Vermelho ? A Cor da Chatice



Quando mais jovem, trabalhava como auxiliar de contabilidade num escritório. Tínhamos um cliente que era terrivelmente chato, porém muito bem sucedido enquanto empresário. Essa fama de "lobo mal" partia dos funcionários dele que tinham mais contato comigo, principalmente o office boy. Certa vez ao acaso eu encontrei esse empresário num bar, ele me reconheceu e me convidou a sentar na sua mesa onde ele estava sozinho tomando sua cerveja. Ficamos horas bebendo e batendo papo e aquela imagem de lobo mal se desfez.

Naquele dia ele citou uma frase, que posteriormente soube que seria de autoria de Lair Sanches, "é melhor ficar vermelho uma vez, no momento certo, do que amarelo para o resto da vida". Essa frase ficou guardada em minha memória durante muitos anos, mas dada a minha imaturidade eu não entendi o que ele queria dizer com isso, achei que isso era papo de comunista, só sei que se deu num momento em que ele dizia que não era de deixar assuntos pendentes, que se uma coisa o incomodava, ou ele via que não ia dar certo, não era de ficar remediando, era de tomar atitudes que muitas das vezes traziam desconforto às pessoas que estariam envolvidas na questão.

O tempo passou, eu mudei de emprego, de cidade e perdi o contato com esse empresário. Não me lembro dele como o cara "lobo mal" que comia o fígado de seus funcionários, mas o cara que, embora fosse taxado de chato, era uma pessoa que não "cozinhava" suas opiniões só para não desagradar os outros.

Eu já tinha uma opinião contrária a essa, eu tentava fazer aquele perfil de conciliador, de prestativo e não queria transparecer nenhum tipo de incapacidade de resolver aquilo que me era demandado. Por muitas vezes, mesmo tendo contrariada a minha opinião, ou acreditando que estaria cometendo um erro se persistisse em determinada ação, a dificuldade em dizer "não" era algo muito presente na minha rotina. Ou seja, eu estava trabalhando no amarelo continuamente, até que chegava o momento em que eu ficava vermelho. Ocorre que o vermelho resultante do cozimento contínuo do amarelo é muito mais prejudicial em todos os sentidos, pois é alimentado durante muito tempo por pequenas insatisfações que em tese poderiam ser "relevadas", mas que na realidade enchem um balde que depois só se esvazia chutando-o.

A sensação era muito ruim, pois se eu tivesse ficado vermelho no momento certo, não teria ficado amarelo durante tanto tempo, perdendo noites de sono e prejudicando meu convívio social. Cheguei a ficar doente, desenvolvendo um quadro de depressão e ansiedade generalizada. Aí abro um parêntese, pois minha teimosia era tão grande que não admitia estar doente. Até que não teve jeito, o corpo não agüentou e tive que buscar tratamento médico.

Passado esse período turbulento, passei a avaliar melhor minhas ações e ante as situações em que eu não teria condições de realizar dentro das expectativas dos indivíduos envolvidos no processo, era categórico em dizer não. Passei a observar a dificuldade das pessoas em ouvir um "não" como resposta, e como isso as faziam me olhar como se eu fosse um lobo carnívoro e sanguinário. Passei a ser direto, até mesmo com mendigos que outrora me pediam um trocado e eu para não dar falava que não tinha, passei a responder um único e simples "não". Abro outro parêntese nesse momento, pois nessas horas que você vê quem precisa de ajuda ou não, pois aquele que mendiga por necessidade geralmente lhe agradece ou pede desculpas pelo incomodo, ao passo que aqueles que se fazem de mendigo para fins escusos, lhe praguejam, mandam enfiar o dinheiro naquele lugar, e já fui até ameaçado com pedra.

O preço que se paga pela sinceridade, às vezes é a chatice, pelo menos aos olhos daqueles que não sabem conviver com situações em que suas expectativas são frustradas pela resposta negativa. Outro dia me vi diante duma situação que estava começando a amarelar, e eu precisei tomar uma decisão que me deixou muitíssimo vermelho, e certamente desagradei algumas pessoas que nesse momento devem estar propagando aos quatro ventos minha reputação de "lobo mal". Obviamente que esse estado "inflamatório" ainda está sendo digerido, e agora resolvi sentar num barzinho para tomar um chopp e relaxar, porém, ainda não encontrei nenhum conhecido para sentar comigo a mesa, para que eu possa falar algo etilicamente sem sentido, mas filosoficamente útil. Se eu tivesse comigo agora o telefone daquele empresário eu ia ligar para ele e dizer que "agora entendi", quem sabe ele não teria alguma cor nova para me apresentar.

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