Espumas Opacas



Primeiro é a altura inalcançável da porta milenar - entra-se por aqui. Depois é o torpor envolto em poeira, uma dança sem princípios empurrada por feixes de sol para dentro da casa. E um sentimento avassalador de imortalidade acaba de ruir.

Em algum lugar secreto, entre espumas opacas e aromas atávicos, a batalha. Subitamente sou tomado pelo impulso de uma estranha responsabilidade. Tranquilo, desperto vulcões e desenho estratégias. Evito qualquer franqueza heroica e busco na memória algum atalho pelo caminho de cômodos mutantes.

A imensa fogueira branca ilumina o final do corredor. Gritos horrendos do campo trespassam as paredes finas. Abro a porta. Tinir de espadas e lanças espargindo sangue sob um brilho esverdeado de passado intangível. Assumo as tristezas remanescentes e deixo cada poro transbordar um rio gelado.

Três espirais de fumaça indicam o naufrágio da mansão. O rio corre velozmente e levanta cortinas que revelam salões de uma imensa mascarada. Agarro-me a um galho flexível e sou lançado ao recanto de águas plácidas onde repousa o Barco das Árvores. Preciso subir a bordo.

Circulo entre macacos pelas plataformas flutuantes do convés. Meus olhos se perdem na altura das copas coloridas e interlocutores instantâneos confundem minha amnésia. Na cabine de um grande tronco oco, encontro a serpente ao redor do leme. À minha dúvida definitiva, apresenta o caminho do porão. Indiferença sem rosto.

Penumbra e vazio. As frestas transpiram o brilho laranja de archotes. Em meus ouvidos arde o lamento ritual das beatas. Elas choram as crianças mortas. Eu choro o esquecimento, os caminhos perdidos. A serpente se enrosca no corrimão da escada, absorvendo tudo com sua língua bipartida. Perco o chão, sou tragado pelo redemoinho absurdo. O grito das beatas, o choro asfixiado dos minúsculos cadáveres. O Barco retoma seu curso, já inalcançável para mim. Inalcançável como milênios guardados em um castelo, sob o balcão, entre os trapos.

Sob o som das flautas orientais, flutuo indefinidamente.
Praia das Mutações - deito na areia morna, divina. Miro o oceano, agora petrificado. Piscinas de luz e gigantescas colunas metálicas mergulham no mármore para criar um segundo universo - o mundo restabelecido. Arrasto meus tentáculos feridos até a pedra fria.

Observo todos estes zumbis arroxeados enquanto aguardo sob a semiluz do terminal. Vozes eletrônicas, utilidades públicas. E quantos monstros deixando suas cavernas, ganhando o Universo a tentar um resgate inútil de qualquer impossibilidade? Apanho o trem. O vagão está lotado - todos aguardam ansiosamente aquilo que acreditam ser uma grande surpresa. É desta forma que as coisas andam bem.

Uma última incursão à casa antiga. Visito as ruínas do velho galpão de tralhas, agora incrivelmente vazio. Meus pés esbarram em alguma tábua solta do assoalho e já não lembro se procuro por algo.
O vento se diverte com o rangido da porta enquanto deixo tudo para trás.
Autor: Marcelo Martins De Martins


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