Introdução à Arqueologia: a cultura material na reconstrução das sociedades humanas




Há algumas décadas, possivelmente, a Arqueologia se comprazeria relativamente bem com o papel subsidiário que lhe fora concedido em sua íntima comunhão com a História, especialmente em se tratando da História Clássica, no fornecer verdadeiros adornos e ilustrações para um discurso tão abstrato e distante de nós. Já não é concebível limitar o campo de atuação da Arqueologia a superficiais análises histórico-artísticas ou antiquárias de objetos "antigos", legítimos paradigmas do valor intrínseco da cultura greco-romana para a identidade ocidental europeia.

Com o despertar da chamada "New Archaeology", com efeito, é que começam a despontar reações à "história falsificada" produzidas por gerações anteriores de arqueólogos e antropólogos, no sentido de definir a arqueologia "como uma disciplina em si, preocupada com os dados arqueológicos, que reúne em entidades arqueológicas que adotam certos processos arqueológicos e que são estudados em termos de objetivos, conceitos e métodos arqueológicos" (FINLEY, História Antiga, 1994, p. 26). Graças aos avanços desde então observados e ao interesse pela metodologia arqueológica estimulado, tornou-se possível fornecer uma definição mais satisfatória à Arqueologia, já definida como disciplina em si e alargada no que concerne aos campos de aplicação e técnicas metodológicas específicas. De modo simplificado, pode-se entender o objetivo geral da Arqueologia como "reconstrução das culturas e das sociedades do passado com base na análise direta dos contextos ambientais e na cultura material" (BIETTI SESTIERI, Protostoria. Teoria e pratica (1996: 43-93), p. 1).

A partir de tal definição, não de todo satisfatória, é possível então iluminar um aspecto central do que hoje consideramos Arqueologia: isto é, não como disciplina auxiliar da História, mas como campo científico autônomo e potencialmente estimulador do estudo de sistemas sócio-históricos e culturais, que se ocupa de um tipo de documentação específico e distinto daquele dos historiadores, capaz de fornecer não apenas elementos adicionais à pesquisa histórica, mas um universo de informações completo e diverso. Essa definição também é bastante ampla para ilustrar o fato de que o objeto da pesquisa arqueológica não é apenas o artefato, a tão valorizada cultura material de sociedades passadas, e também os restos biológicos humanos, animais e vegetais de um contexto, mas deve estender-se a todos os elementos do ambiente natural e antrópico do mesmo contexto cultural.

De fato, compreendemos que se a cultura material se exprime em e por objetos, a Arqueologia tem a ver com ela. Contanto, é claro, que o termo seja entendido de forma bastante ampla: deve-se afastar do objeto isolado ou das construções arbitrárias, englobando também (e principalmente) o contexto sincrônico e específico de que fazem parte os materiais recolhidos. A Arqueologia desvenda vestígios relacionados a outros elementos, associações de fatos, os mesmos que a cultura material estrutura: todo objeto é um depositório precioso e eloquente de relações entre os homens, assim como todos os materiais são produtos e vetores da ação humana, pois através da cultura material é do homem que trata a Arqueologia. Esta se utiliza de uma documentação material que, como suporte físico de informação, tem uma natureza intrinsecamente relacional. É ela que faz reavivar o morto, o imóvel, o objeto material silenciado pelo esquecimento e pelo tempo, retirando-o da escuridão sob a qual jazia - a do "locus" para o qual foi desterrado, dos sítios arqueológicos, dos museus e antiquários - para fazê-lo retornar ao berço originário da civilização que o produziu, e da qual é resultado direto. "As coisas e os homens", em outras palavras, também poderia ser o programa da Arqueologia.

Os vestígios materiais contêm informações "virtuais" que só emergem a partir da formulação do arqueólogo. Tais informações não tem sentido algum considerando-se apenas os objetos isoladamente, mas somente inserindo-os no contexto específico do qual são resultado direto. Aquilo que faz parte da documentação arqueológica, naturalmente, é o que já não faz parte do ciclo de uma cultura, enquanto coisa viva: "lixo-coisa, lixo-gente". Partindo-se do lixo, dos rejeitos humanos, cabe ao arqueólogo traçar o caminho inverso ao ciclo vital do objeto, fazendo-o novamente participar de seu papel como coisa viva; isto é, introduzindo o conceito de "desdocumentalização" do documento, faremo-lo remontar diretamente ao sistema cultural que lhe dá sentido, ao que se torna essencial "procurar diminuir a distância que existe entre o registro, o contexto de conservação, de informação, de um lado e, de outro, a vida cultural e o ciclo cultural" (MENESES, O objeto material como documento, s/d, p. 5). Somente assim compreenderemos que as dimensões simbólicas, ideológicas e, inclusive, funcionais, de um objeto arqueológico, são o resultado direto não de qualquer norma abstrata e universal, mas do comportamento dos agentes que viviam no interior de um grupo, no seio de um contexto.

Com isso, o que pretendemos ilustrar é o fato de que o arqueólogo não se pode contentar como uma análise taxonômica e superficial da cultura material com que trabalha (quando muito a tratando de forma diacrônica), e da qual se serve com maior intimidade, mas deve necessariamente transcendê-la: um vaso não é apenas uma técnica e uma função utilitária, mas corresponde a uma série de significações sociais que não são apenas de ordem infra-estrutural. O que a Arqueologia busca é o homem, conjuntos de relações sociais e sistemas culturais, e por tal definição deve comportar uma metodologia de pesquisa abrangente; como sugere Bietti Sestieri, pode-se dividi-la em três áreas principais: a) o levantamento das pesquisas precedentes; b) o trabalho de campo em todas as possíveis articulações, local e regional, atentando-se para o estudo da paisagem e da sua evolução e da inter-relação entre o homem e o seu ambiente (delimitando áreas culturais das quais os sítios individuais fazem parte, do ponto de vista da geomorfologia, da paisagem antiga, dos recursos, da distribuição e hierarquia das ocupações, das vias de comunicação); c) o trabalho de classificação e análise das diversas categorias de dados (SESTIERI, idem, p. 6-13).

Tal consideração da Arqueologia permite-nos, enfim, novamente aproximá-la da História, já sem uma hierarquização desnecessária: é a busca do homem que cimenta suas relações e garante uma salutar comunhão de interesses entre as duas ciências, entrelaçadas por meio de um saber inferencial que é similar a ambas: seja ele de natureza escrita ou material (ou ambos). Considerando-se que a cultura humana pode expressar-se independentemente na forma escrita ou material, inexistindo qualquer prova de valores que permita subordinar uma a outra, negligenciar o potencial individualizado dos diferentes tipos de vestígios é também afastar-se do conhecimento do homem e seu universo cultural de forma ampla, ou, pelo menos, da restrita parte que eles nos dão a conhecer, admitindo a multiplicidade de dimensões interpretativas que os rodeiam.


















Autor: Rodrigo Marzano Munari


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