A MORTE DO CORPO NEGRO
Gisele Araújo Rodrigues*
A cor de um individuo nunca é simplesmente uma cor, mas um enunciado repleto de conotações e interpretações articuladas socialmente,como um valor de verdade que estabelece marcas de poder definindo lugares,funções e falas.
Martins (1995:34)
A imagem exarcebada que se edificou ao longo do tempo sobre a imagem do corpo negro, sua força, sexualidade aflorada e incontrolável e outros tantos adjetivos trazem consigo uma gama de violências, tendo seu objetivo principal o condicionamento a uma censura de manifestações de liberdade, causando assim uma desumanização do individuo.
Os estereótipos a dita "raça" negra são muito comuns, envolvendo tanto o homem quanto a mulher sendo transmitida através de atos e falas racistas/equivocadas. Fato este comentado por Bastide (1973) "A apologia à força física do negro, por exemplo, subentende muitas vezes a idéia de que ele só serve para trabalhos de força, como a apologia sexual da negra subentende uma opinião pejorativa de sua moralidade".
Nesta perspectiva é possível compreender que a construção de uma censura psicológica e simbólica aqui no Brasil, o conhecido Racismo a la Brasileira, tem seu cerne durante o período de expansão colonial, visto que após 1530 o objetivo maior dos colonizadores que aqui chegaram seria o expansionismo, sendo assim a reprodução de portugueses na Colônia, os chamados luso-brasileiros. Logo o corpo da escrava é colocado como um instrumento de fantasias sexuais além da mão-de-obra em serviços domésticos dentre outras tantas formas de trabalho escravo, sendo assim um meio de ganho financeiro e sexual.
O povo brasileiro tem sua origem através dessas relações sexuais, formando assim uma população em cujas veias correm sangue negro/africano, branco e índio. Entretanto o Brasil se consolidou através os ideais patriarcais, sendo assim mestiço, mas racista e machista, isto é, culturalmente enviesado a aceitação de sua negritude e igualdade entre gêneros.
Mesmo sabendo de toda essa mistura de "raças" a classe dominante tenta implementar técnica que visasse o clareamento da população negra justificada por sua inglória visibilidade à nação brasileira, traduzida como uma terra de selvagens e não aculturados e composta de um apego ao conservadorismo e a intolerância racial, fugindo dos padrões culturais,políticos e sociais da Europa.
Altamente difundida a proposta de eugenia no país, agora republicano, em 1918 em São Paulo funda-se a primeira sociedade eugenista no Brasil, que fundamentaliza a chamada eugenia ,tendo vários representantes. Não se conseguindo um total clareamento cientifico da população, utiliza-se a imigração como meio de se colocar o Brasil em ideais europeus, dominantes por aqui. Assim, a abertura de portas para uma grande massa de imigrantes visou à inversão da população, uma vez que se tinha os negros como grande parcela da população, a fim de se conseguir uma "mescla pelo menos mais esbranquiçada" na nação brasileira. Mesmo tendo uma transformação na visibilidade da cara do povo brasileiro, a presença da cútis negra na sociedade é inquestionável, neste sentido não se consegui um total embraquecimento da população. Neste discurso nacionalista e branco tendem-se formular diversas formas de opressão e morte a essa massa populacional, assim como os estereótipos, racismo e outras tantas formas de uma suposta inferioridade e embranquecimento do negro. Assim Bastide (1973:121) tenta elucidar as diversas formas de uma inferiorização que perpasa até os dias atuais.
? O negro é feio, a mulata é bela porque se aproxima da branca.
? O negro é racialmente um animal sensual e sexual.
? A vista do negro tem desgraça.
? O negro é feiticeiro, mágico perigoso em todos os casos.
? A negra é cheia de manhas e tagarela, ama o prazer, a preguiça, o luxo.
É importante salientar a associação do gênero na formulação de um estereótipo, onde a negra tem desejos totalmente incontroláveis e os utiliza para seduzir o homem branco, este gênero sofre como dois tipos de preconceito: o de raça e o de gênero, sendo os dois presentes em todos os âmbitos de nossa sociedade.
Ao descendermos de uma tradição que centra importância ao corpo como um elemento primordial e único em sua relação com a natureza, o corpo negro, que por diversas vezes sofreu e sofre os males da escravidão, é na verdade templo de entidades religiosas e ligação do homem com o divino. Devido à castração cultural que os negros sofrem, é e colocado como instrumento de trabalho físico e sexual, redução ao mecânico e instintivo, sem dotes de intelecto. Ocorre a transformação de um corpo "divino" em um corpo instrumento de trabalho, fato manifesto pelo esquecimento de toda a simbologia e importância de seu corpo, através de sua anulação e sua importância social conseguindo destruir a valorização de seu corpo.
Hanna Arent tem uma importância no sentido de se entender o processo de edificação do racismo, sendo que a mesma estuda o racismo como uma grande engrenagem de poder, onde a classe dominante exerce grande influência na condução deste, sendo transfigurado em toda a esfera pública. Através do domínio total que acontece em três fases: Mata-se a pessoa jurídica: Não se tem pátria, declare-se apatrio; Morte Moral: Esquecimento de si próprio, uma prisão psicológica, esvaziamento do sentimento humano; Morte Individual: Falta do extinto de sobrevivência, morte individual, morte material.
O racismo trabalha através da morte ao corpo e a alma do negro gerando uma desumanização. A escravidão carregou a perpetuação da maioria de seus pressupostos culturais de interiorização do negro através da discriminação pelo cabelo, vestimenta, coibição de relacionamentos inter-raciais e dos fundamentos religiosos de matriz africana e a imposição de um fenótipo padrão.
Todavia a grande violência que o corpo negro sofreu durante a escravidão e pós-escravidão toma corpo nos dias vigentes como um processo de exclusão e não garantia ao artigo 5°da Constituição Federal que é ambíguo uma vez que coloca o racismo como sendo um crime inafiançável e imprescritível, o mesmo que visa o principio de igualdade que é vetado uma vez que se exclui pela raça e gênero. Logo os negros (a) estão colocados em as margens através do alijamento e exclusão das garantias que o Estado tem por obrigação garantir educação, saúde, moradia, habitação. Sendo assim um negro só se tornará parte significante da grande massa no momento em que consegui uma mobilidade e conseqüentemente a ascensão social, no exemplo do futebol onde o negro é exaltado, mas as jogadoras negras são deixadas aos poucos no esquecimento popular. Ou então se torna "um negro de alma branca", assim acontece na televisão, na moda, no mercado de trabalho e diversos ambientes sociais.
O racismo no Brasil e totalmente mascarado, mas não deixa de ser mortal, como Florestan Fernandes chama de o Preconceito de ter Preconceito.
A violência à mulher negra perpassa a dimensão racial, inclui também a violência física, sexual, psicológica, moral, patrimonial e simbólica. Tais violências ocorrem diariamente, sendo necessárias políticas que coloquem a mulher como ser participativas socialmente, capaz de compor papéis que a ela muitas vezes e negado. Não bastando uma construção de delegacias especiais a mulheres ou leis como Maria da Pena, se aquele que tem o dever de colocar essas ações tem uma mentalidade totalmente machista e racista.
Temos que reavaliar todos os símbolos culturais, conceitos normativos, instituições e organizações sociais, para romper com a divisão de gêneros e raça e implementar políticas públicas que visem a quebra de barreiras e conflitos de gênero, raça, orientação sexual.
Reconhecermos que nossa sociedade esta estruturada em pensamentos machistas e racistas e o primeiro passo para que se possa transformar a mentalidade social, somente assim poderemos garantir que não haja mais iniqüidades como a inferioridade e não necessitarmos mais de mecanismos como ações afirmativas (políticas de combate ao racismo) e dias que homenageiam o negro, para dar visibilidade a este povo que esta presente, mas querem que sejam vistos.As ação afirmativas são necessárias,mas devemos impregnar a mentalidade de toda nossa nação que somos um país pluralista e democrático, somente assim conseguiremos aniquilar esta praga que e o racismo.
Notas
*Graduada em História e Pós-Graduação em Psicopedagogia com ênfase em Educação Especial.
1-Conceito de raça surgiu no século XIX, como meio de se classificar e consequentemente separar os indivíduos. Não sendo totalmente comprovado cientificamente. Ou seja, um conceito formulado pelos cientistas europeus para definir um padrão de diversos povos através da aparência. E consequentemente justificando uma superioridade européia. Só existindo uma raça, a raça humana.
2 -BASTIDE, Roger (1973) "Estereótipos de Negros através da literatura brasileira". IN: Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva.
3- Eugenia, que significa ? bem nascido e é consolidado por Francis Galton em 1883,já o termo eugenia positivista propõe um estimulo a reprodução de brancos, sem nenhuma deficiência física, mental e psicológica.
4- -BASTIDE, Roger "Estereótipos de Negros através da literatura brasileira". IN: Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva (1973).
5- HANNA, Arent. Origens do Totalitarismo. Hanna tem uma grande contribuição para o estudo do racismo uma vez que evidencia um entendimento do poder como resultante do discurso e ações na esfera pública. Neste sentido o racismo pode ser colocado como uma manifestação de poder
6- Tal conceito surge na década de 1970, pelas feministas norte-americana como uma categoria de analise social.
Referências Bibliográficas
? ARENDT, Hannah. "O Totalitarismo", In: Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
? BASTIDE, Roger "Estereótipos de Negros através da literatura brasileira". IN: Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva. 1973.
? CABRAL, M. S. A.. Claros e Escuros. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
? SILVA, Nelson Inocêncio. Consciência negra em cartaz. Brasília: Editora Universidade Brasília, 2001.
Autor: Gisele Araujo Rodrigues
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