Resumo e Comentário:- A História da Morte no Ocidente - Mirna Galesco



"Podes comer de todas as árvores do jardim; mas não comas da árvore da ciência do bem e do mal;

porque no dia em que dela comeres, morrerás indubitávelmente."

(Bíblia; Gênesis 2:16)



Introdução

Uma simples observação e a mentalidade primitiva percebeu a presença da morte no mundo. Ao prestar atenção a este evento natural e corriqueiro na existência de todos os seres, abriu-se para a humanidade a percepção de outra dimensão, agora como mortais. Uma percepção de uma realidade irreversível e inerente à vida. Mas o que surgiu primeiro, a percepção da morte ou da vida?

Algumas perguntas como esta deram origem a um estudo mais detalhado de como as sociedades têm lidado com a morte, fenômeno que sempre esteve presente em suas histórias, e que em algum momento, começa a ser observado. Um assunto extenso, que o autor Philpp Ariès trata em seu livro "História da Morte no Ocidente" sob o ponto de vista histórico e sociológico. Ariès faz uma análise das atitudes diante da morte, desde a morte domada, na Idade Média onde as pessoas tinham uma postura religiosa, até a morte interdita ou selvagem, como em nossos dias, onde há a total negação por parte da sociedade. As pesquisas do autor falam sobre o conceito da morte caminhando pelo tempo, ignorando sua passagem e não fazendo distinção entre ricos ou pobres, velhos, jovens ou crianças. Ela vem a qualquer tempo e para todos.

I - A Morte domada:

Na Idade Média, século XII, a relação com a morte se dava de maneira natural, familiar e sem questionamentos. As pessoas estavam em tal sincronia com os ciclos naturais da vida que, pressentiam e sentiam o momento derradeiro que se aproximava, através de sinais físicos específicos, e se preparavam para ele conforme os orientavam as liturgias. Havia toda uma formalidade ritualística para tal momento. Durante muitos séculos, essa percepção da morte perdurou entre as civilizações cristãs do Ocidente.

O ritual consistia em gestos herdados dos costumes ancestrais, o que dava àquele tempo uma maior consistência e uma percepção quase estática da realidade. O moribundo no leito, rodeado por seus parentes e amigos, cumpria assim as formalidades: o lamento da vida, o pedido de perdão aos companheiros, a prece declarando a própria culpa a Deus e recomendando sua alma aos céus, recebia a absolvição ministrada pelos sacerdotes, rezava a última prece e a aguardava pela morte em silêncio. E assim, numa cerimônia pública com todos os presentes, inclusive as crianças, aguardava-se a morte, de forma simples e sem caráter dramático.

Os enterros se davam fora das cidades, e a crença geral era de que os mortos dormiam aguardando o Juízo Final, porém separados em outro espaço. Não havia uma preocupação com o corpo, pagãos e cristãos eram enterrados juntos. O culto aos mártires de origem africana inspirou o culto aos santos e suas igrejas. Cemitério e templo passam então a significar a mesma coisa, mas isto não se restringia só à construção e sim a todo espaço em volta, atenuando assim as repulsas, pois o túmulo do santo seria o centro de um templo.

"A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais." Epicuro

II - A Morte de si mesmo

Com a percepção da separação de si mesmo e do outro causada pela morte (século XIII), as desconfianças se tornam preocupações individuais e levam estes indivíduos da Idade Média a uma tentativa de racionalização e de ordenação das coisas de seu mundo. Passam então a deixar suas ordens escritas e gravadas para que não sejam esquecidas.

Os homens numa tentativa imperceptível (para eles) de eternização, imortalizam também os santos de sua devoção, apegando-se à crença que depois da morte eles passam a viver na dimensão divina, ao lado de Deus, interagindo com os humanos. Nada muito diferente dos antigos cultos pagãos e suas divindades, porém os santos tinham seu lugar especifico, num templo, num altar. E então, pagãos e cristãos começam a ser separados após a morte, pois agora aquele que pertence à Igreja passa a ser enterrado no mesmo espaço que o santo, participando assim, numa fusão quase biológica, de sua santidade. Aqueles que pertenciam à Igreja eram aqueles que freqüentavam o templo, cumpriam os dogmas e sacramentos, contribuíam com as obras e podiam pagar por seus enterros. Seus ossos, depois de um tempo, iam para um ossuário ou viravam objetos de adorno, continuando ainda dentro dos limites do espaço sagrado. Os pagãos e os pobres continuavam a ser enterrados em outro lugar.

A convivência entre a Morte e os vivos chega a tal ponto que o espaço denominado cemitério, que se referia à parte externa da igreja, passa a ser ponto de concentração de comerciantes, artistas, jogadores que se reuniam para negociar e se divertir. Em 1231, o concílio de Rowen proíbe as manifestações culturais nos limites do templo. Em 1657, surge um texto referindo-se ao constrangimento quanto à coexistência de sepulturas e leviandades, e no final do século XVII os sinais da intolerância se tornaram mais evidentes.

No inicio dos séculos XV e XVI, as maneiras de bem morrer estão associadas a uma biografia individual, a tomada da consciência de si mesmo. Acredita-se poder viver da maneira como se quiser, desde que se morra corretamente. A representação do Juízo se dá no quarto do moribundo, seguida de duas interpretações: a grande reunião da Luz e das Trevas se dá na cabeceira do leito, numa luta cósmica pela posse da alma, à qual quem vai morrer apenas assiste, sem participar; e na segunda interpretação, o enfermo é submetido a uma última prova, que se bem sucedida, garantia a salvação do individuo. Na segunda metade do século XVIII, as cláusulas piedosas desaparecem dos testamentos e estes são reduzidos ao que conhecemos hoje. A morte só diz respeito a si mesmo, e cabe a cada um, através de seus feitos, preservar sua memória após a morte. Com a laicização do testamento inicia-se a dessacralização do tempo. Separa-se o prático do sensível.

III ? A Morte do outro

O culto as sepulturas e cemitérios se tornam mais intenso a partir dos séculos XIX e XX. Surge uma associação entre o sexo e a morte. O sexo que era um tabu até então, mas surge agora nas poesias, que fazem uma alusão ao êxtase da morte e o êxtase sexual, sugerindo que a morte se apossa do ser e o toca, transportando a consciência para outra dimensão. A indiferença de antes dá lugar agora a uma romantização da morte, e sua beleza numa intensa demonstração de sentimentos e gestos desconhecidos no passado, relações familiares fundadas no afeto. Um inconformismo com a súbita separação, provocado pelo desespero da perda, leva a uma nova reflexão, onde a família lamenta a perda, cumprindo alguns ritos durante certo tempo, fixado pela liturgia. No final do século XVIII, a dificuldade em aceitar a morte do outro chega a seu ápice, tocando os limites da loucura, até o vestuário indicava o luto, um luto com ostentação e grandes demonstrações de dor, num profundo movimento de sensibilidade. Os mortos não estão mais abandonados nas igrejas, possuindo para si um espaço onde passa a ter um endereço, em momento oportuno, pois as igrejas estavam a cada dia mais intolerantes com o acúmulo de cadáveres, sendo acusadas de cuidar da alma e ignorar o corpo.

Do século XIX até 1914, diante de uma grande revolução dos costumes, nasce o culto ao herói nacional, e são construídos monumentos dedicados a esses heróis ou a fatos específicos e esses cultos passam, dessa forma, a se enraizar na sociedade. As sepulturas tornam-se então, monumentos vazios, porém, memoráveis, e através deles se comemoram as vitórias e se tornam expressões de patriotismo. Os túmulos dessa época apelavam para o tom sóbrio da morte, através de representações que invocavam dor, revolta e saudade, e ali era o lugar para expressar os sentimentos. A arte funerária promoveu (ou demonstrou?) o surgimento de uma nova vertente comportamental. Essa arte não se limitou só a igrejas e monumentos. Foi inserida também na arte, na música e na poesia, como uma maneira de se lamentar a perda, imortalizar o ser amado e trazer algum consolo aos sobreviventes, ao falar da esperança do reencontro. E posteriormente esses monumentos vão se tornar os documentos históricos, assim como os escritos de poetas e autores diversos, que passam a dispensar uma atenção maior ao tema, talvez numa busca em amenizar o vazio, preenchendo com arte e sentimento. O vazio está sempre lá, mas pode ser camuflado de lembranças.

Morte Interdita ? Conclusão

Dentro da disciplina "História da Europa Moderna", estudos do comportamento dos homens nos ajudam a pensar as mudanças que a sociedade sofreu com o passar do tempo. Demonstra-nos as especificidades da Europa, durante a Idade Média e desenha à nossa frente os rumos que nos permite identificar as rupturas ocorridas e que colaboraram para as transformações do mundo até chegar ao que conhecemos hoje.

Numa concepção de tempo pendular, as atitudes diante da morte se modificaram lentamente, ora inovando ora voltando às origens primitivas, assim como as posturas em relação à religiosidade e espiritualidade. As variações dessas expressões podem ser vistas desde os grandes monumentos até a simplicidade das sepulturas em algumas regiões. A morte, como força da natureza está presente em todos os tempos, e as diferenças de relações com esse fato eminente podem ser observadas a partir da cultura de cada povo. Os ocidentais tratam hoje a morte como tabu, não mais o sexo. A melancolia trazida pela presença da morte faz com que o homem a veja como um mal, tentando não pensar nela e no quanto ela é inerente a vida. Torna-se um assunto a ser evitado, quase obsceno. Ao lidar com a morte, os indígenas, por exemplo, tem pontos de vistas muito diversos dos nossos, assim como os asiáticos. Isto se deve às suas posturas espirituais e culturais, que faz com que vejam a morte como transformação necessária, para que o mundo e a vida possam continuar a existir. A partir do XVIII, a Igreja proíbe os enterros em suas dependências e mesmo dentro das cidades, mas em outras regiões os costumes permanecem. A simplicidade ocidental adotada nas construções de sepulturas não significava desamor de forma alguma, implicava antes na expressão cultural de um povo. Nos dias de hoje, percebemos um repudio da sociedade em relação à Morte, os hospitais se encarregam dos doentes e, consequentemente, dos mortos. A morte interdita ou selvagem surge numa sociedade dessacralizada, onde os seres humanos dirigem sua fé para a ciência, como meio de driblar a morte e suas esperanças; guarda-se o DNA das pessoas, à espera da cura de algumas doenças que escapam às técnicas de hoje, e acalenta-se o desejo de ser clonado e continuar a vida de onde foi interrompida. Tanto hoje como na Antiguidade, vemos mais que o medo da morte, muito mais um amor a vida, e o desejo de nos pensarmos como seres eternos. Atualmente, o assunto continua em evidência nos filmes, poesia, música, tratando de temas atuais no cotidiano das pessoas, com histórias de amor além da vida, e mesmo nos épicos, que falam da glória de morrer em campos de batalhas e assim reviver para reencontrar os companheiros no Valhala, paraíso espiritual onde vivem os guerreiros que tombam em batalhas e recebem as glórias depois da morte. Magníficas suposições!

Vastos são os labirintos da mente humana, capazes de abrigar as mais diferentes formas de pensamentos e acenar para a humanidade com possibilidades infinitas, diante de um tema que ao ser evitado não se torna desencantado, muito pelo contrário. Leva todos os seres a refletirem e buscarem os sentidos particulares que suas existências e a morte têm para cada um. Trata-se do destino certo, tal qual a luta pela vida. Torna-se a pergunta sem resposta que a arte e a esperança humana vão tentar trazer em suas mais profundas expressões. Pois é onde a Morte se torna bela, na Arte.




"Combater e morrer, é pela morte derrotar a morte,

mas temer e morrer é fazer-lhe homenagem com um sopro servil."

William Shakespeare


Autor: Mirna Galesco Dias


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