Resenha de " O espaço do cidadão" de Milton Santos



A obra de Milton Santos apresenta uma importante contribuição nos estudos da realidade social brasileira, ao analisar os desafios da cidadania diante da organização e produção do espaço brasileiro nos moldes capitalistas.
Logo no início, o autor ressalta que o progresso material alcançado pela sociedade estabeleceu uma racionalidade econômica, sendo essa racionalidade enraizada na cultura moderna e repassada aos países pelo mercado e pelo discurso e ação estatal, responsáveis pela criação e manutenção de uma ideologia do "progresso".
Diante dessa realidade, Santos (1998) faz um questionamento provocador: "Há cidadãos neste país?" Como fica a situação dos direitos políticos e sociais no Brasil, sob um modelo econômico que torna pobres milhões de pessoas em prol de um suposto progresso coletivo, mas que fica na mão de poucos? A economia dita as regras e se torna referência para os países pobres,que entram no jogo em posição subalterna. Tal progresso é legitimado e incorporado como ideologia e modifica o significado de cidadania.
Mais adiante, afirma que a cidadania foi e é um aprendizado social, tendo passado por um processo de construção ao longo da história. Levando em consideração a realidade ocidental, tudo iniciou com a aquisição da qualidade de cidadão, como membro de um Estado-Nação, ocorrido na Europa no século XVII; em seguida, veio no século XIX a conquista de direitos coletivos, como o direito das classes trabalhadoras formarem associação. Em terceiro lugar, vieram os direitos sociais conquistados já no século XX, tendo como exemplo o sistema do Bem-Estar Social. Dessa forma, o significado de cidadão para os sujeitos e para a sociedade não foi produizido de modo abrupto e nem linear, mas foram idas e vindas, lentamente formadas por meio da história, das relações sociais e se dão como conquistas, como etapas a serem vencidas.
Sugere que a cidadania envolve a dialética relação entre o Estado, a economia, as culturas, etc. No Brasil, a cidadania é regulada, outorgada. "Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário" (p. 13). Pela formação social do país, os direitos tornaram-se privilégios e tiveram sua existência atrelada às questões de ordem econômica, em uma realidade de país colonizado com profundas disparidades sociais.
O autor perpassa os diferentes momentos históricos e seus aspectos determinantes na condução das não-cidadanias dos brasileiros. Brutais processos de urbanização, concentrada e excludente, industrialização em moldes semelhantes, políticas ditatoriais, crescimento econômico não acompanhado de distribuição de renda foram processos que geraram, à medida que ocorriam, crônicos problemas de deterioração do potencial cidadão, que passa a estar extremamente associado ao ganho de bens materiais, à luta obstinada pelo ingresso no "milagre" brasileiro, trazendo consigo os valores ligados ao consumo como ideal de inserção no projeto nacional. Criou-se desse modo uma falsa idéia de progresso, onde o consumo é o revelador de quem é ou não um cidadão. A própria mídia, capaz de influenciar nos valores e gostos populares, passa a utilizar-se intencionalmente mais do termo consumidor, substituindo e/ou igualando-o ao termo cidadão!
Com a individualização crescente, decorrente da competição, do egoísmo, do medo da violência, aumenta a insatisfação individual e coletiva. Falsamente prega-se que tais insatisfações podem ser resolvidas com a aquisição de bens materiais e imateriais. A ideologia do consumo predomina na sociedade, passando para a população que todos podem ser prósperos, "vencer na vida", sendo esta a meta perseguida em nome do conforto nos dias atuais. Porém, esse pensamento:

"É uma distorção da realidade, fundada numa ideologia malsã do trabalho ? já que a vida termina por ensinar que a prosperidade material não depende do esforço puro e simples: de outra forma, a prosperidade seria generalizada. O chamado ao consumo busca retardar a tomada de consciência, mergulhando o consumidor numa atmosfera irreal, onde o futuro aparece como miragem." (SANTOS, 1998, p.39).

Para Santos (1998), o consumo consiste em uma espécie de "ópio do povo" tal como falava Marx. O consumidor de bens materiais não é cidadão, quando se deixa levar pelas decisões das empresas, e condiciona seus gostos e valores a determinados padrões de viver, de vestir, de comer, de se relacionar, etc. O consumidor de bens imateriais também não pode ser chamado de cidadão, pois as diversões e a educação não são acessíveis a todos, e ainda ajudam a fortalecer uma visão de mundo muitas vezes acrítica.
Nem tampouco se pode dizer que cidadão é aquele que vota, porque as dimensões da cidadania ultrapassam o momento do voto, momento esse que muitas vezes não passa, para muitos brasileiros, de mais uma obrigação em suas vidas, opinião essa que deriva tanto da falta de informação como da própria descrença no sistema político, diante de injustiças e desigualdades que se arrastam há séculos sem a devida resolução.
O espaço para Santos é um espaço que perpetua desigualdades, parece estar povoado por não-cidadãos, pois o planejamento político cada vez mais atende a interesses do mercado, e menos à população do entorno. Nesse sentido, muitos fixos sao instalados no território por empresas e pelo Estado, mas para quem será o retorno econômico desses investimentos?
As migrações populacionais, que tradicionalmente sempre ocorreram e ocorrem ao longo da história em todas as partes do mundo, no Brasil têm a característica de ser muitas vezes uma migração de consumo. Para que as populações tenham acesso a serviços que deveriam ser direitos básicos, precisam muitas vezes abandonar seus locais de origem sem garantias de que serão "contempladas" com tais direitos.
Apesar dessa espécie de "alienação universal", originada do consumo e do individualismo tornados naturais, há possibilidade de mudança desse paradigma. Para que haja a cidadania na verdade é preciso que o indivíduo seja um "consumidor imperfeito", não se submetendo aos ditames da mercadoria, mas ser ele próprio o sujeito e não o objeto de sua história. O autor fala da possibilidade de mudança por meio do resgate da individualidade, da "quebra" da repetição dos comportamentos perante os objetos, valores ditados pela sociedade de consumo, e busca de uma práxis libertadora diante dos mesmos. Conforme o autor: "Uma grande tarefa deste fim de século é a crítica do consumismo e o reaprendizado da cidadania" (p. 125).
A própria irracionalidade e alienação que o sistema capitalista criado pela sociedade possui é capaz de desenvolver um processo de "desalienação". Para isso, é preciso que o ser humano tome consciência do que ele é e do que pretende vir a ser, e a partir da análise crítica das contradições sociais atuais e da inviabilidade de sua permanência busque ultrapassá-las nas idéias e nas ações.
Dentro da sociedade atual, a maior parte das pessoas sabe que essa realidade do mundo atual é desfavorável e precisa ser mudada, mas as próprias obrigações do dia-a-dia as sufocam de tal modo que não conseguem agir, e com isso deixam de lado seus ideais, por considerarem que os mesmos, por sua complexidade, dispensariam ainda muito mais trabalho e fadiga.
O autor conclui afirmando que torna-se necessário perseguir o modelo cívico, onde os direitos sejam universalizados e não privilégios, e onde mudem os discursos e as ações perante a realidade excludente do consumismo, da inércia política, da educação conservadora. Não se trata de um trabalho simples nem imediato, mas é preciso enxergar adiante e fazer acontecer.
Autor: Amanda Benevides


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