Do Cinismo



O cinismo de Diógenes não se assemelha em nada ao que hoje conhecemos por essa palavra. Muito pelo contrário: cínico quer dizer "canino" e Diógenes era cínico porque resolvera viver como um cão. Ele aprendera com Antístenes a desprezar a fatuidade da vida.                                                     Herculano Pires

Dois eixos norteiam este artigo. No primeiro, abordaremos questões conceituais e doutrinárias referentes ao Cinismo. No segundo, centrar-nos-emos em Diógenes de Sínope, sem dúvida, figura maior desta corrente filosófica.

Bolívar Echeverría, reconhecido pensador equatoriano hodierno, afirmou: "o cinismo se converteu no sintoma mais característico da civilização atual". Se é verdade, de que cinismo fala o mestre?

Em termos etimológicos, esta palavra vem do grego kynismós, chegando ao latim cynismu. Sua carga semântica profunda: "igual a um cão". Afirmarmos, com precisão, qual a origem é tarefa que nem os especialistas chegam a um acordo. Dizem uns que o nome originou-se do lugar no qual Antístenes – fundador da Escola – ensinava: Ginásio Cinosarge (cachorro branco). Outros defendem que o termo deriva de kynós (cachorro). Sintetizando, trata-se de uma corrente filosófica surgida em Atenas, por volta dos séculos III e IV a.C., estribada, sobretudo, numa idéia de virtude cujo busílis é a independência face aos outros, às paixões, às coisas, a fim de que o sujeito chegue à plena autonomia.

Os Cínicos ensinavam com suas próprias vidas, rejeitavam formulações abstratas e acreditavam que a "alma" deve estar acima de qualquer valor material. Ou seja, viver bem nada mais é do que nos descobrirmos a nós mesmos, sem perdermos a dimensão do outro e segundo os desígnios da natureza. Portanto, discurso (parresía) e ação (anaídeia) são marcas inconfundíveis destes filósofos. Outro aspecto interessante de suas doutrinas diz respeito ao conhecimento. Para eles, tudo é relativo já que não admitiam essências universais. Assim, cada coisa não vai além do próprio nome que eventualmente o indique, isto é, há o homem (indivíduo), mas não existe a "humanidade". No fundo, a realidade cínica é apenas aquela captável pelo ver e pelo tocar. Como sabemos, Hércules representa perfeitamente todo o ideal filosófico do Cinismo: resignado, vence os prazeres mesmo sob certos sofrimentos.

Quem pusesse os olhos num Cínico o reconheceria imediatamente. Andavam pelas ruas e praças maltrapilhos, comiam qualquer coisa, não tomavam banho, defecavam em público, transavam ao ar livre. Riqueza e poder eram vistos como os maiores responsáveis pela corrupção e mazelas entre os homens. Diziam que ninguém deveria viver preso a leis, menos ainda se julgar cidadão local (Diógenes propalava: "sou uma criatura do mundo – cosmos). Alertavam para o cuidado que se deve ter com a política. Antístenes, por exemplo, recorria à metáfora do fogo para provocar: se estivermos próximos demais, corremos risco de nos queimar; se nos afastarmos muito, vamos sentir frio.

Ninguém levou ao extremo os preceitos cínicos mais do que Diógenes de Sínope, nem Antístenes, o fundador. Nasceu em 400 a.C em meio a uma família abastada, seu pai, Iquésios, era banqueiro. Todavia, por ter sido acusado de adulterar a moeda, Diógenes foi mandado ao exílio. A partir daí, passou a viver modestamente.

Um tonel, no centro de Atenas, funcionava como sua morada. Seus únicos bens eram uma túnica, um cajado e um embornal de pão. Nas palavras do professor Jorge Luis Gutierrez, "Era extremamente rápido para responder as perguntas que lhe eram feitas. Altivo e perseverante, possuía o dom da persuasão, seus argumentos sempre prevaleciam sobre os dos outros".

Entre inúmeras histórias sobre Diógenes, duas são ilustrativas de seu modo de ser. Em pleno meio dia, era visto com uma lanterna acesa na mão exclamando: "procuro um homem virtuoso". Vale ressaltar que este homem há de possuir, entre outras qualidades, estas absolutamente imprescindíveis: bondade, ética, firmeza e coerência. Certo dia, Alexandre da Macedônia, em visita a Grécia, resolveu procurar Diógenes. O encontrou numa planície tomando sol. O imperador e seu cavalo faziam sombra ao filósofo. Em dado momento, Alexandre propôs: "Pede-me o que quiseres". A resposta veio rápida e direta: "Deixe-me o meu sol".

Quando morreu (323 a.C), construíram um túmulo sobre o qual ergueram uma coluna contendo um cão de mármore e as seguintes palavras:  "O próprio bronze envelhece com o tempo, mas tua glória, Diógenes, nem toda a eternidade destruirá; pois apenas tu ensinaste aos mortais a lição da auto-suficiência na vida e a maneira mais fácil de viver".

Ao retomarmos a afirmação de Bolívar Echeverría, fica evidente que o cinismo a que se refere nada tem a ver com este aqui pontuado. Nessa acepção, significa desfaçatez, descaramento, impudência, desvergonha. É o irmão gêmeo de todo e qualquer tipo de corrupção. É o cinismo às avessas, naquilo que este fenômeno pode possuir de mais pejorativo.

O Cinismo, enfim, enquanto postura filosófica tem algo a nos dizer hoje? Talvez como estilo de vida radical, não. Adotar a natureza como aio, como paradigma, como se fosse um "livro ético-político", não faz o menor sentido. Entretanto, certos valores defendidos pelos Cínicos podem, sim, ser aplicados a nós, seres do Século XXI. Consoante Gutiérrez, "há nos Cínicos um gosto para o natural, um desprezo pelas venalidades da cultura, desprezo pelos filósofos arrogantes e vãos, rejeição da tagarelice filosófica, um desagrado pelo superficial e falso que, com certeza, muitas pessoas, em nossos dias, veriam com muito agrado. Coerência, amor pela liberdade e afastamento do supérfluo são aspectos que também são valorizados".                                                                               


Autor: Ary Carlos Moura Cardoso


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