Um domingo especial.



Um domingo muito especial
Autor : Eduardo Silveira

- Pagar, pagar, pagar...pagar.
- Meu Deus, aonde é que eu vou parar assim? ? Perguntou-se Clara, angustiada.
A sua vida, ultimamente, eram só contas, contas e mais contas. Do seu salário não sobrava um centavo sequer para uma saida com as amigas, para ir a um cinema, para ir a um shopping... nada. Clara estava vivendo assim há alguns meses.
Chegou até a pensar em não pagar mais nada e ficar devendo a todo mundo. Quem sabe assim, ela pudesse ser mais feliz. Mas que nada. Ela não era esse tipo de pessoa. Gostava de ter o seu nome limpo, deixava de comer, mas pagava todas as suas contas. Isso, ela aprendera com a mãe, que a ensinara que, a única coisa que uma pessoa tinha de valor e que deveria sempre preservar, era o seu nome limpo. E Clara não abria mão disso.
Clara trabalhava muito. Na realidade, a vida dela era só o trabalho, mais nada. As amigas que tinha, eram da empresa onde trabalhava. No prédio onde morava, só conhecia duas ou três pessoas, mesmo assim, só de bom dia, boa tarde ou boa noite. Não gostava de ficar enfurnada na casa de vizinhos. Isso, ela detestava. E também não gostava de vizinhos se metendo em sua vida e muito menos, vizinhos enfiados dentro de sua casa. Os dias em casa, para ela eram longos, demoravam demais prá passar. No fundo, no fundo... ela era uma mulher de alma triste. E o pior é que ela sabia disso, tinha consciência desse fato, mas não sabia direito, a que atribuir.
Já tentara, em vão, fazer uma "regressão", com ela mesma, para ver se encontrava algum fato na sua infância, na sua juventude, com amigas, parentes, mas... nada. Não conseguira. A mãe a criara com amor. Do pai não se lembrava, pois quando ele faleceu, ela tinha uns três anos, era muito nova. Era filha única, e por tanto, todo carinho e amor que a mãe tinha, foi lhe dado de uma forma simples, mas intensa..
- Talvez fosse o emprego. ? Pensou ela.
Mas logo descartou a ideia, porque, ela gostava muito do seu emprego. Aliás, era ali, que ela se sentia mais realizada. Era secretária em uma multinacional. Era um emprego que lhe rendia um salário razoável. E o fato dela estar o dia todo ocupada, falando com um e com outro, procurando pastas, relatórios, pesquisas e mil outras coisas afins, a deixavam extenuada, mas em contrapartida, a distraiam e não a deixavam ficar pensando em coisas tristes ou deprimentes. Por isso, se jogava de corpo e alma no seu trabalho.
Ela já trabalhava ali havia uns seis anos. Conhecia a maioria das pessoas de lá. Seu chefe a estimava e confiava muito nela, porque sabia da sua força de trabalho. Ela era muito competente no que fazia. E ele costumava dizer aos outros diretores:
- A Dona Clara é pau pra toda obra. E, era mesmo. Pra ela não havia tempo quente. Se houvesse algum serviço pra fazer dentro do horário comercial ou mesmo fora dele, lá estava ela, sempre pronta. Diligente, determinada, sempre competente.
- Por que será que a minha vida profissional é tão boa e a afetiva, é esse desmoronar de sentimentos indefinidos? ? Perguntou- se, assustando-se com a objetividade da pergunta.
- Será que isso é coisa da idade? ? Divagou, lembrando-se que faria quarenta anos na semana seguinte.
- Será que essa onda de tristeza e depressão, já é por conta da menopausa? ? Continuou ela, navegando nas ondas da sua mente especulativa.
- Não. Não pode ser. - Respondeu a si mesma e continuou : - Os exames médicos anuais da empresa estavam todos bons. Nenhum resultado negativo, nenhuma restrição médica.
- Aliás, - Lembrou ela. ? Saúde, é uma coisa que eu sempre tive. E muito boa. ? Vangloriou-se.
E pensando nisso, dirigiu-se à geladeira para pegar uma fruta. Ela tinha hábitos saudáveis, não frequentava academias, nem fazia dietas mirabolantes, até porque não precisava. Tinha um corpo longilíneo, era uma falsa magra, como diziam as amigas. Em casa, gostava de usar roupas esportivas, moletons, camisetas, tênis, sandálias baixas, coisas leves. Talvez fosse uma forma de compensação, uma vez que na empresa, tinha de estar sempre bem vestida, maquiada, embora já estivesse acostumada com essas coisas. Ela não era uma mulher linda, mas, sua figura era a de uma mulher suave, doce. E isso, com certeza, lhe atribuía um certo charme.
Chegou perto da janela da sala e olhou para a rua. Ficou pensando se todas aquelas pessoas lá embaixo, eram felizes ou, eram assim como ela. Com certeza que devia ter de tudo um pouco. ? Deu um meio sorriso triste. Sentou-se no sofá, jogou a cabeça para trás, e ficou assim por um tempo. ? Hoje é sábado. ? Pensou. - E eu aqui, sozinha. Foi aí que lembrou de Arnaldo.
-Arnaldo. ? Ficou com esse nome bailando na sua mente. Havia dez anos que eles namoravam. ? Namoravam? ? Deu outro sorriso amargo. Sua mente começou a percorrer suas lembranças. Conhecera Arnaldo quando era adolescente, e ele havia se formado em Engenharia. Ela apaixonara-se perdidamente. Amor de adolescente, sem consequências. Mas para ela não. O namoro durou uns dois anos, mas, depois ele foi transferido pela empresa que trabalhava para a filial de Manaus, e lá ficara durante quinze anos.
Nesse período, ela estudou, fez faculdade de letras, fez diversos cursos, sempre com a esperança de que ele, um dia, voltasse para ela. Mas o tempo foi passando, e as cartas, antes semanais, foram ficando cada vez mais escassas. Até não chegar mais nenhuma. Ela esperou muito tempo. Acreditava no amor. Acreditava na felicidade. Acreditava em Arnaldo.
Mas Arnaldo se casou lá, e teve duas filhas. Quando o reencontrou, por acaso, já tinha trinta anos. Era uma mulher já mais madura, mais vivida, independente. Mas seu coração, havia trancado as portas para o amor ou para qualquer relacionamento mais profundo. Na sua vida, havia comparado todos os homens que conhecera, a Arnaldo. E não achava graça em nenhum deles. Eles não chegavam nem aos pés de Arnaldo. O seu amor por Arnaldo era uma coisa de outras encarnações. ? Pensava ela.
Porisso, quando ela o encontrou, depois de tanto tempo, em pleno centro da cidade, em meio a tanta gente, seu coração quase parou. Ele a viu também. Ela estava indo levar uns papéis urgentes para o seu chefe. Ele estava indo para uma reunião numa empresa. O contato foi breve, não podiam ficar ali, conversando. A emoção estava a flor da pele. Mas, decidiram rapidamente marcar um encontro para o dia seguinte, num local que ele conhecia, ali mesmo no centro. Ela, claro, aceitou na hora. Embora tivesse visto a aliança no dedo da mão esquerda dele.
No dia seguinte, encontraram-se e ficaram conversando sobre várias coisas. Mas ela notara certa frieza da parte dele. Não havia excitação nele, não havia uma emoção latente, pulsante. Era como se ele estivesse acostumado a vê-la todos os dias. Já ela, não. Seu coração batia descompassadamente. Ela queria saber tudo dele. Inclusive sobre o fato dele usar aliança. Mas, fazia um esforço grande para não demonstrar suas emoções. Não queria parecer uma mulher chata. Queria sondá-lo para descobrir todos os seus segredos. E assim ficaram ali, sentados, conversando.
Depois desse dia, - Continuou com as suas lembranças ? os encontros foram se sucedendo e quando ela deu por si, eles já estavam fazendo amor em seu apartamento. Que aliás, ficou sendo o "ninho de amor" deles, conforme ele costumava dizer. Só que, esse "ninho de amor", perdurava já por dez anos. E em todo esse período, ele nunca a levara para viajar, se fossem a um cinema ou a um shopping, tinha que ser de dia, e só durante a semana, porque aí, ele inventava uma desculpa para a esposa e dizia que ia fazer hora extra. Fins de semana, feriados prolongados, nem pensar. Mas ela sempre o desculpava.
E mais ainda, ela lembrou que, no começo, era diferente. Ele, pelo menos prometia que ia se separar da esposa, que precisava de um tempo, por causa das filhas que eram pequenas. Enfim, usava dezenas de argumentos, todos mentirosos. Ela fingia que acreditava, talvez com medo de perdê-lo novamente.
Então, de repente, ela se deu conta de que só tinha perdido nessa relação. O fato de estar cheia de contas para pagar, era porque, ele tinha um jeito especial de impor suas vontades e ela, dependente afetivamente, se submetia. Lembrou que ele fizera o seguro do carro, mas era ela quem pagava. As roupas caras que ela comprava para ela e para ele, eram determinadas por ele, que dizia e fazia questão de que quando saíssem, ela estivesse sempre muito bem vestida. E ela, totalmente carente, comprava roupas, sapatos, acessórios, bolsas caríssimas. Tudo isso para não desapontá-lo. Por isso, estava toda endividada. Nos últimos meses então é que a coisa apertara mesmo. Ele, simplesmente, comprara um carro novo e pediu a ela para dividir o valor das prestações, porque, segundo disse, estava com muitas contas para pagar e que esse carro seria para eles dois. E que quando as coisas melhorassem um pouco, ele iria assumir as prestações sozinho. Ela, meio contrafeita, concordou.
E esse era o motivo dela estar sem dinheiro para nada.
E ali, sentada no sofá, sem forças, sem ânimo para nada, e sozinha naquele sábado de sol, ela começou a chorar. E chorou copiosamente. Era como se todos aqueles anos de insatisfação, de desejos reprimidos, de aniversários, natais, feriados prolongados e completamente solitários, se manifestassem de uma vez só.
Ela perdeu a noção do tempo em que ficou ali.
Quando se levantou, já tinha anoitecido.
Dirigiu-se ao banheiro, lavou o rosto e ficou ali, olhando-se no espelho, querendo ver quem realmente ela era. Precisava saber. Tinha que descobrir, custasse o que custasse. Ela não queria mais aquela vida. Estava sendo sufocada por uma coisa indefinida que ela não estava gostando. Não havia prazer nela, nem na vida, nem em Arnaldo. De repente, seus olhos se iluminaram.
-Arnaldo. ? Repetiu com os olhos piscando.
-É isso. ? Afirmou ela com o olhar cravado nos próprios olhos refletidos no espelho.
- Preciso acabar com essa relação. ? Sentenciou ela.- É ele a causa dessa minha tristeza, dessa depressão, desse vazio na minha alma.
E afirmando isso para si mesma, sentiu um calor queimar as suas faces. Viu-se ruborizada. E, a princípio, um misto de indignação, depois raiva e por fim de vergonha se apoderou dela. Ficou com vergonha de si mesma por ter-se acovardado, e demorado tanto tempo a admitir essa verdade. Ela não o amava mais.
- Meu Deus! ? Exclamou ela, e continuou, - Como pude fazer isso comigo? Como pude ter me anulado tanto assim? Como pude ser tão covarde? Como pude ter medo de que ele me deixasse? Como pude fingir tanto tempo que acreditava em suas mentiras?
- Não. ? Pensou ela. ? Ele tinha culpa sim, mas a maior culpada era ela mesma. Ele só fez o que fez, porque ela permitira que ele fizesse. No fundo, no fundo ela sabia que todas as promessas dele, eram todas mentirosas.
Olhou o relógio. Eram 19:30 min. Pegou o telefone e ligou para ele.
- Alô.
- Arnaldo?
- Sim. Quem é?
- Sou eu. Clara.
- Olá, como vai. ? Disse ele disfarçando a surpresa e continuou : - Só um minutinho, que eu vou pegar o papel na minha pasta.
Ela esperou, porque sabia que ele estava procurando um lugar para falar sem que ninguém o ouvisse.
- Mas o que é isso? ? Perguntou ele com a voz áspera.
- Quantas vezes eu te falei para não ligar pra cá? Você está doida? Pirou? ? Falou entre dentes.
- Presta atenção. ? Disse ela com uma frieza na voz que ele se calou no mesmo instante.
- Quero que você passe amanhã aqui em casa para pegar as suas coisas, ouviu? ? Disparou ela.
- Coisas? Que coisas? ? Perguntou ele apalermado.
- Suas coisas. Suas roupas, seus pertences, tá ouvindo? ? Confirmou ela.
- Olha, não sei o que está acontecendo, mas eu te ligo amanhã e aí ...
- Arnaldo! _ Falou ela, taxativa. ? Quero que você venha amanhã até as cinco da tarde, senão vou jogar todas as suas coisas fora, ouviu bem?
- Mas o que está acontecendo? ? Perguntou ele sem saber o que pensar.
- Até amanhã...às cinco. Não se esqueça. ? E desligou o telefone.
Clara suava por todos os poros, sua pele estava fria. Assim como fria estava a sua alma, a sua mente e o seu coração.
Respirou fundo, várias vezes, tentando achar o seu ponto de equilíbrio. Por fim, tirou toda a sua roupa e enfiou-se debaixo do chuveiro e ficou ali, com os olhos fechados, deixando a água escorrer pelo seu corpo. Perdeu a noção do tempo.
Domingo.
A campainha tocou.
Clara olhou o relógio e viu que eram 16:20 min.
- Chegou mais cedo, - Pensou ela. ? deve estar ansioso.
Levantou-se e foi abrir a porta.
- Mas o que está acontecendo? ? Perguntou ele já entrando, com a fisionomia carrancuda. ? Pode me explicar? ? E continuou:
- Que ideia foi aquela de me ligar no meio da noite para falar sei lá o que, não entendi nada. Eu acho que você...
- Arnaldo! ? falou ela baixo, mas com firmeza.
- Olha, - Insistiu ele. - eu quero uma boa explicação. E...
- Arnaldo! Cala essa boca! ? Disparou ela num tom zangado.
Ele parou de falar, espantado, olhos arregalados.
Ela então, olhando bem dentro dos olhos dele, disse: - Aqui estão todas as suas coisas. Está tudo aí dentro dessa mala. Eu quero que você carregue isso daqui agora.
Eles já haviam discutido e brigado muitas vezes. Mas aquela, era a primeira vez que Arnaldo sentia que entre eles se abrira um abismo. Ele ainda tentou dissuadi-la daquela ideia, mas foi em vão. Seus argumentos não valiam mais nada para ela. Ele, parado, em frente a ela, olhando-a nos olhos, sentiu que a perdera para sempre.
Mentalmente, ele tentava entender o que estava acontecendo, mas não teve tempo para tanto. Clara praticamente o expulsara de sua sala.
Quando viu que não havia mais jeito, Arnaldo, como um bicho acuado, tentou magoá-la, feri-la e disse com desdém: - Sabe de uma coisa? Acho melhor mesmo acabar com isso, porque você não é mulher prá mim. Só eu sei o esforço que tive de fazer para aturá-la todo esse tempo. Você devia me agradecer o favor que eu te fiz, quando...
Clara, séria e inflexível, com o olhar cravado nos olhos dele, interrompeu-o e falou pausadamente: - Arnaldo! Você não é, não foi e nunca será um homem digno de ser amado por uma mulher. Adeus e nunca mais me apareça aqui.
E fechou a porta, com toda força.
Ainda ouviu quando ele disse:- Vagabunda, piranha, tá falando assim porque já deve ter arrumado outro macho, não é, sua escrota?
Clara dirigiu-se à cozinha. Pegou um copo com água, sentou-se, e bebeu um gole lentamente.
Começou a analisar a situação pela qual havia passado. E, depois de pensar em tudo que acontecera entre eles e, principalmente naqueles últimos minutos, ela concluiu que havia feito a escolha certa.
As palavras ofensivas que ele proferira, na realidade, não haviam surtido o efeito pretendido. Ela parecia estar anestesiada. Não sentiu absolutamente nada. Não estava com medo, não estava triste, não estava depressiva, muito pelo contrário, sentia-se bem.
- Muito bem. ? Pensou ela, esboçando um leve sorriso.
Terminou de beber o copo d?água, levantou-se, pegou a bolsa e saiu. Afinal de contas era domingo, e um belo domingo de sol. Iria dar um passeio pela praia. Quem sabe comer alguma coisa.
Ela sentiu que estava livre de um pesadelo, de um amor que morrera no passado, mas que ela, sonhadora e inocentemente tentara reviver.
Sua alma estava leve. Era como se, de repente, tivessem tirado um peso das suas costas. Desceu do prédio, começou a andar pela rua. Tudo estava tão diferente. As pessoas, as cores, os carros. Respirou bem fundo, sorriu internamente e seguiu em direção à praia.
Ela agora, poderia sair mais, visitar outros lugares, viajar, dançar, fazer novos amigos, enfim fazer o que quisesse.
Afinal de contas, aquele domingo estava sendo muito especial, pois ela ainda não se dera conta, mas acabara de encontrar, sem querer, um outro amor.
O seu amor próprio.


Autor: Eduardo Silveira


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