Cordialidade entre clubes cariocas



            Por Laércio Becker, de Curitiba-PR 

São muitos os exemplos de fair-play no futebol – embora cada vez mais restritos a retirar a bola de jogo na contusão do adversário, com devolução da bola. Pode-se dizer que o introdutor do fair-play no jogo brasileiro foi João Evangelista Belfort Duarte. É famoso o caso em que ele cometeu um pênalti, o juiz não viu e ele foi avisá-lo da infração. Não à toa, virou nome de um prêmio que a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) conferia a todo jogador que ficasse 10 anos sem punição na Justiça Desportiva em mais de 200 jogos a partir de 16.01.1946, cf. art. 31 do Código Brasileiro de Futebol de 16.08.1945. O zagueiro Moisés dizia que “beque que se preza não ganha o Belfort Duarte”, mas bons zagueiros como Alcir (Fluminense) e Zózimo (Bangu) também foram premiados.

Também é de Belfort Duarte a autoria da saudação à torcida e ao adversário. Segundo Orlando Cunha e Fernando Valle, a novidade foi inaugurada numa partida entre America e Fluminense, em 13.06.1909. Seria um amistoso? Pergunto isso porque, no livro de Roberto Assaf e Clóvis Martins, os primeiros quadros dos dois times jogaram em outras duas datas: 30.05 (Flu 4x1) e 05.09 (1x1).

Antes disso, em 1906, segundo Carlos Molinari, o America entregou uma corbeille de flores ao Bangu – não seria também uma forma de saudação? O gesto não foi isolado. Mário Filho conta que o Fluminense – ao contrário do Botafogo – não jogava em Bangu sem levar uma corbeille de flores vermelhas e brancas para cortejar a torcida do clube alvirrubro. Resultado: a platéia aplaudia até derrotas para o tricolor mas não aceitava derrotas para o Botafogo.

O fair-play brasileiro seria uma herança inglesa? Pode ter, sim, um DNA metade inglês, mas metade indígena também. É o que vemos em Gilberto Freyre:

“Dos jogos e das danças dos selvagens do Brasil vários tinham evidente intuito pedagógico; sendo de notar a ‘quietação e amizade’ – em outras palavras o ‘fair-play’ – que o padre Cardim tanto admirou nos caboclos brasílicos de 1500. Nada de ‘nome ruim ou pulha’ de um jogador a outro. Nada de ‘chamarem nomes aos pais e mães’. E é possível que para fixar bem o contraste desse proceder com o dos meninos europeus exagere o padre: ‘raramente quando jogam se desconcertam, nem desavenhem por cousa alguma, e raramente dão uns nos outros, nem pelejam’.”

Mas vou deixar mais detalhes sobre Belfort Duarte para meu futuro livro sobre os times de nome América existentes no Brasil. O que eu queria trazer aqui são casos de cordialidade, cavalheirismo, “fidalguia” entre os próprios clubes. Vamos a eles.

America x Fluminense, 1911

Campeonato de segundos quadros de futebol. Jogo marcado entre America e Fluminense mas o tricolor não conseguiu organizar seu time a tempo de disputar a partida. Em vez de insistir no cumprimento da tabela, o delegado americano, Mário Newton, oferece transferir o jogo para quando o Fluminense estivesse com a equipe pronta. A partida ocorre no mês seguinte, quando o America perde e é alcançado pelo tricolor no primeiro lugar. No jogo de desempate, o Fluminense vence a partida e ganha o certame.

Fluminense x Flamengo, 1912

Como é sabido, o Clube de Regatas Flamengo ingressou no futebol em 24.11.1911, quando, em assembléia geral, criou uma seção de esportes terrestres, para acomodar os jogadores que, insatisfeitos com Fluminense, mudaram de clube. O que quase nunca é lembrado é que o ingresso do rubro-negro no campeonato de 1912 teve o apoio do... Fluminense. Segundo Tomás Mazzoni, depois da incorporação dos ex-tricolores, restava a admissão na 1ª divisão da Liga. Foi quando “o próprio Fluminense, sob a iniciativa de seu diretor junto à Liga, Mario Polo, ajudou com simpatia a aceitação do Flamengo para a vaga que a Liga abrira para o campeonato de 1912, pois reconhecia que o ingresso de um novo clube beneficiaria o campeonato carioca”.

America x Villegaignon, 1915

Primeiro campeonato de basquetebol da Liga Metropolitana de Sports Athléticos (a mesma do futebol), primeiro turno. Jogo marcado entre America e Villegaignon mas este não comparece. O America simplesmente recusou os pontos do WO e insistiu numa nova data para a partida. Segundo Alfredo Guilherme Koehler, um dos fundadores do America (em 1904), introdutor do basquete no clube (em 1912) e jogador do time americano, “nenhuma glória resulta de triunfos assim”. Pois bem, nova partida foi marcada. O America perdeu por 32x15 e, com isso, terminou em terceiro lugar, ultrapassado pelo Villegaignon, que ficou com vice-campeonato.

Fluminense x São Cristóvão, 1924

No campeonato de voleibol, Fluminense e São Cristóvão terminam empatados em primeiro lugar. No jogo de desempate, o clube cadete venceu. No entanto, a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amea) resolveu marcar outra partida, só que o Fluminense não concordou, enviando-lhe ofício com o seguinte teor:

“Exmo. Sr. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos. Acuso o recebimento do ofício dessa entidade, nº 884, datado de 16 do corrente, no qual V. Excia. comunica que, não tendo a partida de desempate do campeonato de volleyball, entre os primeiros quadros deste club e o do São Cristóvão Atlético Club obedecido rigorosamente ao que determina o art. 11, cap. III, título III, do Código Esportivo, e havendo o Departamento Técnico comunicado a sua intenção de fazer cumprir esse dispositivo, tomando providências para que novas datas sejam marcadas, a fim de se disputar a partida que decidirá o campeonato de volleyball do ano próximo passado, a diretoria do Fluminense, tomando conhecimento do ofício de V. Excia., resolveu, em sessão ontem realizada, participar a V. Excia. que abre mão da disputa da partida restante de que trata aquele dispositivo do Código Esportivo, porque quando o clube pisou o campo, fê-lo na convicção de que a partida ia ser decisiva e nela se resolveria o campeonato de volleyball pela supremacia do mais forte. E isso aconteceu, o a brilhante conquista do seu digno antagonista – o São Cristóvão Atlético Club. Ora, o ânimo e a convicção do Fluminense F.C. não mudaram e, em tal orientação, é-lhe grato cumprir um dever, oriundo da verdadeira compreensão das pugnas esportivas, qual seja o de continuar a reconhecer naquele grêmio amigo o legítimo vencedor do campeonato. Outra resolução, de certo, não teria o seu companheiro de lutas, caso o desfecho daquela partida lhe tivesse sido desfavorável. Com esta resolução, espera o Fluminense F.C ter dado uma demonstração leal e sincera de confraternidade, de coerência com o espírito com que se apresenta aos encontros e de respeito ao valor dos seus vencedores. Sem mais, sirvo-me da feliz oportunidade para apresentar a V. Excia. os protestos de minha alta estima e distinta consideração. Iberê Bernardes, 1º secretário.”

Ao tomar conhecimento dessa nobre atitude, o São Cristóvão envia ao tricolor um ofício com o seguinte teor:

“Exmo. Sr. Presidente do Fluminense Football Club. Em nome do Sr. Presidente tenho honra de trazer ao conhecimento de V. Excia. que a diretoria deste clube, conhecendo o ofício da Associação Metropolitana que se refere à última partida do campeonato de volleyball em que se enfrentaram a nossa modesta equipe e os valorosos jogadores do clube que tão dignamente é presidido por V. Excia., ficou surpreendido com a resolução do Conselho Técnico daquela Associação, mas desde logo prontificou-se a cumpri-la, não só por um dever de disciplina, como em atenção ao seu leal adversário, sem dúvida um dos que mais se recomendam pelo cavalheirismo e gentileza dos seus elementos. O ofício que V. Excvia. Em nome da diretoria mandou enviar à Associação Metropolitana, desistindo, em termos sinceros que caracterizam a lealdade do verdadeiro esportista de jogar qualquer outra partida que viesse solucionar definitivamente o campeonato de volleyball, veio confirmar o elevado conceito que sempre mui merecidamente foi feito ao Fluminense F.C., modelo das organizações esportivas do país e que tanto orgulho causa aos seus co-irmãos. Interpretando, pois, os sentimentos da diretoria, agradeço as palavras carinhosas por demais excessivas em bondade que dispensou a diretoria do Fluminense ao São Cristóvão, assegurando a V. Excia. que outro também não seria o gesto deste modesto Clube, se visse na mesma situação do glorioso Fluminense F.C. Aproveito a oportunidade para apresentar a V. Excia. os meus protestos de elevada estima e distinta consideração. (a). J.M. Castello Branco, secretário geral.”

Foi o primeiro título do hexacampeonato de vôlei do São Cristóvão. A superioridade do clube cadete era tamanha que a Amea extinguiu a seção de vôlei, que só veio a ressurgir anos depois, em outra liga.

Fluminense x America, 1925

01.11.1925, morre o presidente do America, Raul Reis, num engavetamento de trens. O clube, de luto, suspende todas as suas atividades esportivas. Por isso, decide não comparecer ao jogo contra o Fluminense no returno do campeonato e entregar-lhe os pontos. Mas o tricolor não aceitou o WO e solicitou à Amea que a partida fosse considerada transferida para outra data. No entanto, a Amea indeferiu o pedido e, cumprindo o regulamento, atribuiu os pontos para o Fluminense. O America, em agradecimento à atitude do tricolor das Laranjeiras, envia-lhe um ofício com o seguinte teor:

“Exmo. Sr. Presidente do Fluminense F.C. Ainda sob a dor intensa do rude golpe que acaba de receber, o America F.C. sente que não deve retardar de um minuto sequer os seus agradecimentos ao Fluminense F.C., pela maneira generosa e delicada com que, prontamente aquiescendo aos desejos manifestados pela diretoria do clube, tão cruelmente ferido pela fatalidade, permitiu que ao seu grande e querido morto pudessem ser prestadas as homenagens que lhe eram devidas. Embora o nobre gesto não nos surpreendesse, por conhecermos as brilhantes tradições de cavalheirismo do Fluminense, nem por isso deixou de sensibilizar extremamente o America, constituindo, neste amargurado transe de luto e desconsolo, a primeira e das mais carinhosas notas de confortadora solidariedade. Justo é, pois, que, interpretando o sentimento unânime da diretoria e corpo social do America, rompendo a praxe, eu me apresse em trazer ao Fluminense F.C., na pessoa de V. Excia., as expressões da mais sincera gratidão. (a). Heitor Luz, vice-presidente.”

Fluminense no Torneio Initium, 1927

Em 1927, o Fluminense venceu o Torneio Início. Dias depois, porém, o clube percebeu que havia infringido involuntariamente o regulamento – o que nenhum outro clube sabia. Espontaneamente, enviou o ofício abaixo à Amea, que anulou o certame:

“Exmo. Sr. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos. Apresso-me a fazer a V. Excia. ciente de que, por ocasião da segunda partida disputada pelo Fluminense Football Club no recente Torneio Initium, foram incluídos, por inadvertência, em nosso quadro, dois substitutos, o que contraria a letra do art. 11 do regulamento especial do citado torneio. Pondo V. Excia. ao corrente dessa irregularidade, cumpre-me revelar que o faço com ânimo de facilitar a fiscalização das respectivas súmulas. Reitero a V. Excia. os protestos de minha alta estima e distinta consideração. (a). Benjamin de Oliveira Filho, secretário.”

America x São Cristóvão, 1937

O campeonato de juvenis termina com o São Cristóvão em primeiro lugar. Ocorre que a Liga resolve, de ofício, anular a partida Fluminense 4x3 America. Se o America vencesse, ultrapassaria o São Cristóvão e ganharia o título. O clube rubro, porém, preferiu reconhecer os méritos do adversário e recusou a disputa da nova partida. Foi o bicampeonato carioca juvenil do clube cadete.

Olaria x Vasco, 1947

Essa foi contada por Jair Boaventura, na coluna “Notícias do Olaria”, publicada no Jornal dos Sports de 12.11.1947. É que, três dias antes, o Olaria perdeu para o Vasco por 2x0, na rua Bariri. Na seqüência, simplesmente “enviou ofício ao Clube de Regatas Vasco da Gama felicitando este glorioso co-irmão pela glória alcançada frente aos nossos rapazes”. Não contente com isso, o tradicional clube alvi-anil também enviou um ofício ao Colégio de Árbitros (órgão então responsável pelas arbitragens) “felicitando o Sr. Mário Vianna pela brilhante arbitragem na peleja de domingo”.

Se era comum fazer isso naquela época, não sei. Mas, como bem disse o rubro-negro Edilberto Coutinho, trata-se de “uma bela demonstração de fair-play, esportividade a mais elogiável”.

 

Fontes:

ASSAF, Roberto; MARTINS, Clóvis. Campeonato carioca: 96 anos de história. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1997. p. 44-5.

COELHO NETTO, Paulo. História do Fluminense: 1902-2002. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pluri, 2002. p. 140-5.

COUTINHO, Edilberto. Zelins, Flamengo até morrer. Rio de Janeiro: ed. do autor, 1995. p. 195.

CUNHA, Orlando. Cronologia de uma odisséia. Rio de Janeiro: s/n, 2001. p. 2.

CUNHA, Orlando; VALLE, Fernando. Campos Sales, 118: a história do América. 2ª ed. Rio de Janeiro: Didática e Científica, s/d. p. 52, 76-9, 142-5.

DUARTE, Marcelo (org.). Enciclopédia do futebol brasileiro. São Paulo: Areté, 2001. v. 2, p. 304.

FILHO, Mário (Rodrigues). O negro no futebol brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 43.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 47ª ed. São Paulo: Global, 2003. p. 206-7.

MAZZONI, Tomás. História do futebol no Brasil. São Paulo: Leia, 1950. p. 82.

MOLINARI, Carlos. Nós é que somos banguenses. Brasília: ed. do autor, s/d. p. 23.

PLACAR Tira-Teima, nº 1, nov. 1997, p. 95.

QUADROS, Raymundo. Chuva de glórias: a trajetória do São Cristóvão de Futebol e Regatas. Campinas: Pontes, 2004. p. 103-4, 109.

RODRIGUES, Rodolfo. O livro das datas do futebol. São Paulo: Panda, 2004. p. 121.

VALLE, Fernando. A Tijuca de chuteiras: o America F.C. In: WEYRAUCH, Cléia Schiavo; MOTA, Maria Sarita (orgs.). Tijuca: memória, história & cultura. Rio de Janeiro: Uerj, 1999. p. 129.


Autor: Laércio Becker


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