O DISCURSO E O ENSINO DO CANTO ORFEÔNICO NAS DÈCADAS DE 30 e 40 DO SÉCULO XX



INTRODUÇÃO
Durante as décadas de 30 e 40 do século XX, foi ministrado na escola primária, normal e ginasial brasileira o ensino de Música Canto Orfeônico, tendo o maestro Heitor Villa-Lobos como defensor e percussor dessa disciplina no Brasil. Durante estas décadas, Villa-Lobos promoveu diversas concentrações orfeônicas que tinham como objetivo comemorar datas cívicas como, por exemplo, o dia da Independência e o dia da Proclamação da República. Em uma dessas organizações orfeônicas realizadas no estádio do Vasco da Gama: São Januário no Rio de Janeiro chegou a contar com 40.000 vozes entoando canções e hinos patrióticos.
Em Curitiba, o ensino de Canto Orfeônico prosperou durante estas duas décadas, contemplando as diretrizes nacionais do Canto Orfeônico. Neste artigo, busca-se analisar as questões discursivas que permeiam os diferentes tipos de fontes históricas como os recortes de jornais com a participação do orfeão do Colégio Estadual do Paraná, sob a orientação do maestro Bento Mossurunga, os discursos, as diretrizes e opiniões sobre o ensino do canto Orfeônico feito pelo maestro Villa-Lobos, além de uma análise de leis e decretos oficiais sobre o ensino de Música na escola secundária.

OS DISCURSOS E A EDUCAÇÃO MUSICAL
As décadas de 1930 e 1940 marcaram o momento do ápice das festas escolares e concentrações orfeônicas no Brasil, já que Heitor Villa-Lobos recebia apoio do presidente Getúlio Vargas. Em Curitiba estas festas também estavam presentes, como se pode notar em artigos de jornal da época. Vale ressaltar que os jornais são fontes voltadas a um público leigo, apesar de culto, já que este meio de comunicação não atingia a todas as classes sociais. Em um artigo sobre comemorações do dia da Bandeira, em 21/04/1939, publicado na Gazeta do Povo, têm se algumas análises pertinentes, conforme mostra o trecho a seguir:
O dia da bandeira no tradicional e nobre educandário da rua Ébano Pereira transcorreu num ambiente de civismo edificante e comovedor. Ás 11 horas de domingo, presentes os corpos docentes e discentes, foi aberta a sessão pelo exmo. Sr. Prof. Diretor Francisco José Gomes Ribeiro, que expôs os motivos da comemoração patriótica, salientando a recepção da bandeira nacional dada pelos professores, funcionários e amigos da casa (Gazeta do Povo, 21/04/1939).

O ambiente nacionalista e o clima de respeito à Pátria e seus símbolos, são pontos que merecem aqui atenção especial. O ambiente que o autor descreve transcorre a um clima de elevação e de engrandecimento da alma (ambiente de civismo edificante e comovedor). Desta forma, o local da apresentação foi repleto de uma tonalidade sensacionalista, onde o leitor é jogado a um clima de imensa importância nacional. O respeito à instituição e àqueles envolvidos por ela, também é um ponto crucial para o autor, já que a instituição é dotada de adjetivos que apontam a tradição e a importância do nobre educandário. Ao diretor da instituição, um cuidado exagerado no tom de elevação e merecedor de respeito: Exmo, sr., professor e diretor são as bagagens que o diretor traz, figura ilustre, que em posição de comando, merece um respeito em forma de reverência. O destaque dado à recepção da bandeira nacional também é prova da elevação ao símbolo nacionalista homenageado na festa.
Na atuação do orfeão, aparecem pontos relevantes no discurso aqui analisado:
Após entrar no salão nobre e pavilhão alviverde, empunhado por uma ala do estabelecimento e guardado por um séqüito de honra pelas complementaristas, foi pomposamente entoado o hino oficial do Ginasio Paranaense. Cantou-se também entusiasticamente o hino da bandeira (...)
E festivamente ecoou o hino da Independência. Seguindo o programa, o aluno Vinícius Vilas-Boas, da 3ª série do curso fundamental, vibrou encantando o auditório com palavras flamejantes. Após do que, foi ouvido o hino acadêmico. Passou-se então à entrega da bandeira ao Ginásio, debaixo de vibrantes palmas, pelo prof. Dr. Pedro Macedo. Recebeu-a o sr. Diretor Francisco José Gomes Ribeiro que, mediante palavras calorosas agradeceu e a transmitiu ao prof. Decano do estabelecimento, sr. Prof. Dr. Valdemiro Teixeira de Freitas que, por sua vez exalçou as belezas e as glórias do pendão nacional. Eboou entusiástico, logo depois, o hino da bandeira, que como sempre foi dirigido pelo notável musicista maestro Bento Mossurunga. (Gazeta do Povo, 21/04/1939).

Nota-se que o clima de respeito não se torna igual a todos os envolvidos. Os exageros dados a professores, maestro e diretores remetem a uma autoridade incontestável no evento. Ao aluno apenas um elogio a suas palavras. Nenhum adjetivo é atribuído ao estudante. O clima sensacionalista colocado no artigo acima citado ganha força com palavras de enaltecimento ao evento, tais como: séqüito de honras, palavras flamejantes, belezas e as glórias do pendão.
Quando o autor coloca o termo: entusiasticamente para a execução do canto por parte dos alunos, de certa forma enaltece o orgulho dos alunos ao executarem o hino do Ginásio Paranaense. Da mesma forma que há o sinal de respeito para as autoridades escolares, há respeito nos hinos que sempre soam de maneira rebuscada (e festivamente ecoou o Hino da Independência e; reboou entusiástico, logo depois, o Hino da bandeira). Em contraposição, há menos destaque para o hino acadêmico. O hino da instituição também é apresentado com destaque (foi pomposamente entoado o hino oficial do Ginásio Paranaense), o que demonstra o respeito a uma instituição que trabalha ao serviço da nação. Em nenhum momento do texto são exaltados aspectos relativos à música, como afinação ou desempenho técnico musical dos alunos.
Em outra matéria, publicada no mesmo jornal, em 30 de Novembro de 1937, sobre a festa de encerramento do ano letivo, no Ginásio Paranaense, que seria realizada naquela mesma tarde, nota-se também o tom nacionalista no autor do artigo, principalmente quando coloca que: "(?) É curioso notar que o programa musical obedece somente a musicas nacionais" (Gazeta do Povo, 30/11/1937). O autor se contradiz já que depois apresenta as canções que serão apresentadas pelo orfeão do colégio, e nota-se a presença de musicas de autores estrangeiros, como por exemplo, Bach.
Mas, não é só em artigos e matérias de jornais que se encontram questões relevantes para análise do discurso a respeito do ensino de Música. Em 12 de janeiro de 1932, Villa-Lobos entrega ao presidente Getúlio Vargas um memorial, um apelo ao chefe de Governo que trataria do meio artístico brasileiro, sob a finalidade educativa. Neste documento, Heitor Villa-Lobos, problematiza a questão artística do Brasil, comparando-a com as experiências realizadas em outros países, e ressalta a música como a melhor e mais eficaz propaganda do Brasil para o exterior.
A música e as demais artes para Heitor Villa-Lobos aparecem como elementos que devem ser valorizados por um Governo preocupado com a formação de seus cidadãos. No trecho inicial da carta , na qual o autor justifica a produção da mesma, aparece de maneira acentuada o discurso nacionalista de Villa-Lobos:
No intuito de prestar serviços ativos a seu país, como um entusiasta patriota que tem a devida obrigação de por à disposição das autoridades administrativas todas as suas funções especializadas, préstimos, profissão, fé e atividade, comprovadas pelas suas demonstrações públicas de capacidade, quer em todo o Brasil, quer no estrangeiro, vem o signatário, por este intermédio, mostrar a Vossa Excelência o quadro horrível em que se encontra o meio artístico brasileiro, sob o ponto de vista da finalidade educativa que deveria ser e ter para os nossos patrícios, não obstante sermos um povo possuidor, incontestavelmente, dos melhores dons da suprema arte? (H. VILLA-LOBOS, 1932).

No discurso de Villa-Lobos notamos o ambiente nacionalista em que está inserido, onde a valorização da Pátria é um ponto crucial, como coloca o maestro quando aponta para si mesmo como um entusiasta patriota, capaz de ser útil para o seu país, através de sua arte. A arte nacional é altamente valorizada por Villa-Lobos (não obstante sermos um povo possuidor, incontestavelmente, dos melhores dons da suprema arte). A elevação nacionalista é o maior argumento que Villa-Lobos utiliza para atingir seu objetivo.
Villa-Lobos manteve uma posição de destaque no ensino de Canto Orfeônico do país, citado em diversos livros didáticos de Canto Orfeônico, como por exemplo, a obra Noções de Musica e Canto Orfeônico, voltado para a 1ª série do curso ginasial, de Maria Elisa Leite Freitas no ano de 1941 que aponta Villa-Lobos como:

(..) uma das maiores glórias da música nacional, aquele que, segundo Alberto Nepomuceno, achou a chave da verdadeira música brasileira, enquanto que êle achara apenas a porta, devemos portanto a organização definitiva do ORFEÃO, na capital do Brasil, dum orfeão único que deverá, mais tarde, unir num só côro todas as vozes brasileiras para, sob uma só e mesma orientação, aprender a cantar as grandezas da Pátria e saber cantando defende-la e glorifica-la pelo trabalho honesto e inteligente, cumprindo assim, o compromisso ditado por Roquette Pinto e assinado por todos os orfeonistas: PROMETO DE CORAÇÃO SERVIR A?ARTE, PARA QUE O BRASIL POSSA, NO FUTURO, TRABALHAR CANTANDO [grifos no original] (FREITAS, 1941, P.18)

Villa-Lobos é apontado como uma glória nacional. Cantar apenas, não é necessário, é importante que as músicas conforme aponta a autora, sejam glorificadas pelo trabalho honesto e inteligente. Desta forma, percebe-se um discurso que alia a música ao crescimento nacional. Novamente repara-se no Canto, uma forma de engrandecimento nacional, já que o Canto Orfeônico trabalha com canções que elevam o espírito da nação. A música assume um papel civilizador e muito providencial para o ideário da época.
Alguns exemplos da lista de canções apresentadas no livro de Judith Morisson de Almeida: Aulas de Canto Orfeônico para as quatro séries do Curso Ginasial merecem destaque. Nota-se que retirando os hinos, ainda sobram as canções cívicas que apresentam temas que deveriam colocar ensinamentos de moral sociais. Isso pode ser observado em músicas como Trabalhar, Progredir e Vencer, que coloca a importância do trabalho para os alunos. Isto assumiria uma relação com a política getulista do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), que proibia a execução pública de determinadas músicas que falassem de temas de exaltação a vadiagem e a vida boêmia. Este exemplo pode ser observado com as proibições do DIP a música de Wilson Batista, durante a década de 1930, em São Paulo, por enaltecer temas antitrabalhistas : Um conflito interno profundo entre o trabalho e a malandragem. Um duelo de vários artistas, que como Wilson Batista, não podiam viver exclusivamente de sua arte.
Não obstante, algumas análises retiradas das finalidades do Canto Orfeônico na escola, podem comprovar o valor que a música tinha para objetivos que não estavam ligados diretamente à música e a estética musical:

FINALIDADE DO CANTO ORFEÔNICO
Na portaria Ministerial nº 300, de 7 de maio de 1946, referente ao ensino de canto orfeônico nas escolas secundárias do país, lê-se o seguinte:
I ? O ensino de Canto Orfeônico tem as seguintes finalidades:
a) Estimular o hábito de perfeito convívio coletivo, aperfeiçoando o senso de apuração do bom gosto.
b) Desenvolver os fatores essenciais da sensibilidade musical, baseados no ritmo, no som e na palavra.
c) Proporcionar a educação do caráter em relação à vida social por intermédio da música viva.
d) Incutir o sentimento cívico, de disciplina, o senso de solidariedade e de responsabilidade no ambiente escolar.
e) Despertar o amor pela música e o interesse pelas realizações artísticas.
f) Promover a confraternização entre os escolares. (Arruda, p. 153, 1960)

Nota-se que de todos os tópicos encontrados nas finalidades do Canto Orfeônico, apenas dois (item b; e) tem como objetivo ressaltar aspectos sobre estética musical. Os outros itens estão voltados apenas para objetivos externos à disciplina de música, tais como: estimular o convívio coletivo; proporcionar a educação do caráter; incutir o sentimento cívico e promover a confraternização entre os escolares. Desta forma, os objetivos do Canto Orfeônicos na escola, pouco têm haver com a sensibilidade musical. Isto leva a uma certa banalização da música na escola, já que esta teria como objetivos maiores à promoção dos objetivos cívicos e sociais.

CONCLUSÃO
Dentro das análises feitas no decorrer deste artigo, pode-se concluir que a disciplina de Canto Orfeônico estava cercada de um forte apelo político-nacionalista nos discursos analisados em detrimento do engrandecimento artístico nacional. A música é utilizada como forma de propagandear o Estado Novo e a política Getulista, tornando-se um poderoso instrumento nas mãos dos ideólogos do Estado Novo, sendo também proibida pelo DIP quando apresentava um conteúdo ofensivo aos ideais do Estado Novo. O tom de elevação e engrandecimento nacional que envolve o discurso a respeito do ensino de Canto Orfeônico, também é percebido no discurso de Villa-Lobos e nas obras didáticas, o que reforça o caráter nacionalista do canto.
Vale ressaltar que alguns professores e autores estiveram empenhados em aprimorar o ensino técnico de musica, o próprio Villa-Lobos manteve-se atento a esta preocupação durante os anos em que esteve empenhado na defesa do Canto Orfeônico para os estudantes brasileiros e na preparação de professores qualificados para assumir tal função.




REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Judith Morisson. Aulas de Canto Orfeônico para as quatro séries do Curso Ginasial. Companhia Editora Nacional, 1958, 21ª edição.

ARRUDA, Yolanda de Quadros. Elementos de Canto Orfeônico. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1960, 33ª edição.

CALDAS, Waldenyr. Luz Neon: Canção e cultura na cidade ? São Paulo: Studio Nobel: SESC (Coleção Cidade Aberta), 1995.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do Saber ? 2ªed. ? Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso ? 9ªed. ? São Paulo: Edições Loyola, 2003.

FREITAS, Maria Elisa Leite. Noções de Música e Canto Orfeônico ? 1ª série/ Maria Elisa Leite Freitas e Samuel Teitel, Papelaria, 1941.

Gazeta do Povo ? 21/04/1939. O Dia da Bandeira no Ginásio Paranaense.

Gazeta do Povo ? 30/11/1937. Festa de Encerramento do Ano Letivo, no Ginásio Paranaense.

VILLA-LOBOS, Heitor. Apelo ao Chefe do Governo Provisório da República Brasileira. IN: Presença de Villa-Lobos. MEC/Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro, 7°Volume, 1973.



Autor: Wilson Lemos Júnior


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