NÃO DESISTA DE MIM, NEM DE VOICÊ.



NÃO DESISTA DE MIM E NEM DE VOCÊ

Acordou todo suado. A fronha do travesseiro estava encharcada. O lençol grudava no corpo. O cheiro do suor era forte. Parecia estar no interior de uma sauna seca ou de ter praticado algum esporte ou esforço físico que o fizesse suar daquela forma.
Era mais um dos seus pesadelos que o vinha acompanhando nos últimos tempos.
E a mensagem que ouvia naquele filme mental alucinado era: NÃO DESISTA DE MIM, NEM DE VOCÊ.
Mas desistir do quê?
Levantou. Uma ducha fria. O relógio importado, todo higth-tec marcava duas e vinte da madrugada. Uma bebida forte, quem sabe o deixaria mais calmo. Resolveu por um chá de cravo, camomila e canela. Não. Isto o deixaria mais excitado. Uma dose dupla de uísque quem sabe resolveria. Resolveu.
Na ampla sala, jogos de sofás confortáveis. Sob o balcão de mogno uma coleção de fotos. Uma chamava a atenção. Sobre uma ponte pênsil que atravessava um rio de águas calmas e profundas. O cabelo esvoaçando, o riso aberto e espontâneo. Havia vida naquele riso, havia felicidade estampada no rosto. Na realidade era um conjunto harmônico, tudo beirava a perfeição. Linda e atraente. Simples e glamourosa.
Os anos não foram fáceis, desde que se conheceram. Lutaram a batalha do dia a dia. Derrotas eram analisadas e serviam de combustível para novas ações a serem enfrentadas. Vitórias então eram mais que analisadas. Eram dissecadas. Discutiam a razão que os levava à conquista de mais um objetivo. Este tipo de análise lhes permitia vivenciar novas formas de atuar. Pareciam possuir um só DNA de tão integrados que eram. Quando um tossia de forma curta o outro já sabia o que fazer. Um simples coçar da orelha esquerda era para não avançar nas negociações. Esfregar o nariz com a mão direita era para cair fora de qualquer tipo de negociação e até do ambiente. Representava perigo imediato, quer fosse nas negociações ou até em situações mais acaloradas em ambiente não muito confiável.
A vida construída a dois. Amor à primeira vista? Capaz! Como dizem os gaúchos. Se houvesse uma forma de registrar pensamentos, estes seriam um tanto divertidos, quando analisados em tempos passados. A primeira impressão. Como é convencida. Se
acha rainha da cocada preta. Já vi cara mais mal educado. Mas como este nunca.
Duas personalidades fortes? Quem sabe? Mas mesmo assim se atraíram e continuaram a se atrair a tal ponto que um dia resolveram levar a vida a dois. Não foram fáceis os primeiros anos. Muito amor, muito sexo, muita luta, dificuldades enormes, obstáculos um maior que o outro. Vitórias, perdas, empates, insatisfações, dores, desânimos eram os ingredientes que faziam o bolo da vida crescer. Aos poucos foram aprendendo que o bolo da vida é feito de vários componentes e que o fermento essencial é o amor.

O pesadelo se repetia quase que todas as noites. Era como um caleidoscópio mental, onde se misturavam fatos ocorridos, lembranças boas e más. Um turbilhão de ações povoava a sua mente. Pensara em consultar um psicólogo ou psicóloga para que pudesse encontrar uma saída para tal situação. Não. Não era muito chegado a tais procedimentos. Oração. Quem sabe resolveria. Também não.
No convulsionado pesadelo sempre ouvia: NÃO DESISTA DE MI E NEM DE VOCÊ.

Olhou novamente para o relógio. O dia já dera o ar da graça. Oito e quinze.
Voltou para o quarto e sem fazer o mínimo barulho para não acordá-la, vestiu-se e saiu.
Antes a beijou de leve no rosto, que ainda estampava a cicatriz, que após várias cirurgias plásticas já se tornavam mais tênues e quase imperceptíveis.

Os funcionários da casa, já haviam providenciado o café da manhã. Há mais de quatro anos, todos os dias fazia a primeira refeição do dia, solitário e com seus pensamentos.
Então depois, levava o café para o quarto.
Sempre com uma rosa. Uma cor para cada dia da semana e no domingo um ramo de rosas coloridas.
E então? Dormiu bem? Quer tomar primeiro o suco ou quer iogurte batido? Está mais linda a cada dia que passa. Bondade sua. São os seus olhos que assim me vê. Não. Não é verdade. A vejo como da mesma forma e maneira como a vi da primeira vez na minha vida. Ah, quer dizer que sou para você, a rainha da cocada preta, né? Nem tanto. Hoje você é a minha cocada, meu amor.
E assim se derretiam entre juras de amor e beijinhos delicados, que muitas vezes terminavam em algo mais quente e prazeroso.

Os tempos passados. O tempo do antes. O tempo do depois.
O do antes fora de certa forma convulsionado pelos desejos de vencerem as barreiras impostas não só pelo meio em que viviam, mas pela inexperiência de mercado, de administração, mas que compensava com as horas de carinho e amor que desfrutavam. Muitas vezes chegavam a perder a noção do tempo, envolvidos em abraços, beijos e carícias. Sem contar o apetite que lhes despertava após horas e horas de entrega total.

O do depois este sim foi o que marcou de forma definitiva a vida do idílico casal.
Haviam constituído um patrimônio sólido. Tracejado a quatro mãos. Planejavam com a orientação de uma médica amiga, a gestação tão esperada. Planos, indagações a respeito de como seria, com quem se pareceria. O nome. Menino? Nome do pai ou uma combinação com os nomes dos avós? E se for menina? Um nome bem forte. Nada destes nomes compostos. Pensou se nascem gêmeos? Nossa que festa.

A vida lhes ensinara que contar com o futuro é coisa muito perigosa. Contavam sempre com o ontem, por uma razão simples. O ontem bem feito representava a certeza do hoje. E o amanhã ainda estava por vir. E assim tocavam seus negócios, sem se descuidar dos seus momentos de entrega total.

O sonho estava prestes a se realizar. A compra de uma fazenda no centro-oeste. Linda, formada, sede estilo californiano, piscina, pomar, atracadouro para barcos, rio largo e manso.
Sonho realizado. Distava não mais que três horas de avião. Pista homologada. Balizada. Uma biruta orientava a posição do vento. E o avião? Qual modelo? Quantos passageiros e os pilotos? E quando não estivermos usando-o? Alugamos para quem precisar. Então vai ser necessário constituir uma empresa de táxi aéreo. Firma constituída. Desta forma o avião não ficaria parado e tão pouco os pilotos.

O resultado dos exames ? teste de gravidez ? positivo.
A alegria não poderia ser maior. Tudo acontecendo conforme o planejado ontem e se realizando hoje. A felicidade até existe.

Chegara à época de Natal. Que tal passarmos as festas natalinas na fazenda? Só nós dois? Não. Nós três. E os pilotos? Voltam para a cidade e quando nós decidirmos voltar é só avisar pelo rádio, ou já combinamos a data de retorno. Que tal? Perfeito.

Plano de vôo devidamente entregue e registrado. Avião abastecido. Água, refrigerantes, lanches, frutas. Malas acomodadas. Check-list? Ok. Avião taxiando para a cabeceira da pista: Papa Tango Romeu Mike Victor, solicitando autorização para decolagem. Decolagem autorizada. Tempo de vôo estimado duas horas e quarenta minutos.

Tudo corria muito bem. Estimava-se que dentro de 20 minutos estariam pousando.
Não pousaram. Uma pane elétrica simplesmente fez com que os dois motores parassem de funcionar. Mensagem de emergência. Não tinha condições de planeio. Os pilotos tentaram re-ligar os motores. Não respondiam. Conseguiram colocá-lo em uma posição de planeio, mas a perda de altitude era violenta. A queda não foi mais violenta, devido à perícia dos pilotos. A experiência com este tipo de aeronave, evitou uma tragédia. Conseguiram pousar em uma área mais ou menos plana, o que não evitou que houvesse feridos em especial os dois pilotos. Um com uma perna quebrada e outro com um profundo corte na cabeça. Ela foi quem mais sofreu. Ficou presa entre as ferragens.
O desespero tomava conta de todos. A noite chegou e com ela o frio e acrescido da incerteza de serem encontrados. A dor o sofrimento, o desespero em relação ao estado de gravidez, faziam daquele acontecimento tomar contornos de que o mundo acabava ali. Gemia, chorava, soluçava. A dor era enorme, não sentia mais os pés. Felizmente não sangrava. O único em condições de buscar socorro era o marido. No kit de primeiros socorros, praticamente o básico. Analgésico e ataduras o que na realidade pouco auxiliava.
Os celulares dos pilotos e do casal, não conseguiam sinal, para se comunicar. O desespero aumentava ainda mais.
Antes de sair em busca de socorro, abraçou a mulher e dela ouviu: NÃO DESISTA DE MIM E NEM DE VOCÊ. Foi o incentivo para buscar com todas as forças ainda existentes, o socorro que tanto precisava. Andou não mais que uma hora, quando encontrou uma dupla de cavaleiros. Desesperado explicou a situação. Encontrava-se em local elevado. Lembrou-se então de usar um dos quatro celulares. O sinal era excelente. Agora as esperanças aumentavam. Os boiadeiros providenciaram o socorro necessário. Um fazendeiro chegou com o socorro primário. Água, alimentos e cobertores. Pelo celular conseguiu informar o local da queda do avião. O barulho dos helicópteros chegando, assustou um pouco os cavalos e até os cavaleiros. A situação grave da mulher exigia ações delicadas e precisas. As pernas não as sentia.
Diagnóstico. Comprimidas três vértebras lombares, Diagnóstico reservado.
A gravidez transcorria dentro do previsto. A fisioterapia que antes se mostrava como um ato de desconforto, agora era esperado com ansiedade. Sabia que os exercícios e práticas de hoje, seriam benéficos no amanhã em função do acidente do ontem.

À medida que o tempo passava, o edema ocorrido diminuía e as esperanças aumentavam. Ainda não conseguia movimentar totalmente as pernas
O dia esperado chegou.
A bolsa rompeu. O inédito para o casal. Susto? Nem tanto, mas preocupação, sim.
Não tem dilatação. Vamos para a cirurgia.
Tudo bem com você?
Tudo. Um beijo sentido e cheio de amor, antes de ser encaminhada para a sala de parto.
Meu amor, agora sou eu quem lhe pede:
NÃO DESISTA DE MIM E NEM DE VOCÊ.
Nasceu de parto cezáreo. Nome? Vitória.
Linda como o amor de quem nunca desistiu de acreditar na vida e no amor.
Te amo meu amor.








Autor: Romão Miranda Vidal


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