Debates sobre Ações Afirmativas atuais: a academia criou?



A adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil tem travado um embate que envolve questionamentos diversos, como se essa adoção caracterizasse a garantia de um direito ou o estabelecimento de um privilégio mesmo como Medida Provisória.
Aqueles que as percebem como privilégio costumam atribuírem um caráter inconstitucional, portanto significariam um discriminação ao avesso, pois favoreceriam um grupo em detrimento de outro e conseqüentemente estariam em oposição à idéia do mérito individual contribuindo para a inferiorização do grupo supostamente beneficiado, pois este seria visto como incapaz de vencer por si mesmo. Para os que as entendem como um direito, elas estariam de acordo com os preceitos constitucionais, à medida que procuram corrigir uma situação real de discriminação. Não constituiriam uma discriminação porque seu objetivo é justamente atingir uma igualdade de fato e não fictícia. Elas não seriam contrárias à idéia de mérito individual, pois teriam como meta fazer com que este possa efetivamente existir. Seria, nesse caso, a sociedade brasileira a incapaz, e não o indivíduo; seria incapaz de garantir que as pessoas vençam por suas qualidades e esforços ao invés de vencer mediante favores, redes de amizade, cor, etnia, sexo (MOEHLECKE, 2002, p. 210).
Todavia, esse debate não é uma questão nova no cenário brasileiro, pois, como nos apresenta Carneiro (1995), raro eram os intelectuais brasileiros do começo do século XX que tinham consciência do perigo representado pelo apoio às teorias racistas importadas da Europa. As obras de Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Francisco Varnhagem, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna estão repletas de estereótipos e mensagens racistas (CARNEIRO, 1995, p, 26-27). Ainda o autor nos apresenta um quadro resumo do pensamento acadêmico defendido por esses autores e que vigoraram ou vigora ainda no cotidiano brasileiro (CARNEIRO, 1995, p, 26-27).
Intelectuais brasileiros
Idéias racistas

Sílvio Romero: Aponta como mestre Spencer, Darwin e Gobineau. Analisa a formação de uma sub-raça no Brasil, resultante de uma união da raça branca com as demais, que acabariam por desaparecer por um processo de seleção natural. Prevaleceria a raça pura, fortalecida pela imigração européia, compensando a degeneração provocada pelo clima e pelos negros.

Nina Rodrigues: Professor de medicina legal na Bahia, considera os negros e os índios como raças inferiores. Diz que os mestiços, por terem mentalidade infantil, não poderiam receber no código penal o mesmo tratamento que os brancos

Francisco Adolfo de Varnhagem: Afirma que os índios, em função de sua organização física, não poderiam progredir no meio da civilização, estando condenados a viver nas trevas. Se fossem colocados na luz (símbolo da civilização) morreriam ou desapareceriam.

Euclides da Cunha: Autor de Os Sertões (1902), interpreta a historia a partir do determinismo do meio e raça. Subordina a evolução cultural de um povo á evolução étnica, considerando a mestiçagem prejudicial. Os mestiços são vistos como retrógrados, raquíticos e neurastênicos, incapazes de concorrer para o progresso brasileiro. Só poderiam superar seus "defeitos" se fossem segregados, evitando-se novas fusões com o sangue negro. Euclides os diferencia dos sertanejos, homem da caatinga, de raça forte.

Francisco José de Oliveira Viana: Adepto do arianismo, dividia a sociedade em raças superiores e inferiores. Considerava o sangue branco mais puro e dizia que sangue branco mais puro e dizia que o destino dos arianos seria sempre dominar as outras raças. Entendia por isso que a aristocracia era a melhor expressão da superioridade ariana. Para ele, a mestiçagem era causa da decadência da raça pura. Via os mulatos, mamelucos e cafuzos como ralé.

Além desses apontados por Carneiro, podemos citar também outros contemporâneos que tiveram ou tem bastante influência no pensamento, ainda atual, e preconceituoso brasileiro, seja ele visto como "preconceito racial ou social" (ROSEMBERG, 2003, p, 125-146), dentre eles temos Gilberto Freyre e a sua democracia racial, e aqueles da chamada escola de São Paulo analisada por Rosemberg, que assim define:
A chamada "escola de São Paulo" contou, além de Florestan Fernandes, com a participação de figuras importantes (Octavio Ianni, Thales de Azevedo, Charles Wagley, Roger Bastide, Noemi Silveira, Fernando Henrique Cardoso), que desenvolveram, inicialmente, afinidades em torno de um projeto encomendado pela Unesco que visava entender as relações raciais no Brasil. Apoiados em um referencial marxista ou weberiano, tais estudiosos identificaram "preconceito de cor" no Brasil (Skidmore, 1991) convivendo com a experiência de que "o brasileiro tem preconceito de ter preconceitos". Porém, na perspectiva teórica de Fernandes, as desigualdades raciais atuais da sociedade brasileira seriam resquícios do passado escravista, superáveis a partir da integração de negros na sociedade de classes, quando restaria, então, a igual condição de exploração do proletariado branco e negro. (ROSEMBERG, 2003, p 125-146).

E ainda na literatura infanto-juvenil, segundo Munanga em Superando o Racismo na Escola (2005), temos: Monteiro Lobato e as suas Nastácias, Silvino Silveira e sua estereotipia do "primitivo", Ricardo Azevedo e a associação de crianças negras a macacas (os), Drumond Amorim no livro "Xixi na cama", (MUNANGA, 2005, p, 105-114), este livro é visto como um dos casos mais violentos nos livros infanto-juvenis na representação do "preconceito simbólico" caracterizado no martírio do menino negro.
Também há aqueles intelectuais que questionaram essas idéias racistas e defenderam ou defendem uma maior visibilidade do povo negro na história do Brasil, tais como: Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Beatriz Nascimento, Lelia Gonzalez, Milton Santos e outros. Com esses chegamos aos debates em torno da aplicabilidade de ações afirmativas raciais.
Contudo, nas palavras de Petronilha o que nos falta é

Completar esse quadro fazendo a seguinte pergunta: e mesmo as "universidades negras", quantos professores negros absorveram para ensinar os seus alunos negros? A ausência de professores negros faz incidir sobre os alunos negros, pobres e ainda sobreonerados financeiramente, uma tripla discriminação: a injustiça simbólica de carecer de figuras modelares de identificação que os ajudem a construir uma auto-imagem positiva e suficientemente forte para resistir aos embates do meio acadêmico racista em que têm que se mover. (GONÇALVES & SILVÉRIOS, 2003, p, 165-167).

Aqui, cabe nos perguntar também: e as universidades que formam professores de História, os estão capacitando com base na Lei 10.639/03? "e a inclusão de conteúdo programático sobre a história da áfrica e da cultura afro-brasileira" (Art. 1º)?
Conquanto se tenha avançado no debate em torno da temática, verifica-se que os fatos da realidade ainda são grosseiros e merecedores de especial atenção, visto que as desigualdades raciais promovem exclusões irracionais e sob o crivo da omissão coletiva da sociedade. Desta forma, o problema do negro é, primariamente, um problema para os brancos que "determinam" a direção do desenvolvimento e tentam situar o negro na sociedade de forma subalterna. O questionamento, por parte dos negros, nasce do professado e prometido ideal de igual dignidade para todo ser humano, de uma igualdade fundamental entre todos os homens e de certos direitos inalienáveis de liberdade, justiça e de ampla oportunidade.
Vislumbrada tais disposições consideramos que está assegurada constitucionalmente a criação de medidas de ações afirmativas. No entanto, isto não quer significar que toda modalidade de ação afirmativa está garantida. Sabemos ser inconstitucional medidas que afrontam drasticamente o princípio da igualdade. Não fosse assim estaria a se afirmar que a igualdade presente na Constituição Federal de 1988 é diferente conforme a cor do cidadão, no entanto, se há igualdade para todos, todos são todos e não alguns. Assim, o cidadão negro tem todos os direitos constitucionais, tanto quanto o pardo, o branco e todas as demais classificações desnecessárias.
Porém, o tema ainda é uma "ferida mal tratada" para muitos dos nossos representantes eletivos, refiro-me ao senador por Goiás, Demóstenes Torres, em audiência do dia 04 do mês de março do corrente, que decidiria se o sistema de cotas vigoraria no País, na fala do senador

Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a Europa e para a América. Lamentavelmente. Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos. Mas chegaram. (...) Até o princípio do século 20, o escravo era o principal item de exportação da pauta econômica africana." Sobre a miscigenação: "Nós temos uma história tão bonita de miscigenação... [Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual.
O escravo que como tal praticamente não existe para a sociedade (...) é, no dia seguinte a sua alforria, um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos e o mesmo grau de elegância. (ANPR, 04/03/2010).

O Senador usou esse argumento contra as cotas raciais, já adotadas em 68 em instituições de ensino superior em todo o país, estaduais e federais.
Visto que, para Munanga (1996, p,79-111) , historicamente, as políticas públicas brasileiras têm-se caracterizado por adotar uma perspectiva social, com medidas redistributivas ou assistenciais contra a pobreza baseadas em concepções de igualdade, sejam elas formuladas por políticos de esquerda ou direita.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro: A Arte de Ser Mais Igual Que os Outros. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOBBIO, N. Dicionário de política. 5. ed. Brasília: Editora da UnB, 1993, p, 15.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRITO, Antonio José Guimarães. Elementos da Antropologia Jurídico/Thais Luzia Colaço (ORGª.) ? Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p, 49.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Racismo na História do Brasil: mito e realidade. Ed. Ática. 2ª Ed. São Paulo. 1995.
CONCEIÇÃO, Alaíze dos Santos & SOUZA, Jacó dos Santos. Fontes e Perspectivas para o Ensino de História da África e Cultura Afro-brasileira ? Governo de Mangabeira- BA.
MOEHLECKE, Sabrina. Ações Afirmativas: História e Debates no Brasil. Caderno de Pesquisa nº 117. 2002.
MOEHLECKE, Sabrina. Ações Afirmativas no Ensino Superior: Entre a Excelência e a Justiça Racial. Educ. Soc. Campinas. Out. 2004. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br.
MUNANGA, K. O Anti-racismo no Brasil. In: MUNANGA, K. (org.). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo: Edusp, p.79-111, 1996.
MUNANGA, K. Superando o racismo na escola. Brasília, 2005.
PIOVESAN, Flavia. Ações Afirmativas da Perspectivas dos Direitos Humanos. Cadernos de Pesquisa, vol. 35, p 43-55. 2005.
PIOVESAN, Flávia; DOUGLA, Martins de Souza. (Coords.). Ordem jurídica e igualdade étnicoracial. Brasília: Seppir, 2006.



Autor: João Marques Da Silva (Pierre)


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