Anaxágoras



Anaxágoras filho de Hegesíbulos discípulo de Anaxímenes nasceu em Clazômena na Jônia (antiga colônia grega na Ásia Menor, Fenícia, hoje Turquia). Quando Xérxes marchou sobre a Grécia em 480 a.C Anaxágoras tinha então 20 anos de idade. Foi um dos primeiros filósofos a se instalar em Atenas. De sua vida Diógenes de Laércio nos conta que foi condenado por impiedade e que morreu aos 72 na cidade em Lâmpsaco. Segundo o mesmo Diógenes, Anaxágoras foi um homem ilustre e nobre não apenas pelo nascimento e riqueza, mas também por seu notável desprendimento pelos bens materiais. Diz-se que espantou seus contemporâneos com afirmações tais como: o Sol é de uma bola de fogo maior que o Peloponeso; a lua é habitada; a via láctea é o reflexo do esplendor dos astros não iluminados pelo sol, os animais evoluíram uns a partir dos outros. Perguntado sobre qual fim havia nascido, respondeu: — Para contemplar o sol, a lua, e o céu; e, exilado de Atenas comentou: — Não estou privado deles, mas eles de mim. Conta-se ainda que Anaxágoras havia predito a queda de um meteoro em Egos-pótamos em 427 a.C. Este fato teria sido a razão de Eurípedes, seu discípulo, denominar o sol uma massa de fogo em sua tragédia Faetón.

Assim com Empédocles de Agrigento, 495/490 - 435/430 aC, Anaxágoras buscou uma solução as inquietantes questões deixadas por Heráclito e Parmênides. Antes desses dois filósofos a mobilidade-multiplicidade não era um problema para a filosofia, assim como os sentidos não eram tão contestados: a mudança era real; mudavam-se os estados, permanecia apenas a unidade da physis (a Natureza). Os filósofos compreendiam a physiscomo um Todo, era apenas preciso buscar o elemento primordial e princípio da mudança (em grego αρχέ). "Tudo é um" (εν παντα), mas tudo muda, se transforma em outro. Este Um, o Um de Tales, fundamento de toda realidade, é também o comum: o elemento que em tudo está contido e em nada pode faltar. Não obstante, é de nota que embora possua uma natureza incrivelmente "plástica", os elementos primordiais dos primeiros filósofos estão ainda muito presos à noção de matéria razão de que os gregos tinham grande dificuldade em conceber o vazio e a ação à distância. O tão buscado elemento deveria possuir algo de material ou semelhante à matéria, mas de natureza muito sutil e leve. Entre os antigos, Anaximandro talvez tenha sido aquele que mais fortemente sentiu a necessidade de ir além dos elementos materiais, daí a sua concepção de princípiocomo apeíron (απειρον), o indeterminado.

Parmênides, natural de Eléia, sul da Itália, tem o acme de sua existência (em grego acme, período em que o homem grego alcança plena maturidade intelectual, mais ou menos quarenta e cinco anos) entre 500 a.C e 497 aC. Fundador da chamada escola eleáticaParmênides lançou as bases do que hoje conhecemos como ontologia e, segundo muitos autores, nesta base também repousa o principio da lógica, das leis que regem o conhecer; em suma, a natureza do pensamento verdadeiro: só o Ser é, somente o Ser pode ser pensado e dito; "não foi engendrado e é também imperecível. Nem, outrora foi, nem será, porque é agora tudo de uma só vez". Aquilo que não-é não pode ser pensado, "o mesmo é Ser e pensar." Heráclito, por sua vez, move um império de aforismos inquietantes e cheios de vitalidade. Em lugar da força lógica dos eleátas, a força do dilaceramento trágico e movimentos constantes. Em Heráclito: os contrários, a guerra, a discórdia, o choque, perecimento e morte dão a cada fragmento uma intensa luminosidade. E onde o fenômeno da vida se fez mais visível, também paradoxal foi sua presença. Obscuros menos pela verdade que denotam do que por nossa incapacidade em auscultá-la, seus fragmentos quebram a ordem comum do discurso. Nossa maneira habitual de conduzir o pensamento é demolida e sob seus escombros emerge uma nova experiência do pensamento onde o falante é o logos (λογος). É a este que devemos voltar os ouvidos; e assim fala o logos que tudo vê: "a essência das coisas ama ocultar-se".

Do que até aqui dissemos de Parmênides e Heráclito podemos factualmente concluir dois métodos, duas falas, duas verdades em campos aparentemente incomunicáveis. Contudo, não é possível colocar Heráclito no lugar reservado ao homem de duas cabeças do poema de Parmênides. Apesar da tradicional oposição em que são colocados Heráclito e Parmênides, sendo este o pensador do imobilismo e aquele o defensor do devir em todas as coisas, uma leitura mais cuidadosa poderá nos levar a conclusões outras que a mera superficialidade nos sugere. Entretanto, também é sabido que não podemos simplificar a questão a ponto de dizermos que ambos estão a falar a mesma coisa, formal ou objetivamente. Prova disso são as incansáveis tentativas de solução para o problema que a partir de então dominará o pensamento dos assim chamados pré-socráticos ou pré-platônicos. Neste contexto encontramos Anaxágoras. A chave para compreendermos seu pensamento é, certamente, guiarmos o nosso sob a luz desta problemática. Qual solução apontada por Anaxágoras? Antes de indicar sua resposta, é preciso nos ambientar um pouco mais com a questão.

A lógica dos argumentos de Parmênides levados à radicalidade conduzia a conclusões absurdas. A unidade-identidade dos eleátas parecia condenar toda multiplicidade à mera aparência. Com isso, o estatuto de realidade para as singularidades ficava seriamente comprometido: o Ser não se divide. Da mesma forma o mobilismo radical de Heráclito, aos olhos dos helenos, caracterizando todo Ser como puro devir, passagem do que ainda não é para aquilo que efetivamente nunca será, esvaziava os seres singulares de toda existência real, não traduzindo absurdo menor que os argumentos de Parmênides. O homem que se banhava no rio era e não era o mesmo homem. Não obstante, só o Ser é, o não-Ser não existe.

Não obstante, para que houvesse movimento e mudança, o que ainda não é devia em algum momento vir à luz da existência. De onde vinha? Do nada? Impossível. Para o filósofo e médico Empédocles, os estados de doença e saúde exigiam relações de diferenças reais. Os gregos tinham a sábia idéia de que saúde e doença se definem por uma relação de equilíbrio e desarmonia. A arte médica consistia no restabelecimento da justa medida eliminando o que havia em excesso e acrescentando que estava em carência. Era necessário, portanto, elementos que agissem sobre outros. Assim, ou a multiplicidade existe realmente ou então nem mesmo o homem existe. Empédocles introduz na filosofia a pluralidade da physis dizendo: não há apenas um elemento primordial, mas quatro raízes: o ar, o fogo, a terra e a água. Estes elementos são atravessados por duas forças contrárias: o Amor e o Ódio, ou seja, aquilo que une e aquilo que separa. Para este filósofo, em acordo com Parmênides, o Ser não tem nem começo nem fim, se mantém numa esfera perfeita e fechada nela mesma. No entanto, contrariando Parmênides diz que o ser é heterogêneo: todo o mundo é originado da mistura das quatro raízes. Não há nascimento nem morte, apenas composição-decomposição, mistura e dissociação dos elementos. Empédocles pretende resolver a crise entre os mobilistase imobilistas com a fragmentação da physis e a adoção de duas forças contrárias. Com o mesmo objetivo, porém reagindo mais fortemente contra os argumentos dos eleátas, Anaxágoras anuncia que a pluralidade é ainda mais radical do que supôs Empédocles: a pluralidade é infinita. "Tudo está em tudo" (παντι παντoς µoιρα ενεστι). Há uma mistura de tudo com tudo, excetuando o nous (nous pode ser traduzido por espírito, inteligência ou simplesmente principio de atividade)que é sem mistura (ver Kirk, 1982: εν παντι παντoς µoιρα ενεστι πλην νoυ, εστιν oισι δε και νoυς ενι).

Para Anaxágoras as raízes de Empédocles não davam conta de elucidar toda a multiplicidade. Além disso, as forças que ele chamou de Amor e Ódio eram, a seu ver, insuficientes explicar o ordenamento do caos (χαoς) primordial em cosmos. Um ponto de partida de Anaxágoras é entender que a idéia básica de que nada provém do nada acarreta em se aceitar que só o semelhante pode dar origem ao semelhante. Tomava então a nutrição como modelo e indagava: como poderia o cabelo nascer do não-cabelo? Para Anaxágoras tão amplamente inteligível quanto à idéia de que o Ser não poderia vir do não-Ser era a afirmação de que nossos alimentos deviam conter as partes de tudo o que em nós aparece. Mas também o cabelo é composto de partes, não de partes de cabelo apenas, mas de tudo o que no mundo existe, afirma o filósofo. Dito isso, poderíamos pensar: chegamos às unidades mínimas da matéria. Mas não é o que pensa Anaxágoras. Dada uma parte, sempre haverá outra maior, sempre uma menor, e assim ao infinito.

Como Anaxágoras entendia a physis a ponto de formular este conceito do Real: um Real infinito? Se a physis é uma mistura e a exigência da semelhança faz com que seja necessário admitir a presença do tudo em tudo, não estaria ele diante de dificuldades ainda maiores das que buscou superar? Certo é não faltou quem tornasse essas dificuldades ainda maiores. Entre os discípulos e defensores de Parmênides, o eleáta Zenão foi certamente o mais bem sucedido em opor obstáculos para se pensar o movimento e a multiplicidade. Zenão nunca atacava diretamente seus opositores, mas usava da astúcia de permitir com que seus contraditores falassem primeiro e em seguida, através de uma argumentação perspicaz e elevado senso lógico, conduzia a todos à via de conclusões absurdas. E foi por utilizar-se deste método que Aristóteles mais tarde veio a considerar Zenão o pai da dialética. Mesmo que não eliminasse de vez o fantasma do movimento e incomodo da multiplicidade, como mostrarei a seguir, suas aporias envolviam os ouvintes com força capaz de perturbar e até paralisar o pensamento diante de paradoxos insolúveis. Zenão sabia como ninguém explorar as dificuldades de se fundamentar uma ontologia do múltiplo. E se em algum momento o Ser se mostrar indócil de ser compreendido como Uno e imóvel, diria Zenão, da alternativa é facilmente demonstrada sua impossibilidade reduzindo-a ao mais manifesto dos absurdos. Para que haja multiplicidade, entendia Zenão, são requeridas unidades que, por assim dizer, componham o múltiplo. Essas partes do todo ou são divisíveis ou são indivisíveis. Se admitirmos que são divisíveis, então cada unidade será composta por sua própria multiplicidade. Logo não serão unidades. Caso sejam indivisíveis, a multiplicidade que se primeiro quis defender acaba por depor contra a alegada indivisibilidade com a estranha conclusão de que serão infinitas suas partes. Deixemos a Zenão sua própria fala:

Se há muitas coisas, força é que elas sejam tantas quantas existem, e nem mais nem menos do que estas. Mas se são tantas quantas existem, terão de ser limitadas.

Se há muitas coisas, são ilimitadas as coisas existentes, pois há sempre outras entre as coisas que existem, e de novo outras no meio delas. Assim as coisas que existem serão ilimitadas (RAVEN, 1982)

Podemos compreender essas passagens do seguinte modo: se partirmos da idéia de que a multiplicidade se compõe por divisíveis, esses divisíveis, para que sejam partes do múltiplo, deverão ser compreendidos ao mesmo tempo como finitos, pois então não seriam unidades, e infinitos, já que são indefinidamente divisíveis. Absurdo! Afirma Zenão. Caso o múltiplo seja composto por indivisíveis, ou seja, por unidades discretas e descontinuas, é de igual modo forçoso admitir que entre uma e outra haja algo que as diferencie. O nada não pode ser, o vazio é não-ser. Esse "algo" sendo "alguma coisa" exigirá para si o mesmo critério de diferenciação. A única forma de fugir ao vazio seria estreitar seu "espaço", reduzindo-o continuadamente. Mas também aqui reincide a divisão ao infinito sem nunca se alcançar de fato uma unidade sequer. Ora, se não são partes do Todo, ou são o Todo ou nada são. Conclui Zenão: a multiplicidade é tão impensável quanto impossível. O Todo é o Um, o Ser, o idêntico a si mesmo, indivisível e imóvel. Infinito em essência e perfeição, não em suas partes. "Este é o âmago inabalável da Verdade bem redonda".

Segundo Raven, Anaxágoras e Zenão provavelmente escreveram na década de 470-460 a.C. Curiosamente escreveram em forma de responder as dificuldades que eram colocados pelo outro. Mas como afirma o mesmo autor, é impossível saber quem escreveu primeiro. É comum se aceitar que Anaxágoras esteja respondendo a Zenão, o importante, no entanto é que de suas idéias eram comunicadas e que ambos conheciam os termos do debate em que estavam inseridos. Diante dos indigestos paradoxos de Zenão Anaxágoras não recua. Toma para si o desafio e proclama a infinidades das da partes: "No que é pequeno não há um ultimo grau de pequenez, mas sempre um menor; pois é impossível que o que é cesse de ser pela divisão". O que Zenão nega é aqui explicitamente afirmado por Anaxágoras: "a divisão não anula o que é". Enquanto que para Zenão a divisão ao infinito parecia marcar um déficit no conceito de Ser, dissolvendo-o no nada; em Anaxágoras passa a fundamentar todo o Real. Com efeito, foi Zenão quem elevou as dificuldades a um nível tal que pôs às claras todos os cambiantes do problema. Mas ao fazê-lo, acabou por tornar possível a saída do labirinto que ele mesmo construiu (MONDOLFO, 1971, pg. 233). Quando Anaxágoras diz que a divisão não cessa o ser das coisas, ele tem em mente uma concepção de infinito cujo fator de negação destacado por Zenão já não exerce efeito algum: o infinito infinitesimal: um número x ≠ 0 em que toda soma com uma quantidade infinita de termos é sempre < que 1, independentemente da quantidade de termos. Tanto no grande quanto no pequeno, o infinito não cessa, está sempre aberto, não se anula: 0,99999... é> 0 e < 1, indefinidamente. Com a aplicação do principio infinitesimal ao seu conceito de infinitude do real, Anaxágoras injeta uma nova potência na compreensão da multiplicidade. Opinião confirmada por Mondolfo (1971): achando o infinito no grande e no pequeno, chega à conclusão de que é igual à multiplicidade de ambos e que tudo esta em tudo. O Infinito ganha positividade em Anaxágoras quando é compreendido como um processo aberto: "tanto para a infinitude do grande como para a infinitude do pequeno, para a infinitude do número, como para a infinitude do prolongar-se da ação motor divino e, por conseguinte, do movimento gerador de formação cósmica". Estamos diante da "dupla infinitude das grandezas". Compreensão que, segundo Mondolfo, abre para o surgimento de uma aritgeometria em conseqüência do inesperado descobrimento das grandezas incomensuráveis que antes já havia provocado uma crise na escola pitagórica. O escândalo dos irracionais decorria da própria aplicação do teorema de Pitágoras. Com efeito, um quadrado de lado 1 dividido em dois triângulos isósceles, teria com resultado hipotenusas igual a V2¯. "Ou então, quando se pressupunha que os valores correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos entre si, acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era afinal nem par nem ímpar". A repercussão da descoberta das grandezas incomensuráveis sobra à filosofia é enorme e possibilita pensar o que antes era inconcebível. Para termos uma noção do que estava em jogo basta lembramos que para os discípulos de Parmênides o mesmo é ser e pensar. Com efeito, o princípio infinitesimal aplicado por Anaxágoras dará a multiplicidade um estatuto ontológico cujo processo de divisão infinito não significará perda de realidade. Ou seja, uma divisão que nunca alcança seu termo, um processo que vai em direção ao nada, mas que se mantém sempre maior que zero. A partir daqui Anaxágoras poderá sustentar a multiplicidade pela infinitude de suas partes e mistura original de onde tudo se originou:

Todas as coisas estavam juntas, ilimitadas em numero e pequenez; pois o pequeno era ilimitado. E enquanto todas as coisas estavam juntas, nenhuma delas podia ser reconhecida devida à sua pequenez. Pois o ar e o éter prevaleciam sobre todas as coisas, ambos ilimitados. Pois, no conjunto de todas as coisas, estas são as maiores, tanto em quantidade como em grandeza (ver BORNHEIM, 2000, p. 93)

Empédocles e Anaxágoras estão de acordo com o fato de não haver nascimento ou morte, mas apenas união e dissociação de partes, e que por isso, em ambos o mundo se revela como uma grande mistura. Uma mistura das quatro raízes, segundo Empédocles; para Anaxágoras, uma mistura de partes infinitas de todas as coisas. Mas que coisas são essas? Não podemos dá aqui uma resposta definitiva para a questão. Podemos, contudo, apontar alguma solução. Seus fragmentos de porções (µoιρα). E assim lemos: Todas as coisas têm uma porção de tudo". Em outra passagem encontramos o termo σρερματα, isto é, sementes: "Porque muito era a terra que havia na mistura, e bem assim uma quantidade infinita de sementes (σρερματα, que em nada se assemelhavam às outras. Com a exigência de que o semelhante só pode vir do semelhante e articulando-a com a teoria da infinitude, conclui-se que a mistura, igual, no pequeno e no grande, compõem-se não só pelas oposições tradicionais de Empédocles, mas de tudo o que está no mundo em "elementos sem conta". Assim, uma gota de café que para nós se reduz a uma quantidade limitada de partículas rigorosamente distintas de açúcar, água e grãos do café, para Anaxágoras nesta simples gota encontraríamos partes infinitesimais de tudo o que o que existe.

Para Raven, por mais "que se possa subdividir a matéria e por mais infinitesimal que seja uma porção dela que se possa, assim conseguir, Anaxágoras responderá sempre que, longe de ser irredutível ela contém ainda um número infinito de porções. Este autor argumenta que os termos porção e sementes não são empregados por Anaxágoras no mesmo sentido. A aplicação deste segundo termo teria se originado numa necessidade intrínseca ao próprio sistema. Anaxágoras recorre ao termo por necessitar de uma "entidade determinada e distinta" que fosse capaz de "fornecer a base para os processos de diferenciação (...) necessários à criação do cosmo ordenado". O termo sementes traduziria a idéia de que na mistura primordial já havia elementos qualitativos (determinados e distintos) donde a coisas se desenvolveriam por meio da ação do nous. Raven nos diz que "à nível microscópio a mistura não era uniforme". Contudo, a suposta determinação ou distinção entre as sementes não pode ser confundida com os elementos atômicos de Leucipo e Demócrito. No atomismo de Demócrito, por exemplo, não há diferenças qualitativas, apenas distinção de forma entre os indivisíveis. Como temos visto, em Anaxágoras não há elementos indivisíveis,não obstante, a multiplicidade deve ser existir. Não sendo a multiplicidade real uma diferenciação entre substancialidades atômicas, Anaxágoras postula a diversidade qualitativa das sementes. "Antes, contudo, de se separarem, quando todas as coisas ainda estavam juntas, nenhuma cor se podia distinguir [...] assim como pelas sementes em quantidade infinita, sem semelhança uma com as outras" (ver BONRHEIM, 2000, p. 94). É neste sentido que o termo semente parece ganhar sentido próprio. Anaxágoras não diz que havia na mistura (παντός μετέχει) primordial infinitas porções, mas diz que antes da ação do nous havia sementes em quantidade infinita.

O que o uso distinto que Anaxágoras deu para os termos sementes e porções pode nos auxiliar na compreensão de sua filosofia da multiplicidade infinita? Todas as coisas têm uma porção de todas as coisas. No início havia uma infinidade de sementes indistintas umas das outras, contudo irredutíveis umas às outras. Estas afirmações parecem indicar que, mesmo dividida ao infinito, toda porção de matéria contém uma infinidade de sementes, ou seja, aqueles elementos qualitativos que constituem a realidade. Entretanto, estes elementos qualitativos somam-se quantitativamente segundo a semelhança pela a ação do nous sobre a παντός μετέχει. "Anaxágoras admitiu um primeiro movimento na origem dos tempos como um ponto germinal" (NIETZCHE, 1995, p. 91). Este imprime movimento à massa indistinta dando origem a toda ordenação cosmo. Mesmo não sendo uma resposta definitiva para a questão, podemos tomar a distinção entre porções e sementes como um critério inicial na leitura dos fragmentos de Anaxágoras. Desta forma, diríamos que as porções se formam a partir das sementes, ou seja, das qualidades constitutivas do mundo. Porções seriam, então, as partes consideradas enquanto singularidades compostas. As sementes significariam as qualidades sempre irredutíveis; mesmo quando nenhuma distinção é possível entre as porções infinitamente divisíveis.

BIBLIOGRAFIA

NIETZCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos.Trad. Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70.

BORNHEIM, Gerd. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 1999, 14a edição.

KIRK G.S./ RAVEN, J.E. (ed.), Os Filósofos Pré-Socráticos, Lisboa, Gulbenkian, 2ª ed., 1982 (ed. Comentada dos fragmentos)

DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas e Doutrina dos Filósofos Ilustres. Tradução: Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UNB, 1988.


Autor: Julio Auto Amorim Jr.


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