Onde mora a paz de espírito



Onde mora a paz de espírito.

Clemente saiu do colégio para passear e pensar.

A tarde findava.

O sol dirigia-se ao poente, com a gabardia do dever cumprido, após manter-se radiante desde o seu surgir. Impressionava a todos, deixando passar a idéia que, de tão forte não esmaeceria no final da tarde. Mas lá ia ele cumprir sua missão de clarear o outro lado da terra.

Na calçada do lado oposto ao muro do colégio, Clemente caminhava lentamente, até chegar ao outro quarteirão.

Deteve-se frente a um bar.

Homens se amontoavam ao redor de mesas abarrotadas de garrafas de bebidas, que agora vazias, ainda permaneciam ali, estrategicamente para orientar os garçons na hora da cobrança.

Qualquer um poderia errar na conta não usasse como guia os vasilhames através dos quais se chegava aos valores finais.

Havia mesas com apenas uma cadeira. Lugares estes ocupados por solitários, de olhares perdidos em si mesmos, revolvendo seus pesadelos.

Sozinhos consumidos por recordações de passado longínquo ou recente, banhados por bebidas. Ansiavam fossem além de inebriantes, milagrosas enzimas do esquecimento, poderosas fontes de perdão, capaz de apagar mágoas causadas ou sofridas, que atuassem como uma borracha apagando riscos errados do branco papel da alma humana.

Clemente lembrou dizeres de seu pai, de que bares eram locais de concentração de iguais com falta de objetivos a procura do nada, com risco de envolvimentos sem proveitos futuros.

O calor estava forte graças ao magnífico esplendor do sol, que reinou soberano o dia todo.

No interior do bar, o calor era ainda mais forte.

A ventilação falha realçava o cheiro das peludas axilas expostas pelas camisas regatas, suadas de dias de uso, aliado aos dos respingos de vômitos nas bermudas.
Vômitos das indisposições estomacais causadas pelas gordurosas linguiças dos frigoríficos sem inspeção das autoridades veterinárias, que expunham suas mercadorias em vitrines e balcões pouco iluminados.

Clemente parado sem entender o porquê de homens fortes e aparentemente viris, passarem horas e horas nestes lugares, sem nenhuma mulher, perfume de mulher ou de flor, todos se abraçando, jurando em altos brados, amizade eterna. Sentimento que sempre aflora após algumas doses e acabam com a moderação.
Muitos eram os abraços, carícias na verdade, atrás de idéias másculas de um machismo a ponto de muitos, maltratarem mulheres ou companheiras no retorno as suas casas.

Casas, lares, coisas que o valham sem a menor atração para estes que deixam filhos, filhas, mulheres, mães, irmãs, perfumadas, cheirosas para ficarem em lugares como estes.

Clemente reparava em cada um.

Cada um uma história diferente.

Todos têm suas histórias, umas mais comoventes que outras.

Um recém aposentado mantém modos, roupas do tempo da ativa, quando todas as manhãs sem perceber o sol em sua plenitude, dirigia-se apressado ao escritório e hoje o faz pontualmente, maquinalmente para o bar.

Não reclama que o trabalho daquela época, o afastava da família. Não viu filhos crescerem e hoje não vêm os netos, nem as rugas do rosto da companheira.

Outro aposentado, cujo número do benefício é mais antigo, com a velha camisa surrada e descolorida, mal passada, faltando alguns botões, oferece ao recém chegado, um lugar em sua mesa para conversas vazias de propósitos, contando estórias ultrapassadas e sem sentido.

Os não aposentados, mas desocupados, discutem inflamadamente os resultados dos últimos jogos tendo sempre um culpado para a derrota de seus times e este, quase sempre é o juiz.

Concordando ou descordando, abrem outra rodada de cerveja que os levarão a mais horas dentro do bar.

O sol reluta em partir. Mantém alguns raios no horizonte.

Clemente não quer voltar para o colégio.

O sol quer tentar como há milhares de anos, decifrar a alma humana.

Clemente não consegue entender pessoas que como ele vive procurando a paz de espírito.

O sol se vai com a esperança de um novo amanhecer.

Clemente volta para o colégio.

Parado a frente dos portões um jovem fita-o nos olhos e diz:

- A paz de espírito, não mora no poente, nas estrelas, no colégio ou nos bares. A paz mora no seu íntimo, como disse o Senhor "O Reino dos Céus está dentro de cada um".

Os grandes portões se fecham atrás dele.

Estrelas brilham no céu. Outro turno de garçons assume seus postos no bar.





Autor: Antonio Ribeiro


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