PROJETO DA MULTIDÃO



O Projeto da Multidão

O projeto da multidão não só expressa o desejo de um mundo de igualdade e liberdade, não apenas exige uma sociedade global democrática que seja aberta e inclusiva, como proporciona os meios para alcançá-la. (HARDT; NEGRI, 2005, p.9)

Hardt e Negri dão o nome de Império à nova ordem que atualmente regula os circuitos mundiais de produção e o mercado internacional, sem respeitar as fronteiras nacionais e sem estabelecer um centro de comando. No Império, a produção de riquezas é traduzida como produção biopolítica, uma vez que não se limita ao seu aspecto econômico, mas engloba também o político e o cultural e dessa maneira aparece como a produção da própria vida social. É a era da sociedade de controle, na qual o poder conduz as pessoas a um estado de alienação autônoma por meio de máquinas, como sistemas de comunicação e redes de informação, que organizam diretamente os cérebros e os corpos.

A partir do diagnóstico acima, Hardt e Negri defendem a tese de que o poder do Império, que se espalha por todo o globo procurando manter a ordem através de novos mecanismos de controle e conflito, se contrapõe a uma força que viabiliza a criação de redes de comunicação e cooperação que possibilitam a concretização de ações conjuntas. Essa força provém do conjunto de singularidades que compõem aquilo que Hardt e Negri chamam de multidão:

Para entender o conceito de multidão em sua forma mais geral e abstrata, vamos inicialmente contrastá-la com o de povo. O povo é uno. A população, naturalmente é composta de numerosos indivíduos e classes diferentes, mas o povo sintetiza ou reduz essas diferenças sociais a uma identidade. A multidão, em contraste, não é unificada, mantendo-se plural e múltipla (...) A multidão é composta de singularidades ? e com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente. (HARDT; NEGRI, 2005, p.139)

Nesse contexto, conforme Negri e Lazzarato já haviam ressaltado, a produção ininterrupta de informação, conhecimento, idéias, imagens, relacionamentos e afetos, modifica substancialmente o cenário do trabalho, que se torna cada vez mais imaterial. Dessa forma, as transformações advindas com a situação pós-fordista e pós-industrial, são devidamente ilustradas pelo conceito de Trabalho Imaterial.

No trabalho imaterial o que está envolvido é a produção de novas subjetividades na sociedade. Assim sendo, ele é biopolítico porque procura a criação de formas de vida social, não se limitando à esfera econômica, mas se expandindo por todos os aspectos da existência.
Dentro desta atividade, é sempre mais difícil distinguir o tempo de trabalho do tempo de produção ou tempo livre.

Encontramo-nos em tempo de vida global, na qual é quase impossível distinguir entre o tempo produtivo e o tempo de lazer. (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 30)

Na sociedade pós-moderna, o trabalho imaterial vem se tornando cada vez mais hegemônico e, como Hardt e Negri acentuam, só pode ser realizado em comum, devendo, portanto, assumir a forma de redes sociais baseadas na cooperação, colaboração e relações afetivas entre seus membros. Assim sendo, torna-se possível a constituição de uma inteligência coletiva que se baseia fundamentalmente nos processos de comunicação, produção de diferenças e modos de vida da multidão.

A vida social depende do comum. (HARDT; NEGRI, 2005, p.245)

Possibilitando a expressão das diversas singularidades e dando condições para o trabalho e a vida em comum, a multidão apresenta-se como a Internet e outros organismos em rede, recusando qualquer tipo de figura soberana e encontrando nas diferenças os pontos de convergência na busca pela transformação social. A internet, aliás, aparece como uma importante plataforma para uma mais efetiva participação democrática, garantindo a liberdade individual.

Hardt e Negri lembram que na mesma rede em que o poder exerce o seu domínio, a multidão atua com a finalidade de criar uma sociedade global alternativa. Portanto, o anti-poder da multidão utiliza as mesmas estratégias que o poder: fluidez, inconstância e multiplicidade num espaço extraterritorial.

Atualmente, a militância através da internet, que aposta na ação descentralizada, desterritorializada e em rede da multidão, configura-se como uma importante ferramenta para aqueles que advogam a favor da democracia, ainda que este recurso também venha sendo utilizado por grupos fundamentalistas e de estrema direita para propagar suas idéias. A ação empreendida por meio de blogs, fóruns e mensagens veiculadas na internet, muitas vezes de forma anônima, devido ao seu caráter coletivo pode ser mais bem compreendida quando associada ao conceito de rizoma que aparece em Deleuze e Guattari:

o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; (...) Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32)

A certeza de que "somos mais inteligentes juntos" faz da modalidade de resistência que observamos na Web, que se mostra aparentemente descoordenada, uma força praticamente impossível de ser contida pelos mecanismos de rastreamento e controle do Império.

O ataque em rede apresenta-se como algo semelhante a um enxame de pássaros ou insetos num filme de terror, uma multidão de atacantes irracionais, desconhecidos, incertos, invisíveis inesperados. Se analisarmos o interior de uma rede, no entanto, veremos que é efetivamente organizada, racional e criativa. Tem a inteligência do enxame. (HARDT; NEGRI, 2005, p.131)

As condições proporcionadas pela era do Império, assim como a emergência da multidão como agente político capaz de produzir não só bens materiais, mas também conhecimentos, informações, idéias e afetos que permitem a expansão do comum e reforçam a tendência pós-moderna que remete a uma organização da resistência em rede, nos permite vislumbrar a possibilidade de um futuro onde vigore uma democracia global. A inteligência coletiva somada ao afeto torna viável o projeto da multidão, concebido por Hardt e Negri como um projeto do amor.

Os novos movimentos que exigem a democracia global não só valorizam a singularidade de cada um como organizador fundamental como a postulam como um processo de autotransformação, hibridização e miscigenação. A multiplicidade da multidão não é apenas uma questão de ser diferente, mas também de um devir diferente. Um devir diferente daquilo que você é! Essas singularidades agem em comum e, portanto, formam uma nova raça, ou seja, uma subjetividade politicamente coordenada que a multidão produz. A decisão primordial tomada pela multidão é na realidade a decisão de criar uma nova raça, ou, melhor uma nova humanidade. Quando o amor é concebido politicamente, portanto, essa criação de uma nova humanidade é o supremo ato de amor. (HARDT; NEGRI, 2005, p.444)

O desejo de um mundo onde prevaleçam a igualdade e a liberdade, aspectos norteadores de uma democracia global que favoreça a construção de uma vida em comum e que hoje parece possível de ser concretizado, aparece como a base daquilo que Michael Hardt e Antonio Negri chamam de "projeto da multidão".

é importante ter sempre em mente que um outro mundo é possível, um mundo melhor e mais democrático, e promover nosso desejo desse mundo. A multidão é um símbolo desse desejo. (HARDT; NEGRI, 2005, p.290)




Referências Bibliográficas:

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Capitalismo e Esquizofrenia vol.1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
HARDT, Michael, NEGRI, Antonio. Multidão ? Guerra e Democracia na era do
Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
LAZZARATO, Maurizio e NEGRI, Antonio. Trabalho Imaterial: formas de vida e
produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.





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