Uma simples lição.



Autor: Eduardo Silveira

Uma Simples Lição

22:15

Helena esfregava as mãos vigorosamente, para ver se minimizava o frio que fazia naquela noite escura. Parada ali, torcia para que o seu ônibus não demorasse muito. Olhou apreensiva para o relógio, que marcava 22:15 min. Estava um pouco assustada, porque, ali era considerado um local muito perigoso, principalmente naquele horário.
- Droga! ? Pensou ela irritada. ? Como o tempo demora a passar, e esse ônibus também que não chega nunca.
Helena trabalhava em uma empresa de informática, e seu horário de saída era às 18:00 horas, mas, como houvera uma carga extra de trabalho, ela e mais alguns colegas haviam resolvido ficar até mais tarde, a fim de concluir o serviço.
- Ô dia maldito, dia de cão. Se soubesse que seria assim, nem tinha saído de casa. ? Resmungou ela entre dentes.
O dia começara mal para ela. Chegara atrasada no trabalho, com a roupa toda molhada, por causa da chuva que pegara no caminho, e para piorar a situação, o chefe ainda fizera uma crítica ao seu horário de entrada e por extensão, ao seu trabalho também. Aquilo, a arrasara, aliás, mais do que isso, a magoara, e muito, porque ela sempre procurara cumprir seu trabalho com competência, mantendo as tarefas dentro dos devidos prazos. Mas o chefe tinha um ressentimento em relação a ela, devido a algumas investidas amorosas que ele fizera, mas que ela rejeitara e nunca permitira a menor aproximação entre eles. Então, sempre que podia, ele tentava humilhá-la, perante aos colegas, como forma de punição.

Enquanto, remoia os episódios ruins daquele dia, sentiu um toque em seu braço. Todo o seu corpo se arrepiou. Virou-se rapidamente, e deu um passo para trás, tentando se proteger. Ouviu a voz da pessoa que a tocara dizendo:
- Desculpe se a assustei, minha filha. Só quero lhe pedir um favor.
Não se aproxime. ? Disse Helena assustada e continuou.- Olha, se é dinheiro, não tenho não, viu?
Não. Não é dinheiro não, meu anjo. Só quero um favor. ? Repetiu a pessoa.
Só então Helena observou melhor aquela figura. Era uma senhora, bem idosa. Uma análise rápida a deixara mais tranquila.
O que é? ? Perguntou Helena desconfiada.
Eu só quero lhe oferecer um presente e gostaria muito que você aceitasse.
Que presente? ? Perguntou Helena atenta.
Esse aqui, ó! ? Respondeu-lhe a senhora colocando um papel em sua mão.
Helena pegou o papel, olhou e viu que era um impresso com a imagem de São Judas Tadeu.
É só isso, meu amor. ? Disse a senhora.
Tá. Obrigado. ? Respondeu Helena, torcendo para a mulher ir logo embora.
- Tá certo. Muito obrigado, viu minha filha. ? Disse a senhora e despediu-se. ? Até logo e não esqueça que Deus a protege todos os dias, viu? Confie Nele.
- Sim senhora. Adeus. ? Respondeu-lhe Helena aliviada e levantando o braço, para fazer sinal para o seu ônibus que finalmente estava chegando.


22:35

Desceram umas poucas pessoas e Helena embarcou no coletivo. Pagou, ficou meio atrapalhada para passar na roleta com a bolsa e com o troco na mão, mas, finalmente conseguiu e, sentou-se. Começou a guardar o troco e viu que o "santinho", que a senhora lhe dera, estava embolado junto com as cédulas. Pensou em amassá-lo e jogá-lo pela janela, mas, teria de incomodar o senhor que estava sentado ao seu lado, por isso desistiu da ideia e, enquanto dobrava o papel, pensou: - Quando eu saltar, jogo isso fora.
A senhora também ganhou um desses? ? Perguntou o senhor sentado ao seu lado.
Como? O que disse? ? Perguntou Helena surpresa.
Desculpe. ? Disse ele, e continuou: - Eu perguntei se a senhora também ganhou um desses ? e apontou para o impresso e continuou: - Foi aquela senhora que estava no ponto que lhe deu, não foi?
Foi. Mas, como é que o senhor sabe disso? ? Perguntou ela intrigada.
É que ela já me deu um desses também. ? Respondeu ele.
Aliás, - continuou ele ? a senhora sabe a história dela? Ou por que ela faz isso?
Não. Nunca a vi. É que eu, geralmente, saio mais cedo do trabalho. Hoje é que fiz hora extra. Mas porque ela faz isso? - Perguntou ela curiosa.
É uma história longa. Mas eu vou abreviar para a senhora.
Certo.
Ela teve a filha sequestrada, há muitos anos atrás. E desde então, ela faz essa peregrinação pelas ruas, todos os dias. ? Disse ele.
Não me diga. ? Falou Helena surpresa. E continuou: - E ela teve a filha devolvida?
Não. Nunca mais viu a filha. - Retrucou ele.
Mas então....não estou entendendo. Por que ela faz isso então?
Bom, me contaram, que é porque toda mulher que ela vê, e que se pareça com a filha dela, segundo ela deve imaginar, entende? Ela dá um santinho desses para protegê-la.
Coitada! Mas é uma luta inglória, não é? Ficar vagando pela noite, num frio desses, se arriscando a todo tipo de violência. Poxa, afinal de contas, ela já é uma senhora bem idosa, não é? ? Falou Helena com pena da mulher.
Acho que o nome disso é amor, abnegação, sei lá. ? Disse ele e arrematou: - Olha, me desculpe, mas vou saltar no próximo ponto. Com licença. Foi um prazer, viu? Tenha uma boa noite.
Desculpe, - Disse Helena ? Mas o senhor me disse que ela lhe deu um santinho, não foi? Por que? Afinal o senhor é um homem.
Deu sim. ? Disse ele sorrindo. ? Mas foi quando eu estava com a minha esposa num ponto de ônibus, lá perto de casa.
Ah, ela deu pra sua esposa, então.
Isso. Tchau! ? Disse ele, despedindo-se, e já caminhando para a porta para saltar.
Tchau! ? Respondeu Helena.
Helena acompanhara com o olhar, ele e as outras poucas pessoas, que saltaram. E, logo, o ônibus prosseguiu a viagem novamente. Helena sentou-se junto à janela, e ficou pensando na estória daquela mulher. - Que estória mais doida. ?
À medida que pensava na estória, foi lembrando de alguns detalhes percebidos naquela mulher. E só então se deu conta de que não havia visto na expressão dela, nenhum traço de mágoa, raiva, tristeza, muito pelo contrário, a mulher havia se mostrado, delicada, comunicativa e com uma voz muito suave, doce. Sem dúvida ? Pensou ela - era uma figura muito especial. A forma como ela agia, vagando por aquelas noites em que tantas tragédias à toda hora aconteciam, sem contar o frio cortante das madrugadas, a chuva que provavelmente ela devia pegar e mesmo diante de toda essa problemática, ela , discretamente, persistentemente, singelamente fazia aquela peregrinação tentando proteger, quem sabe, um fantasma.

23:30

De repente, Helena se deu conta de que estava chegando no ponto onde ela desceria. Levantou-se, puxou a cigarra e encaminhou-se para a porta. Quando desceu, e começou a caminhar em direção ao seu prédio, notou que em sua mão estava o "santinho". Ficou olhando para aquele pedaço de papel por alguns minutos e suavemente colocou-o dentro de sua bolsa.
Algo indefinido dentro dela se modificara, e a fez entender que, às vezes, nos importamos com tantos problemas sem nenhuma relevância, sofremos tanto por causa de pequeninas bobagens, que na realidade, só fazem a nossa vida parecer um mar de insatisfações e angústias.
Chegou à entrada do seu prédio, Pegou as chaves, abriu a porta, deu uma ultima olhada para a rua, sorriu internamente. A noite continuava fria, mas ela já não tremia mais, ela já não estava mais de mau humor, ela já não estava mais com raiva daquele dia, não estava mais com raiva do seu chefe, todas as sensações ruins daquele dia, como que por encanto, haviam desaparecido.
Subiu para o seu apartamento com a plena consciência de que naquela noite, havia aprendido uma simples lição que, com certeza, lhe valeria para toda a sua vida.


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Autor: Eduardo Silveira


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