contextualizar e de um novo efetivar, se assim posso dizer, de elementos que pertencem ao mundo infantil.

Para suscitar algumas reflexões sobre estes olhares, trago inicialmente uma referência a uma prática muito desenvolvida no século XVII: o abandono de crianças na roda dos expostos , o qual embora tenha decorrido de um problema social posso traçar uma analogia no âmbito educacional. Para uma melhor compreensão, analisemos o que era a roda dos expostos.

Em relação à estrutura física, a roda dos expostos era um aparelho de madeira, com formato cilíndrico com um dos lados abertos onde se punha a criança, onde ao ser girado introduzia a criança no local, na maioria das vezes, asilos de menores abandonados, atual orfanatos. A identidade da pessoa que "largava" a criança naquele local era preservada, pois não era vista, deixando de ser responsável pela manutenção das condições de sobrevivência da criança. Socialmente, a roda constituía-se um instrumento de rejeição, onde as crianças eram consideradas por aqueles que as deixavam como sem história, sem identidade e sem valor, para as quais não havia voz e nem vez.

Infelizmente, mesmo depois da extinção deste aparelho, o problema de abandono continua das mais variadas e cruéis formas possíveis.

Trazendo esta discussão para o âmbito educacional, percebo que muitas vezes a criança tem sido abandonada à mercê de concepções equivocadas sobre ela e seu desenvolvimento, à mercê da desqualificação profissional, de ambientes inadequados, da inoperância de leis, do afeto, dos processos de socialização, de uma educação de qualidade, os quais configuram em instrumentos de rejeição às crianças ao não possibilitar a estas os cuidados devidos, tratando-as como sujeitos a-históricos, sem identidade e sem valor.

A partir destas assertivas, trarei algumas representações da criança ao longo da história e elencarei alguns elementos necessários à reflexão da construção de uma pedagogia que conceba a criança dentro da sua real significância e complexidade.

2. REPENSANDO ALGUNS OLHARES

Historicamente as crianças foram marcadas por expressões do tipo "tábula rasa", "rastro vergonhoso de nossa natureza corruptível e animal", "vir a ser", "adulto em miniatura", enfim, expressões que negaram-lhe suas histórias, experiências, suas identidades enquanto sujeitos portadores de culturas e conhecimentos próprios, completos em si mesmos que pensam e se expressam criativamente e criticamente sobre o mundo que os cercam. Conceber e compreender a criança em sua singularidade, na sua diversidade, no seu jeito de ser, de entender o mundo decorreu de um longo processo.

Àries (1978) ao descrever a descoberta da infância expôs que até por volta do século XII, "a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la", isto no sentido de que a representação artística da figura da criança era uma reprodução em escala menor do adulto, onde visualizavam-se traços físicos característicos de um ser humano adulto com musculatura abdominal e peitoral, favorecendo a recusa em aceitar a morfologia infantil. Segundo o autor, "no mundo das fórmulas românicas e até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim, homens de tamanho reduzido" (p. 51). Ou seja, a infância era desconsiderada, e mesmo quando pensada, atribuía-se à mesma um período de transição, que logo seria perdida, e por isso, não deveria ser notada.

Nos séculos X e XI a sociedade não se detinha na imagem da criança, demonstrando total desinteresse por essa fase da vida em suas representações como se não houvesse lugar para infância naquele mundo. No século XIII, a criança começou a ser vista nas artes através de tipos, sendo que no primeiro tipo, a criança tinha representação de um anjo: rosto com formas arredondadas, até um pouco afeminados dos meninos mal saídos da infância, era um anjo-adolescente.

O segundo tipo foi caracterizado pela figura do menino Jesus, a quem fica limitado o sentimento encantador da tenra infância até o século XIV. No grupo formado por Jesus e sua mãe, o artista sublinharia os aspectos graciosos, ternos e ingênuos da primeira infância.

Somente após o século XIV é que com certa timidez e maior freqüência, a infância religiosa deixa de se limitar à infância de Jesus e vai deslocar-se a uma iconografia leiga nos séculos XV e XVI, nos quais a criança era representada em família, pois ainda não possuía visibilidade social. No século XV, a infância passou a ser representada através de retratos no qual a criança ainda não era protagonista, pois ainda era considerada uma fase sem importância, e devido o alto índice de mortalidade infantil havia um grande sentimento de indiferença em relação a uma infância extremamente frágil, em que a possibilidade de perda era muito grande.

Já no final do século XVI, havia uma representação com nudez da criança denominado de "putto", como uma revivescência do Eros helenístico.
No século XVII, ÀRIES pontua um importante avanço na concepção de criança:

Embora a mortalidade infantil se tenha mantido em um nível elevado, uma nova sensibilidade atribuiu a esses seres frágeis e ameaçados uma particularidade que antes ninguém se importava em reconhecer: foi com a consciência comum que descobriu que a alma da criança também era imortal. (1978, p. 61)

Percebe-se que a partir deste século a ideia da infância começa a ganhar significância e pouco a pouco culminar em uma nova fase de representação. Das efígies funerárias com retratos de crianças com seus familiares, passou-se ao hábito de construir através da arte do pintor o aspecto fugaz da infância. A criança passou a ser representada sozinha e por ela mesma, e se transformou no modelo favorito das pinturas que representariam toda graciosidade e ternura da infância.

Enfim, a criança vira protagonista, o elemento principal da arte, o centro da composição de tal forma que cada família queria possuir retratos de seus filhos, os quais se transformaram na grande novidade do século XVII. No século XIX, a fotografia começou a substituir a pintura e o sentimento da infância ganhou cada vez mais importância.

3. A CRIANÇA E A EDUCAÇÃO INFANTIL NA ATUALIDADE

Diferentemente dos séculos X e XI nos quais a criança não tinha significância e representatividade real dentro da sociedade, atualmente a criança é vista como um ser sócio-cultural, repleta de emoções e portadoras de conhecimentos que não devem ser excluídos, mas contrariamente, devem ser respeitados, valorizados e ampliados principalmente dentro do âmbito escolar, para que o pleno desenvolvimento da infância em toda sua riqueza de experiências seja garantida. Aí entra a importância da Educação Infantil.

Segundo Vigotsky,

"O convívio social e cultural entre os pares da mesma faixa etária e com adultos do mesmo grupo ao qual pertence a criança contribui de forma relevante para seu desenvolvimento e aprendizagem. Nesse espaço privilegiado, são intencionalmente proporcionadas experiências lúdicas com múltiplas linguagens, criadas culturalmente, que as subseqüentes etapas da educação não enfatizam em suas propostas curriculares". (1998)

O percurso para regulamentação da educação infantil enquanto um dever do Estado e um direito da criança a ser assegurado, decorreu de um processo histórico que culminou na Constituição de 1988, a qual configurou-se como um marco ao redefinir e lançar princípios para implementação de novas políticas para infância de 0 a 6 anos. De forma abrangente, neste há a definição dos direitos da criança e em especial, no capítulo dedicado à educação,

"Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
(...)
IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
(...)

Oliveira (1999) apud Luz (2005, p.5), acentua uma conquista nesta declaração do direito à educação por tê-la explicitado nos direitos sociais da criança, abrindo-se a possibilidade a sua incorporação na educação básica, deixando-se de lado a prática "livre" que até então era vinculada à educação infantil. Algo importante com esta incorporação ao sistema regular de ensino foi a exigência da regulamentação e normatização na legislação educacional complementar, o que colaborou para uma nova concepção de creches e pré-escolas, as quais passaram a ser vistas como instituições educativas e não de assistência social.

Alguns documentos ratificaram e fortaleceram a importância da educação infantil, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8069/1990(cap. IV, art. 54, Inciso IV, reafirma o dever do Estado de garantir o atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos), a Lei Orgânica de Assistência Social(LOAS), Lei Federal nº 8742/1993 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 9394/1996, que pela primeira vez contemplou o direito à educação infantil como responsabilidade do setor educacional, ao delimitar o prazo de três anos, a partir da sua publicação para que essa integração ocorresse. Nesta, na seção específica, seção II, descreve a seguinte finalidade da educação infantil:

"Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família."

A aprovação da Lei 11.274 de 2006 mudou a duração do Ensino Fundamental de oito para nove anos, transformando o último ano da educação infantil no primeiro ano do ensino fundamental. Desta forma, o aluno deve ser matriculado com seis anos e não mais com sete, como antigamente. A intenção é antecipar o ensino obrigatório às crianças, principalmente às carentes, que entravam tardiamente no ensino fundamental para que possam desenvolver-se mais cedo, o que difere das crianças com condições econômicas mais elevadas que já têm o costume de freqüentar a pré-escola, e não sofrem o problema de distorção idade-série.

Assim, a escola vem procurando desenvolver um importante papel a fim de garantir esta construção social aritculando-a com a família e a comunidade, a fim de propiciar o enriquecimento das experiências individuais da criança. Para isso, configura-se a necessidade de uma pedagogia que perpasse, tematize e dê conta da apresentação e concretização de propostas eficientes que busquem o favorecimento e plena valorização da infância, elementos que lhes foram negados por tanto tempo.

3. RUMO A CONSTRUÇÃO DE UMA PEDAGOGIA DA INFÂNCIA: O DIREITO DA CRIANÇA A SER CRIANÇA

Face às mudanças de olhares sobre a criança, sobre a educação infantil, sobre as instituições e sobre a formação dos profissionais desta área, podemos dizer que pouco a pouco consolida-se a necessidade da construção de uma Pedagogia da Infância , cujo sujeito de preocupação é a própria criança.

O termo Pedagogia traduz o que se pretende, já que a raiz da palavra traduzido significa "condução de crianças", o que parece desta forma ser a expressão Pedagogia da Infância redundante. No entanto, esta nomenclatura busca abranger um conjunto de propostas e pressupostaos que visem justamente esta condução pedagógica para o desenvolvimento pleno da criança, através de um trabalho diferenciado com crianças de 0 a 6 anos, não no âmbito de uma escolarização excessiva, mas baseado em práticas distintas de práticas domesticadoras, escolares e hospitalares.

"A perspectiva da Pedagogia da Educação Infantil tem indicado a necessidade de colocar a criança como ponto de partida para a organização do trabalho pedagógico e de ensaiar uma aproximação aos universos infantis buscando estranhar o que parece familiar". (Portal Kidsmart, 2008)

Na verdade, esta prática pedagógica volta-se a considerar o cotidiano da criança como relevante para o desenvolvimento da infância nas instituições educacionais e assim, promover a superação de uma visão adultocêntrica da criança e se pensar na educação de forma diferenciada como espaço de educação e cuidado para oportunizar à criança o direito a ser criança, respeitando seu ritmo, tempo, espaço e heteregoneidade. Coutinho relata alguns princípios relacionados às dimensões culturais e físicas das crianças que devem ser consideradas nas instituições de educação infantil, os quais estão contidos no documento Critérios para um atendimento em creches e pré-escolas que respeite os direitos fundamentais da criança. São eles:

"Nossas crianças têm direito à brincadeira; ...à atenção individual; ...a um ambiente aconchegante, seguro e estimulante; ...ao contato com a natureza; ...à higiene e a saúde; ...à uma alimentação sadia; ...a desenvolver sua curiosidade, imaginação e capacidade de expressão; ...ao movimento em espaços amplos; ...à proteção, ao afeto e à amizade; ...à expressão de seus sentimentos; ...a uma especial atenção durante o seu período de adaptação à creche; ...a desenvolver sua identidade cultural, racial e religiosa." (CAMPOS; ROSEMBERG, 1995 apud COUTINHO, 2002, p. 5).

Percebe-se que há muita coisa devida às nossas crianças e ainda que tardiamente, nunca é tarde para começar a reparar os erros e proporcionar para estas o que elas necessitam.

4. TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Conceber e compreender a criança em sua singularidade, nas suas adversidades, nos seus jeitos de ser é o começo para que diferentemente da exposição e rejeição sofrida na roda dos expostos, elas passem a ter voz, vez, uma história e uma identidade. São relevantes as inquietações produzidas que incita à sociedade atual a refletir sobre que tipo de educação temos oferecido às nossas crianças.

Que os educadores possam repensar a postura pedagógica assumida frente ao mundo infantil que ora parece ser tão simples, mas que é complexo; ora tão estável, mas repleto de dinamismo; ora tão rotineiro, mas que em todo momento é surpreendente.
Eis o nosso desafio.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÀRIES, Philippe. História Social da Criança. Ed. LTC,1978.
LUZ, Ilza Rodrigues da. Educação Infantil: Direito reconhecido ou esquecido?
COUTINHO, Ângela Maria Scalabrin. Educação Infantil: Espaço de Educação e Cuidado. IN: As crianças no interior da creche: a educação e o cuidado nos momentos de sono, higiene e alimentação. Florianópolis, 2002.
VIGOTSKY, Levy. A formação Social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
As crianças e a Pedagogia da Educação Infantil. Disponível em: http//www.ibmcomunidade.com.br/kidsmart. Acesso em 08/04/2008.


Autor: Ana Paula Bittencourt Santana


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