"ESTATUTO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NEGROS"




"ESTATUTO DAS
CRIANÇAS E ADOLESCENTES NEGROS"

No dia 28 de setembro de 1871, a princesa imperial regente Isabel sancionou a Lei nº 2040 que ficou conhecida em todo o Brasil como "Lei do Ventre Livre", por determinar que todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data fossem considerados livres.
Causa-nos, pois, surpresa a comparação entre o contexto daquela lei e o nosso atual Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), sancionado quase 120 anos depois e que, decorridos 19 anos, ainda estamos tentando implantar.
O fato que ressalta numa análise detalhada é que, no Brasil, o hábito de se fazer leis para guardar na gaveta é mais antigo do imaginávamos. Dizia o artigo 1º da lei 2040:
"Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre".
E a lei pretendia, é claro, amparar as crianças negras, conforme se deduz do parágrafo 1º do mesmo artigo:

"Os ditos filhos menores ficarão em poder ou sob autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000 (Seiscentos mil réis) ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei".
A proteção para evitar maus-tratos aos menores foi prevista no parágrafo 6º do mesmo artigo primeiro:
"Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no parágrafo primeiro, se por sentença do juízo criminal reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos".
O Estatuto da Criança e do Adolescente (atual) prevê nos artigos 90 e 91 a criação e funcionamento de entidades governamentais e não-governamentais para o atendimento aos menores; e nos artigos 87 e 88 estão definidas as linhas básicas para a implementação de ações devidamente articuladas e coordenadas. Idêntica abordagem já constava da lei do Ventre Livre:
Artigo 2º:
"O Governo poderá entregar a associações, por ele autorizadas, os filhos dos escravos nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores delas, ou tirados do poder destes em virtude do parágrafo 6º do artigo primeiro".
Parágrafo 1º:
As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas:
1º - A criar e tratar os mesmos menores;
2º - A constituir para cada um deles um pecúlio (poupança), consistente na quota que para este fim for reservada nos respectivos estatutos;
3º - A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação.

A possível falta de entidades para acolher as crianças também não foi ignorada, conforme se vê nos parágrafos a seguir (do artigo 2º):
Parágrafo 2º:
A disposição deste artigo é aplicável às "Casas dos Expostos" e às pessoas a quem os juízes de órfãos encarregarem da educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos criados para tal fim.

Parágrafo 4º:
Fica salvo ao Governo o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos públicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o parágrafo 1º impõe às associações autorizadas.

A ideia da abolição da escravidão no Brasil já ficou claramente exposta no artigo 3º:
"Serão anualmente libertados em cada província do Império tantos escravos quantos corresponderem à quota anualmente disponível do fundo destinado para a emancipação".
Na mesma lei já se previa a extensão dos direitos civis aos escravos:
Artigo 4º:
"É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo pecúlio".
Parágrafo 1º:
Por morte do escravo a metade do seu pecúlio pertencerá ao cônjuge sobrevivente, e a outra metade se transmitirá aos seus herdeiros, na forma da lei civil. Na falta de herdeiros o pecúlio será adjudicado ao fundo de emancipação de que trata o artigo terceiro.

Parágrafo 7º:
Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges e os filhos menores de 12 anos do pai ou da mãe.
A mesma lei, no seu artigo 6º, determinava a liberdade aos escravos pertencentes à Nação e àqueles dados em usufruto à Coroa; também os escravos abandonados por seus senhores receberiam a liberdade e, no caso de inválidos, o dono seria obrigado a alimentá-los, depois de fixados os alimentos pelo juiz de órfãos.
Artigo 8º:
"O Governo mandará proceder à matrícula especial todos os escravos existentes no Império, com declaração de nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecida".
Parágrafo 2º:
Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados não forem dados à matrícula, até um ano depois do encerramento desta, serão por este fato considerados libertos.
Parágrafo 4º:
Serão também matriculados em livro distinto os filhos da mulher escrava, que por esta lei ficam livres. Incorrerão os senhores omissos, por negligência, na multa de 100$000 a 200$000, repetidas tantas vezes quantos forem os indivíduos omitidos, e por fraude nas penas do artigo 179 do Código Criminal.
Parágrafo 5º:
Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o registro do nascimento e óbito dos filhos de escravas, nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os párocos à multa de 100$000 (Cem mil réis).

Se a lei 2040 ? "Estatuto das Crianças e Adolescentes Negros" - tinha, nesta minha modesta interpretação, aspectos altamente positivos, visando amparar as crianças e os pais e a não prejudicar os senhores proprietários; e buscava implementar uma transição gradual e suave para uma sociedade não escravagista, como pudemos, 139 anos depois, chegar a uma situação social tão desastrosa, onde a população afro-descendente praticamente mendiga o pão-de-cada-dia, vivendo em tão precárias condições?
Precisamos urgentemente resgatar os valores morais dilapidados e empreender esforços conjuntos para a correção das graves distorções que só envergonham a nossa grande nação perante o mundo.

João Cândido da Silva Neto
(Escrito em Juvenília-MG)

Autor: João Cândido Da Silva Neto


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