Saudosa crônica pluvial



Essa chuva forte me traz muitas recordações dos meus tempos de moleque doentio. Vivia cheio de ferimentos nas pernas por não dar um sossego pra meus pais e pra mim mesmo. Que cheiro de terra molhada. Que gosto de saudade da Bahia. Meu tempo no Nordeste foi curto, mas o suficiente ao meu agrado e ao tempo ao qual dediquei cada pedaço desse país na minha emigrante vida. Sentado nessa banqueta, me desvio de alguns pingos da chuva e na memória me surge àquela ladeira infinita, calçada até a metade, pronta pra guiar algumas vidas perdidas. Nela saíamos em grupo, às vezes com uma bola, outras com a chuva. A água escorria e lavava todo o calçamento, transformava a terra em barro e nos dava algo a mais para brincar. Com esse barro em cor de lama, o grupo viajava na imaginação, sentia o calor no chuvisco ao invés do frio, enfrentava-se na guerra mais saudável que possa existir. Com o corpo sujo e a alma limpa, as pedrinhas incomodavam em meio aos cabelos embaraçados, cantávamos, gritávamos e a vizinhança aplaudia. Um tempo travesso. Enganoso por ter só felicidades e por nos iludir em busca de uma mesma época igual a essa, onde a chuva tinha outro sentido, bem distinto do qual ouço nos noticiários do rádio, uma tempestade culposa, desamparada, brava em forma de enchentes. Os pingos de água misturados aos pingos de lágrimas, sem esperanças e vazias, trazem a realidade de algumas regiões sofredoras por conta da mesma chuva que um dia usei como brinquedo. Quando criança eu não conheci essas inundações, talvez porque um garoto não procura o lado ruim das águas, mas hoje isso é tão freqüente que faz parte de muitas infâncias que vêem a chuvarada como uma vilã. Tempos mudados, juventude passada, velhice a vista, natureza revoltada. Uma realidade nunca imaginada por um moleque típico de ladeiras negras e de mocidade molhada pelas gotas de esperanças não mais esperadas. Olho novamente pra água corrente na beira da calçada e penso "Levantemos a bandeira da culpa pelo desprezo dado a natureza e pelos banhos de chuvas inocentes negados às novas infâncias". Mas chega de reminiscências, pego minha banqueta e entro pra casa. De repente me pergunto: "Será que é tarde demais?". E fico sem respostas, fico apenas com minhas lembranças.
Autor: Lucas Fontes


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