Análise do Filme "Preciosa" a partir da perspectiva Kleiniana
"Violentada de todas as formas possíveis, a garota Precious tem sua história mostrada em um filme que mistura sonhos bucólicos de uma adolescente com a crueldade de sua vida à margem da sociedade." (Honorato & Deschamps, 2010).
A escolha da análise a partir da perspectiva de Melanie Klein se deve ao fato de o filme nos remeter a uma pergunta muito difícil de ser respondida: de que são compostos esses seres especiais que enfrentando, desde muito cedo toda a sorte de violência, abuso e maus-tratos, esquecidos pela sociedade e varridos para as margens da engrenagem social, mesmo assim encontram "amor pra recomeçar"?
A personagem desenvolveu um jeito de lidar com as experiências ruins, realizando o que pode ser chamado de "transição de imagens" em determinado tipo de terapia. Cada vez que se encontra vivenciando ou, até mesmo, lembrando de momentos ruins, de agressões verbais ou físicas, imagina-se em outro lugar, com outras pessoas, passando por situações agradáveis e enchendo-se, assim, de esperança para manter-se viva, para que o sopro de vida se faça presente onde antes havia somente angústia de morte.
O filme nos remete a cenas fortes, principalmente quando há a revelação de que a personagem havia engravidado duas vezes, visto que era abusada desde a infância pelo seu próprio pai, fato que revela alguma explicação para as atitudes agressivas de sua mãe, que a culpava por ter roubado o homem que dizia ser seu. Quando a diretora da escola descobre sua gravidez, a expulsa da escola, entretanto consegue pra ela uma vaga em um colégio alternativo, já que, apesar de suas dificuldades com a alfabetização, tinha facilidade em matemática, onde conhece uma professora que irá ajudá-la a terminar seus estudos e a superar suas dificuldades. Nessa nova classe, Preciosa tem a oportunidade de falar, de contar o que se passa com ela.
Em alguns intervalos de sua narração, a garota insere seu ponto de vista nas diversas situações apresentadas, demonstrando assim uma esperança que nem ela mesma sabia de onde vinha, o que se pode verificar no trecho em que há um fluxo de sua consciência: "Sabe, teve um dia em que eu chorei. Mas quer saber? Esqueci daquele dia! Por isso Deus, ou sei lá quem, faz novos dias."
Que força de ego pode se identificar nela que mesmo diante de tanto sofrimento causado por aquela família que devia servir-lhe de base de apoio, cuidado e afeto? O que fez com que essa garota, ao mesmo tempo tão fragilizada e tão forte não a fez se refugiasse permanentemente dentro de outra realidade, enlouquecendo?
A personagem procura fugir da sua dura realidade através de sua criatividade, refugiando-se em devaneios onde de alguma maneira consegue energia para lidar com uma dura realidade que chega a ela sempre de maneira bastante agressiva. Para que se reconheça um mundo externo, além dessas relações internas intensas de plenitude que o ser humano encontra em algo ou em alguém, existe um estímulo dado pelas frequentes, variadas e inevitáveis sensações de dor e desprazer, as quais o princípio do prazer ordena suprimir e evitar. (Freud, 1930).
Preciosa inventa meios de sobreviver naquele caos. Olhava um álbum de fotografias e fantasiava que sua mãe lhe dizia palavras carinhosas e que seu professor lhe amava e dizia que iam morar juntos. Era maltratada pela mãe, que a chamava de burra, dizia que desde o momento em que a pegou nos braços sabia que ela não servia para nada, que não conseguiria aprender nada. Dizia que ela não poderia confiar em ninguém. Ou seja, tirava-lhe qualquer esperança de mudança, qualquer aniquilamento de uma possibilidade de uma vida mais digna, ao menos. Algum episódio ocorre na vida dos seres humanos, ao longo do seu desenvolvimento, causando-lhes uma ruptura em sua constituição. "Aí existe uma falha, como de resto sempre há uma falha onde se possui um único exemplar de alguma coisa." (Kafka, 1998).
Melanie Klein dá ênfase na constituição do sujeito psíquico através da internalização de objetos ? bons ou maus ? ao longo do desenvolvimento do indivíduo. Essa realidade interna utiliza mecanismos de introjeção e de projeção. Para Klein, a projeção é o meio que a gente usa para colocar a angústia (da pulsão de morte) para fora e a introjeção é usada para saber lidar com essa angústia, constituinte do aparelho psíquico. Acredito que o meio de sobreviver encontrado ? consciente ou inconscientemente ? pela personagem foi a projeção.
O filme também aborda a temática dos padrões estáticos contemporâneos. A protagonista, muitas vezes, olha-se no espelho imaginando ser magra e loira. Quando perguntada sobre como gostaria de ser, é categórica ao responder que deseja a imagem de sua própria fantasia. A protagonista do filme sofria de baixa auto-estima, visto que sua mãe fazia com que ela acreditasse não ser capaz de nada. A esses fatores somam-se outros preditores de problemas de comportamento. Segundo estudo realizado por Bandeira, Borsa e Souza (2010), variáveis como renda familiar e o tipo de escola também são considerados para explicar o drama da personagem, negra, pobre e obesa.
Preciosa tinha fluxos de consciência até mesmo nos momentos de grande tensão e espera, quando, por exemplo, conseguiu deixar a casa de sua mãe e a professora tentava arranjar um lugar para ela ficar. Pensava: "Tenho pena dela, é só uma professora, não uma assistente social". Apesar de não poder contar com quase ninguém, ainda importava-se com as pessoas.
Esta cena do filme é mais um ponto a ser destacado. Como essa garota maltratada, que parecia estática frente a tanta crueldade, foi capaz de romper com o ciclo de violência?
Na perspectiva Kleiniana, o objeto interno bom atua como ponto focal do ego, contribuindo para sua coesão e integração. A internalização de objetos bons é fundamental para a constituição do sujeito psíquico. O mundo interno é o conjunto de objetos internalizados. O mundo interno predomina sobre a realidade, mas é calcado nela. O conteúdo básico do inconsciente são as fantasias. Estas expressam relações objetais, englobando as ansiedades e as defesas frente a elas. A ansiedade é a base da vida mental e aquilo que lhe dá significado. Existe tanto no inconsciente quanto no consciente. Durante a infância, o único objeto bom de que Preciosa dispôs foi a avó, amável e carinhosa. Com o passar do tempo, recebeu ajuda da professora da escola especial. Talvez esses objetos bons possam ter mantido seu aparelho psíquico integrado, permitindo, assim, a sua sobrevivência naquele ambiente hostil.
Segundo a psicanalista, o objeto externo é a pessoa como ela realmente é. O objeto interno é o modo como a criança internaliza cada pessoa, a partir das experiências vividas. Isso influencia o modo como essa criança lida com a realidade. Não é tão importante saber o que é real, mas sim saber por que uma determinada pessoa foi internalizada de tal maneira e o que esse objeto causa a quem o internalizou.
A personagem também assumiu responsabilidades impróprias para a sua idade. Seus filhos nasceram em situações precárias. Preciosa nunca tinha ido ao médico. Confessa para a assistente social que teve o primeiro bebê no chão da cozinha com sua mãe chutando a sua cabeça.
Toda essa gama de abusos e violências de todos os tipos leva o espectador a entender porque a garota brigava na escola, agredia os colegas que lhe faltavam com respeito. Era a sua resposta ao mundo, o seu pedido de socorro. Fazia com as pessoas que lhe faltavam com respeito o que não podia fazer com sua mãe ou com quem abusava dela. "A mãe diz que os homossexuais são pessoas ruins... mas não são eles que me estupram, não são eles que me maltratam..." Precious também reflete diversas vezes sobre a opinião de sua mãe em relação a determinados assuntos, contestando sua maneira medíocre e insana de lidar com as situações.
A Psicanálise de Melanie Klein define duas posições, dois tipos de atitude mental: a esquizoparanóide e a depressiva. A primeira se dá a partir de uma cisão/perseguição. O objeto é internalizado de duas maneiras, é um objeto parcial. Um deles é amado (objeto bom) e o outro é odiado (objeto mau ? pulsão de morte, ódio), apesar de se tratar de uma mesma pessoa, um mesmo objeto, fato que só será percebido ao longo do crescimento e amadurecimento do aparelho psíquico. A mãe é dividida pelo bebê em seio bom e seio mau. Um que atende seus desejos e outro que lhe faz sofrer e esperar por atenção e alimento. O bebê internaliza essas mães como se fossem objetos diferentes. A mãe que lhe dava o que comer era a mesma que lhe espancava e permitia que fosse abusada. Essa dualidade causa uma angústia muito grande no indivíduo, fazendo com que a pulsão de morte esteja presente com maior freqüência.
"Às vezes eu desejo que não estivesse viva. Mas eu não sei como morrer. Não há nenhum botão para desligar. Não importa o quão ruim eu me sinta, meu coração não para de bater e meus olhos se abrem pela manhã", pensava ela nos momentos mais conflitantes. Entretanto, arranjava forças para cuidar dos filhos com o carinho que não teve. O bebê é visto por Melanie Klein como um ser frágil, cercado de pulsão de morte. Visto que a pulsão sempre visa a um objeto, o bebê relaciona-se com o objeto desde o início da vida. Preciosa deu aos seus filhos a chance de internalizarem uma mãe boa, que lhes fornecia o afeto e o cuidado necessários para se reconhecerem como indivíduos e para terem um aparelho mental bem constituído.
A personagem não teve a internalização de um objeto interno bom, de uma mãe boa. De acordo com Winnicott (1987), uma mãe ideal é aquela que tem a noção clara acerca do papel que necessita exercer, eximindo-se da culpa por não ser capaz, devido à complexidade humana, de livrar o filho de frustrações, as quais são necessárias à sua adaptação. O objetivo dessa mãe é proporcionar satisfação extrema ao bebê, livrando-o de qualquer mal. Entretanto, a mãe da personagem não tinha seu aparelho mental bem organizado, bem como a noção do papel que deveria exercer, permitindo, assim, que a filha fosse abusada pelo pai desde que era apenas um bebê. Desde a gestação, os aspectos positivos envolvem, principalmente, a necessidade de que o bebê seja investido de desejos e fantasias por parte da mãe para começar a existir enquanto ser humano. A expectativa da gestante e esses investimentos são elementos que permitem a sua estruturação psíquica. (Piccinini, Gomes, Moreira & Lopes, 2004).
As circunstâncias externas sem dúvida influenciam bastante o que vai predominar na relação do bebê com o seio, se os sentimentos de frustração ou os de gratificação. Quando o indivíduo assume a posição depressiva (integradora e reparadora), dá-se conta de que o objeto é um só e que não é perfeito, o que gera frustração e culpa por ter "atacado" o objeto ao qual ama.
Acredito que, ao mesmo tempo em que sofria toda a sorte de agressões e humilhações, a personagem não demonstrava sentir ódio de sua mãe. A relação com a mãe como uma pessoa, que vinha se desenvolvendo, gradualmente enquanto o seio ainda figurava como o principal objeto, torna-se mais plenamente estabelecida, e a identificação com ela fortalece-se quando o bebê pode percebê-la e introjetá-la como uma pessoa (ou seja, como um objeto completo). Quando, ao longo do desenvolvimento, a ansiedade ao mesmo tempo diminui e é mais seguramente mantida afastada, os ressentimentos e o ódio, assim como a voracidade diminuem, o que conduz, em última instância, a uma diminuição da ambivalência em relação ao objeto.
Claireece Precious descobre que é portadora do vírus da AIDS, causa da morte de seu pai abusador. A personagem reúne forças para cuidar dos filhos e tentar construir uma nova vida, agora na ausência da mãe, a qual ela decidiu não ver mais.
O filme Preciosa traz o espectador para uma realidade nem sempre encarada, muito menos na íntegra, sem cortes ou tentativas de amenizar o impacto das cenas. Como toda adolescente, a personagem mal encara as outras pessoas nos olhos, é um tanto introspectiva e se veste para ser diferente, embora demonstre um pouco de vaidade. Entretanto a sua vida dentro de casa não nos remete a um adolescente comum. Talvez seja ainda mais dura essa realidade que enfrenta na família do que nas ruas ou na escola, sofrendo com agressões no corpo e na alma desferidas pela própria mãe. Foi engravidada pelo pai. Não uma, mas duas vezes. Foi expulsa da escola. Porém encontrou alguma esperança na professora e na assistente social que a ajudaram.
Entretanto, o que a fez sobreviver? Para Melanie Klein, a pulsão de morte está sempre presente. O objeto que foi internalizado pela protagonista dessa chocante e densa história, a partir das experiências vividas, não foi um bom constituinte para uma boa formação do aparelho psíquico. Isso influencia o modo como essa criança lida com a realidade. A falta de objetos bons internalizados causa danos ao desenvolvimento. Remetendo novamente à perspectiva Kleiniana, não é tão importante saber o que é real, mas sim saber por que uma determinada pessoa foi internalizada de tal maneira e o que esse objeto causa a quem o internalizou. O conteúdo básico do inconsciente são as fantasias. Estas expressam relações objetais, englobando as ansiedades e as defesas frente a elas. Esse foi o modo que Preciosa encontrou para manter-se viva, para que o sopro de vida estivesse presente onde antes havia somente angústia de morte.
REFERÊNCIAS
Bandeira, D. R., Borsa, J. C., & Souza, D. S. (2010). Prevalência de problemas de comportamento em uma amostra de crianças do Rio Grande do Sul. (no prelo).
Daniels, Lee. (2009). Precious: Base on the Novel Push by Sapphire. [Filme-vídeo]. Produção de Lee Daniels, Gary Magness e Sarah Siegel-Magness, direção de Jayme Matteo de Cosmo. EUA, Lionsgate / PlayArte, 2009. DVD, 110min, color.
Freud, S. (1930) O Mal Estar na Cultura. (R. Zwick, Trad.) Porto Alegre: L&PM, 2010.
Honorato, E. J. S. & Deschamps, D. (2010). Preciosa Resiliência. Psique, 53, pp. 60-63.
Kafka, F. (1998). Um artista da fome e A construção. A construção (p. 70) São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Klein, M. (1952). Algumas conclusões teóricas relativas à vida emocional do bebê. Developments in Psycho-Analysis.
Knobloch, F. (Org.) (1991). O inconsciente: várias leituras. São Paulo: Escuta.
Piccinini, C. A., Gomes, A. G., Moreira, L. E., Lopes, R. S. (2004). Expectativas e Sentimentos da Gestante em Relação ao seu Bebê. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20 (3), pp. 223-232.
Winnicott, D. W. (1987). Os bebês e suas mães (J. L. Camargo, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.
Autor: Daiane Silva De Souza
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