Uma Experiência em Comunidade



UMA EXPERIÊNCIA EM COMUNIDADE
Nelisa Tânia Coe de Oliveira

Como arte-educadora da rede pública, tenho vivenciado as transformações sociais e culturais provocadas pela globalização e refletidas nos educandos, tenho constatado o condicionamento de seus desejos e atitudes à influência das mídias. A grande maioria deles fica exposta diariamente, por horas e horas, frente à televisão, e na sala de aula o desinteresse se amplia. Os desafios atuais levam o arte-educador a buscar atualização e compreensão da pós-modernidade, para melhor lidar com a diversidade cultural vigente.
A arte visual passou a depender cada vez mais da cultura, das novas tecnologias, das visualidades decorrentes, teve seus limites alterados fazendo surgir a Cultura Visual que inclui novos objetos, novos temas de investigação e procura diminuir a fronteira entre arte e cultura de massa.
Foi a preocupação e a necessidade de estudo sobre a influência das mídias e a diversidade cultural que fez surgir no Brasil o Multiculturalismo, abrindo a pesquisa sobre as minorias culturais. Como aluna especial no curso de Mestrado em Cultura Visual, da professora Leda Guimarães, iniciei nesse campo aberto de pesquisa, onde a proposta era a leitura e discussão de textos selecionados, que orientariam na construção de um projeto prático e coletivo, focado em comunidades populares.além da teoria buscaríamos a prática, que seria uma forma de pensar e dialogar coletivamente, onde a importância do projeto estaria no próprio processo de construção, ou na sondagem desses universos.
Alguns pontos dos textos lidos ou vivências em sala me levaram à reflexão. Desde a primeira aula vivenciamos uma metodologia que faz parte da pedagogia de Paulo freire, de nos sentarmos em círculo para ler e discutir m determinado tema, o que se tornou uma experiência emblemática para mim. Era uma forma de colocar todos voltados para o assunto, em sintonia com a experiência e a diversidade de pensamento pré-existente, que à medida que ia fluindo ia se confrontando saudavelmente com o novo e construindo o conhecimento. Relaciono essa experiência como o próprio exercício de entrar numa comunidade para conhecê-la, observá-la e ao mesmo tempo se observar e se conhecer, num processo pessoal e ao mesmo tempo coletivo de atuar, vivenciar e interagir. Cultura também é isso, é viver, é colocar e estar presente no dinamismo da busca e da construção, fazendo e sendo parte dela.
Durante a leitura do texto de Vesta Daniel, sobre a definição de comunidade, analisei a nossa própria turma composta de nove alunas e um aluno, vindos de áreas diferentes como comunicação, pedagogia, arte, educação física, unidos ali pelo interesse compartilhado de entender o ethos da disciplina e a hierarquia do conhecimento acadêmico. O texto já alertava para o fato de que o conhecimento anterior estaria todo relacionado ao processo de aprendizagem e poderia interferir no aprendizado.
Da mesma forma, a leitura e discussão do texto de Canclini, sobre tradições cruzadas em conflito, fez refletir sobre a dificuldade do estudante pesquisador em lidar com uma comunidade popular. Nesse processo ele passa a lidar com os paradigmas existentes dentro dele mesmo, e à medida que pesquisa vai passando por estranhamentos da sua própria visão, pela angústia de lidar com a realidade, com o processo de amadurecimento e do conhecimento em si. Esse ponto mostra também a importância da delimitação do tema da pesquisa, porque os estranhamentos e as tentações de novos atalhos vão surgindo, atrasando e colocando em risco o projeto.
Outro ponto importante foi constatar que o processo é mais importante que o produto. A preocupação do pesquisador pode se concentrar no produto, mas é no processo que se vivencia a evolução do pensamento e do entendimento. O desafio é estar dentro e ao mesmo tempo fora dele, tendo consciência e registrando os avanços.
Confesso que preferia ter a cultura afro como tema da pesquisa, por ser mais visível ou mais familiar que os grafiteiros e os ciganos. Por ser carioca, convivi na minha infância com o som de atabaques dentro da noite e com a visão dos despachos expostos nas manhãs de sextas-feiras, quando me dirigia à escola. Outro fato que aguçou minha preferência foi a ida da nossa turma de mestrado à comunidade da Federação de Candomblé e Umbandistas de Goiás, para assistir a palestra do Doutor Jayro Pereira de Jesus. Foi rica a experiência desse contato com o primeiro teólogo negro, que estuda a religião afro e por conhecer as dificuldades e preconceitos que a comunidade enfrenta na convivência com evangélicos, em especial no Rio de Janeiro, por ter sido o campo da sua pesquisa.
Recentemente conversei com um engenheiro goiano que está trabalhando em Luanda, Angola, que relatou ter procurado contatar um terreiro de candomblé naquela cidade, MS não conseguiu encontrar, isso porque as igrejas evangélicas se instalaram lá de tal forma que a religiosidade africana havia sido empurrada para o interior do país. Esse exemplo complementa e revela a dimensão da realidade da homogeneização da cultura, que faz da religião uma ferramenta importante no processo porque vai até o íntimo da pessoa, no cerne da cultura e violenta a noção tradicional o sagrado. A religiosidade e o sentido do sagrado é o último fator de resistência da cultura porque uma vez rompido torna a pessoa totalmente vulnerável e aculturada.
Mas acabamos escolhendo as comunidades de grafiteiros e de ciganos e nos dividimos em dois grupos com o objetivo de entrar numa comunidade, aprender a lidar com ela e ao mesmo tempo dialogar com os textos lidos. O local de pesquisa sobre os grafiteiros foi na loja de roupas Boca de Porco, situada na Avenida T-2, no setor Bueno, que é uma espécie de ponto de encontro das tribos. Yuri, o dono da loja, conversou com o grupo e funcionou como um cruzador de fronteiras, passando informações. O principal território deles é o Setor Pedro Ludovico e as gangues se identificam por letras como SPL. Alguns desenhos nas camisetas expostas na loja eram assinadas por Wees, que além de grafiteiro é comunicador visual. Conseguimos coletar bastante material, com diversas fotos de grafites.
Observei um exemplo de cultura urbana e de forma híbrida de existência nos muros que circundam a revendedora de automóvel Saga, no mesmo setor. Aí coexistem dois universos de organização social que se cruzam, uma multinacional e símbolo da globalização cedendo espaço à comunidade de grafiteiros, num vínculo de dominador versus dominado.
Na narrativa do Yuri se descobriu que ele também era cigano, e esse fato ajudou a descortinar a realidade e explicar a invisibilidade atual dos ciganos. Na discussão posterior à visita, em sala de aula, verificamos que a loja Boca de Porco fica mais ou menos próxima à praça dos Ciganos, na vila Coimbra, onde Há anos atrás era local de constante acampamento cigano, abrigando dezenas de barracas, dando a quem passasse no local a noção da presença e da organização da comunidade que comercializava tachos de cobre. Foi com essa expectativa que procuramos fazer contato com uma comunidade cigana atual.
O acampamento cigano foi detectado numa rodovia próxima à UFG. Era composto de três barracas improvisadas que mais pareciam pertencer ao MST, totalmente desligados de materialidade. Nada de tapetes, nenhuma mulher com saia longa ou lenço na cabeça, nenhum sinal da espectativa que eu tinha de religiosidade ou algum símbolo que identificasse a cultura cigana. A pobreza me chocou, assim como a escassez de pessoas existentes no acampamento, me dando a impressão de que a cultura cigana era inexistente ou bem próxima disso. Mas segundo narraram, existia um elo da cultura que era o dialeto e que era usado à noite nas conversas entre os pais. É vital que eles tenham consciência da importância desses momentos de uso do dialeto e que também repassem aos jovens esse hábito como forma de resistência da cultura. Nos pareceu que no momento o ethos dessa pequena comunidade nera a própria sobrevivência, feita através da venda de panos de prato. Essa realidade constatada se encaixou com o perfil do Yuri, o cigano comerciante. Constatamos que a comunidade cigana em Goiânia havia deixado de ser nômade, trocado as barracas por casas e se mesclado à sociedade. AS crianças podem ir à escola e correm o risco de não aprenderem mais o dialeto, visto que estão se vinculando ao contexto social da cidade e silenciando sua cultura.
Depois do contato com as duas comunidades e do registro através de fotos trabalhamos com uma Tempestade de Idéias onde listamos palavras como cotidiano, provocações, inserção, sagrado, entrecruzamentos, hibridismo. A partir daí optamos por trabalhar num caminho multidimensional, onde cada um poderia desenvolver uma dessas palavras num trabalho individual com imagens, usando o próprio imaginário sobre as culturas que estávamos pesquisando.
Minha preocupação em elaborar esse material se encaminhou para a busca de alguma coisa que representasse o sagrado para os ciganos, ou que pudesse ter permanecido no imaginário da sociedade sobre eles. Reportei-me ao texto da Vesta Daniel que fala sobre as características do ato de comunidade e sobre a influência da herança africana ainda reverberar no Brasil através da espiritualidade sensorial. Inspirei-me no trabalho feito no Kwanza Playground, em Columbus, Ohio, e montei uma sequência de fotos composta de sete pilares feitos com pedras de cristal e uma sequência de cartas de tarô egípcio, que ia sendo gradativamente montado, como uma maneira de expor a tradição através de objetos simbólicos e sagrados para os ciganos, vistos pelo meu a própria visão desses objetos fosse uma forma de fazer reviver a cultura cigana.
Vemos que hibridização também é coisa antiga. O uso do tarô atravessa séculos desde as pitonisas egípcias até hoje, em convivência com diversas culturas.
Nos encontros posteriores para montagem do vídeo constatamos que o nosso grupo exerceu a não linearidade. A criatividade de cada um aflorou nas discussões e o volume do material produzido nos fez avançar por mais três semanas, para fazer a seleção das fotos e a edição. Como o importante é o processo, o conhecimento individual e coletivo foi construído.
O slide de uma instalação, intitulada Auditoria para Questões Delicadas, me vem à memória nesse final de trabalho, que mostra cadeiras instaladas na correnteza de um rio. A interpretação feita pela professora Lêda, de que "todos nós estamos marcados por nossas visões de mundo, por valores incorporados". Essa imagem ecoa e sinaliza a complexidade do campo de pesquisa em comunidade, reafirmando que o nosso estudo permanece como um auditório para questões delicadas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BASTOS, Flávia. Celebrando autorias: arte, comunidade e cotidiano em Arte-Educação. Dossiê Educação e Visualidades. Goiânia: 2006.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp.2003, capítulo: A Encenação do Popular ? pg. 205.
DANIEL, Vesta. Components of the Community Act as Sources of Pedagogy. Dossiê Educação e Visualidades. Trad. Leda Guimarães. Goiânia: 2006.
GRALIK, Thais. Arte-Educação na Pós-Modernidade e Cultura Visual. ANAIS V Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Escola de Música e ]belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006-2007.
SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte: O Pensamento Pragmatista e a Estética Popular. Trad. Giselal Domschke. Editora 34.

Autor: Nelisa Tânia Coe De Oliveira


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