Sentido e alcance da Boa-fé Objetiva nos contratos



Os contratos trazem em si a característica de ser negócio jurídico de expressão de vontade das partes. Para sua formação e validade plena, necessário se faz seja norteado e limitado pela lei, notadamente pelos chamados princípios gerais, que expressam verdadeiramente o espírito, o fundamento da Lei, mediante uma análise sistemática.

Constituem os princípios os mandamentos nucleares do sistema jurídico, ocupam o vértice da pirâmide normativa, dos quais derivam as regras. É importante considerar que os princípios podem justificar diretamente decisões judiciais , o que se pretende demonstrar neste trabalho, através da análise da legislação aplicável e conseqüente demonstração prática.Assim, neste estudo serão tratadas as relações sócio-jurídicas frutos desta nova e peculiar postura do legislador, de forma a interagir o mundo do ser com o chamado mundo do dever ser.

Dentre esses princípios destaca-se o princípio da boa-fé objetiva.

Segundo Ruy Rosado de Aguiar podemos definir boa-fé como:

"Um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avenca".

Desse ensinamento, fácil concluir que a boa-fé objetiva diz respeito à norma de conduta, que determina como as partes devem agir. Todos os códigos modernos trazem as diretrizes do seu conceito, e procuram dar ao Magistrado instruções, meios, para decidir.

A boa-fé objetiva teve seu conceito advindo do Código Civil Alemão, que em seu parágrafo 242 já determinava um modelo de conduta. Cada pessoa deve agir como homem reto: com honestidade, lealdade e probidade. Leva-se em conta os fatores concretos do caso, não sendo preponderante a intenção das partes, a consciência individual da lesão ao direito alheio ou da regra jurídica. O importante é o padrão objetivo de conduta.

O parágrafo 242 do Código Civil Alemão, o mais célebre exemplo de cláusula geral, é assim redigido:

"§ 242: O devedor deve (está adstrito a) cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico".

O Código Civil Holandês também trata da cláusula geral da boa-fé, em seu artigo 248 do Livro das Obrigações, que prevê:

"... que as partes devem respeitar não só aquilo que convencionaram como também tudo que resulta da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade".


Mesmo na ausência da regra legal ou previsão contratual específica, da boa-fé nascem os deveres, anexos, laterais ou instrumentais, dada à relação de confiança que o contrato fundamenta. O instrumento contratual nascerá desta e conforme esta premissa de boa-fé entre as partes, daí o aspecto objetivo que se dá ao princípio em apreço.

Não se orientam diretamente ao cumprimento da prestação, mas sim ao processamento da relação obrigacional, isto é, a satisfação dos interesses globais que se encontram envolvidos. Pretendem a realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes.

Conforme Cláudia Lima Marques , isso quer dizer que se espera uma:

"atuação ?refletida?, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes".

Na análise do princípio da boa-fé dos contratantes, devem ser examinadas as condições em que o contrato foi firmado, o nível sócio-cultural dos contratantes, seu momento histórico e econômico. É ponto da interpretação da vontade contratual, mas não de forma ingênua e superficial, mas como postura obrigatória e esperada, ou melhor, exigida, pelo legislador.

É inegável que o princípio ético é um dos mais importantes, dentro do sistema de valores adotado pelo Novo Código Civil, alterando a ultrapassada ética instalada pelo pensamento liberal, ao criar um pensamento ético e a exigir uma atitude negocial revestida pela ética, que descarta, até mesmo, e, principalmente o determinado dolus bonus.

A respeito dessa questão é de se transcrever a observação de Sérgio Cavalieri Filho :

"Se o dolo é a vontade dirigida a um fim ilícito, é conduta intencionalmente enganosa, fraudulenta, aproveitadora, como falar em dolus bonus? Em última instância seria enganar só um pouquinho. Enganar muito não pode, mas ser esperto, tirar vantagem pode! Essa é a ética que se formou à sombra da ordem jurídica anterior. Isso era permitido e deu no que deu: Nessa selva negocial e empresarial, onde se pratica todo o tipo de fraude sem o menor escrúpulo, até contábil, transformando bilhões de prejuízos em lucros para lesar milhões de investidores".

O Código Civil atual constitui um sistema aberto, predominando o exame do caso concreto na área contratual. Trilhando técnica moderna, esse estatuto erige cláusulas gerais para os contratos. Nesse campo, realça-se o artigo 421, e especificamente o artigo 422 que faz referência ao princípio basilar da boa-fé objetiva, a exemplo do código italiano:

"Art. 422 - Os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

Desta feita, impõe-se a boa-fé como premissa na realização dos pactos contratuais, como uma perfeita obrigação.

A idéia primordial é no sentido de que, em princípio, contratante algum ingressa em um conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A má-fé inicial ou interlocutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Toda cláusula geral remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito no tempo e no espaço. Em cada caso o juiz deverá definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram da boa-fé. Na verdade, levando-se em conta que o direito gira em torno de tipificações ou descrições legais de conduta, a cláusula geral traduz uma tipificação aberta. A boa fé, portanto, deve ser regra no contrato.

A boa-fé objetiva, diferente da subjetiva cujo manifestante da vontade crê que sua conduta é correta, tem compreensão diversa. O intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos, abandonando-se o campo da subjetividade.

Ao avaliar a boa-fé objetiva leva-se em consideração a responsabilidade pré-contratual, a contratual e a pós-contratual. Em todas essas situações sobreleva-se a atividade do juiz na aplicação do direito ao caso concreto. No campo da responsabilidade pré-contratual que avulta a importância do princípio da boa-fé objetiva, especialmente na hipótese de não justificada conclusão dos contratos.

Isso porque, mesmo que o contrato venha a ser celebrado sob a tutela da boa-fé objetiva, deve-se ter garantido o íntegro equilíbrio entre os interesses privados e coletivos, sempre acentuando as diretrizes da sociabilidade do direito.

A boa-fé deixou de ser forma interpretativa e foi alçada a forma de comportamento das partes. O julgador poderá corrigir a postura de qualquer dos contratantes, sempre que observar desvio de conduta ou de finalidade. Sua visão deverá estar além da letra do negócio jurídico, e alcançar as atitudes dos contratantes.

Opera-se uma reflexão acerca do comportamento das partes de forma que a prestação devida poderá se amoldar às características fáticas de cada caso concreto, sem que isso provoque incertezas no espírito dos contratantes, pois desde logo saberão que o proceder no curso do contrato não poderá se afastar dos ideais da honestidade e probidade.

Ensina, com maestria, Orlando Gomes , que:

"nos contratos, há sempre interesses opostos das partes contratantes, mas sua harmonização constitui o objetivo mesmo da relação jurídica contratual. Assim, há uma imposição ética que domina a matéria contratual, vedando o emprego da astúcia e da deslealdade e impondo a observância da boa-fé e lealdade, tanto na manifestação da vontade (criação do negócio jurídico) como, principalmente, na interpretação e execução do contrato".

Segundo Silvio de Salvo Venosa

"há três funções nítidas no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (artigo 113); função de controle dos limites do exercício de um direito (artigo 187); e função de integração do negócio jurídico (artigo 421)."

Dessa forma, nossa legislação cuidou para que as várias espécies de relações jurídicas mantivessem a boa-fé expressamente exigidas, impondo segurança nos negócios entre as pessoas. A boa-fé, todavia, não é mais analisada pelo mero comportamento das partes e conforme suas vontades, expressando-a ou não, de má-fé ou não, mas sim de forma objetiva, dedutível e palpável.

Assim, o princípio da boa-fé regula não apenas o pacto contratual intencionalmente invocado, mas, ainda o reconhecimento de deveres secundários (não diretamente pactuados) derivados mediatamente do princípio, independentemente da vontade manifestada pelas partes, a serem observados durante a fase de formação e de cumprimento da obrigação. São deveres que excedem o dever de prestação. Assim são os de esclarecimento (informações sobre o uso do bem alienado, capacitações e limites), de proteção (evitar situações de perigo), de conservação (coisa recebida para experiência), de lealdade (não exigir o cumprimento de contrato com insuportável perda de equivalência entre as prestações), de cooperação (prática dos atos necessários à realização dos fins plenos visados pela outra parte), dentre outros.

Esclarece o nobre Magistrado Laerte Marrone de Castro e Sampaio que:

"Nem sempre o dever de lealdade reflete uma obrigação de não fazer, implicando, às vezes, uma atitude positiva, com o escopo de colaborar com o parceiro. Essa categoria funciona subsidiariamente em relação às outras duas, abarcando todos os deveres que não são enquadráveis nos deveres de proteção e esclarecimento".

Nesse sentido, Menezes Cordeiro é bem claro:

"Neste contexto é importante mencionar o dever de não concorrência, de não celebração de um contrato incompatível com o primeiro".

Deste modo, nos contratos em que se caracterizar a superioridade intelectual, econômica ou profissional de uma parte deve-se invocar tal idéia de boa-fé para a eventual suspensão da eficácia do primado da autonomia da vontade, a fim de rejeitar-se cláusula violadora ou imposta sem o devido esclarecimento de seus efeitos, principalmente no tocante à isenção de responsabilidade do estipulante ou limitação de vantagens do aderente .

Esses deveres laterais de conduta são usualmente divididos em deveres de correção e lealdade de informação, de proteção e cuidado e de sigilo.

Há ainda que ser considerada a ?Venire contra factuni proprium?, que se trata de uma locação de origem canônica que expressa a idéia de que à parte não é permitido agir em contradição a um comportamento assumido anteriormente. Com efeito, a conduta antecedente gerou uma expectativa na outra parte num atuar em determinado sentido. Desse modo, o credor, ao portar-se em linha adversa, ainda que aparentemente no exercício de um direito, quebra a lealdade e confiança. Ou seja, maltrata a boa-fé, de molde que resta delineado um quadro de abuso de direito.

Nesses casos, segundo Wieacker , não se exige dolo nem culpa do credor, porquanto a proibição do venire é uma aplicação do princípio da confiança no tráfico e não uma específica proibição da má-fé e da mentira.

É de se ressaltar que a doutrina alienígena aduz que existem certas situações aonde a prevalência do princípio da boa-fé chega a justificar a extinção de obrigações e a resolução de contratos: é a denominada frustração do fim contratual objetivo. A boa-fé exige que se dê o contrato por sem efeito quando a finalidade que as partes tinham em vista, e nele pressuposta, se torna definitivamente irrealizável, não obstante as prestações a que ambas se obrigaram, em si mesmas, continuarem objetivamente possíveis .

Deve-se aqui fazer menção ao paradigma que o art. 1198 do Código Civil da Argentina consagrou, na redação dada pela lei nº 17.711/68, a possibilidade de resolução do contrato, fundada na boa-fé, se uma das prestações se torna excessivamente onerosa para uma das partes:

"Os contratos devem celebrar-se, interpretar-se e executar-se de boa fé e de acordo com o que verdadeiramente as partes entenderam ou puderam entender, agindo com cuidado e previsão. Nos contratos bilaterais comutativos e nos unilaterais onerosos e comutativos de execução diferida ou continuada, se a prestação a cargo de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a parte prejudicada poderá demandar a resolução do contrato. O mesmo princípio se aplicará aos contratos aleatórios quando a excessiva onerosidade se produza por causas estranhas ao risco próprio do contrato" .


O dever de agir de acordo com a boa-fé justifica a extinção da relação obrigacional com base na impossibilidade econômica da relação. Surgem obstáculos tais à realização da prestação debitória que esta, sem chegar a se tornar irrealizável, fica extremamente difícil ou onerosa para uma das partes. Diz-se então que, segundo a boa-fé objetiva, a parte não está obrigada a gastos ou esforços que vão além do limite do sacrifício que seria dela exigível. Contudo, não deve ser utilizada como justificativa ou subterfúgio ideológicos para se rescindir contratos, sob pena de se abalar a estabilidade e segurança jurídica e relativizar o Direito, desvirtuando a intenção do legislador.

Conquanto o fundamento doutrinário para que referido fenômeno ocorra, parece ainda distante de ser consultado permitimo-nos reconhecer o entendimento de que presente está a figura do abuso de direito.


Bem asseverado e livre de radicalismo o entendimento de Sylvio Capanema de Souza sobre o assunto:

"O princípio da boa-fé objetiva exige que os contratos tenham equações econômicas razoavelmente equilibradas. Não que seja pecado ou crime lucrar no contrato, pois ninguém contrata por diletantismo ou altruísmo, todos nós contratamos para tirar do contrato um proveito econômico principalmente numa sociedade capitalista como a nossa. Só que esse proveito econômico agora tem um limite da construção da dignidade do homem, da eliminação da miséria, das injustiças sociais, fazer com que os contratos não estejam apenas a serviço dos contratantes, mas também da sociedade, construindo o que se convencionou chamar o estado do bem-estar".


A idéia é que "com a aplicação do princípio da boa-fé, outros princípios havidos como absolutos serão relativados, flexibilizados, ao contato com a regra ética" .

Por fim, colaciona-se jurisprudência atual dispondo sobre a boa-fé objetiva:

"CONTRATO - Princípio da boa-fé - Dever de assistência, de cooperação entre as partes que celebram o pacto - Hipótese em que se objetiva garantir a ética da relação e o correto adimplemento da obrigação". (TRF - 4ª Reg. - RT 819/379)

"CONTRATO - Compra e venda - Imóvel - Escritura definitiva - Recusa na outorga - Inadmissibilidade - Aquisição através de financiamento direto da construtora - Ocorrência de quitação do preço - Aplicação das normas de proteção do Código de Defesa do Consumidor e do princípio da boa-fé subjetiva e objetiva - Ação julgada procedente - Recurso não provido". (JTJ/SP 256/34)

"MEDIDA CAUTELAR - Fumus boni juris e periculum in mora - A tutela cautelar é adequada para manter a sobrevida de contrato de prestação de serviços médicos, enquanto se discute a legalidade da cláusula de rescisão motivada e que foi aplicada quatro meses de execução do contrato, em nítido prejuízo dos consumidores e da boa-fé objetiva (artigo 18 da Lei n. 9.656/98 e 4º, III, e 51, IV, da Lei n. 8.078/90 - Recurso provido". (TJ/SP - Apelação Cível n. 192.451-4 - Jundiaí - 3ª Câmara de Direito Privado - Relator: Ênio Zuliani - 07.08.01 - V.U.)




Autor: Ana Paula Almeida


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