Abel E O Relógio



Atravessou a rua a passos obstinados, numa cadência veloz; o pensamento esbranquiçava estático na pontualidade do trem, os pés deslizavam pela cerâmica encerada da estação... De repente, o pensamento ribombeia!, ruboriza-se dinâmico, os pés já não deslizam: Dentro de um Susto, abriu-se o habitual olhar de tristeza junto com uma expressão boba, quase infantil ou canina. A garota sequer percebeu o calor dos olhos que a esmagava inteira.

Era uma vendedora de coisas. Não sabia que coisas eram, galhos de árvores envernizados sustentando casinhas de palha, muito bonitos, não sabia o que eram, só começou a passar seus olhos nelas pra não intimidar a moça com aquele olhar estupidificado, mas continuava a acarinhá-la com a visão periférica, sim, ela agora o notara. E ele comprimia as pálpebras como que avaliando aqueles artefatos, e começou-lhe a fugir o pensamento, a beleza das coisas pareceu saltar em seu corpo, os galhos provocavam sensações quase apofáticas, déjà vu... a garota passou perto, sua roupa roçou em seu cotovelo, um calafrio, ele estava com aquela pose costumeira, uma mão na cintura e a outra com as pontas dos dedos esfregando a testa, fazia esse gesto distraidamente quando devaneava. A roupa roçou em seu cotovelo, estava perto, o perfume frágil, o corpo ondulante e moreno... Novamente a expressão canina-pueril de tristeza pincelou-lhe o rosto, dessa vez mais densa. Tudo nela era fonte borbulhando melancolia azul, era como os desenhos inteiramente inumanos dos livros infantis, os desenhos de princesas e fadas, de formas impossíveis, que caso existissem, seriam aberrações grotescas, mas, ali, no papel, eram doces, azuis, exalando uma saudade não se sabe de que. Mas essa tristeza que lhe possuía, era o cúmulo da beatitude, era o gozo que sempre esperava que a vida desse, e pelo qual era eternamente grato. Era como se o corpo reconhecesse, e num reflexo veloz, desabrochasse inteiro ao achar um instante fabuloso, esse despertamento aflorado do corpo era exatamente essa tristeza. O pensamento ribombava dinâmico e rubro, era a extrema-unção dessa tristeza que o ressuscitava assim.

E o Relógio da estação relampejava. Redondo, com seus braços viciados em movimentos idênticos, a simples presença do Relógio caiu como uma mosca no leite, envenenando o instante, cortando as pétalas abertas de seu corpo, (mal-me-quer, bem-me-quer) uma por uma, as pétalas que se abriam pra acolher o instante único; e depois que veio o movimento de seus arpões, suas setas apontando o início do império de alguma outra vontade, o Relógio é o carrasco do corpo. O Relógio é o mestre do Corpo. O Relógio é o filho no ventre do corpo. E o filho pulsava, pulsava, pulsava. Hora de arruinar tudo que te torna a ti mesmo, de decretar o fim, e assim, pôr algum cabresto em tua imprevisibilidade. Os arpões e setas perfuram o corpo e o arrastam... arrastam por uma linha metrificada, cheia de cortes, paradas, repousos, e partidas.. O Desperta-dor despertava uma vontade maior, mais para fora, mais para dentro, mais alheia, a lei do Deus-de-Platão, a vontade de assumir orgulhosamente seus compromissos. Despertava toda as engrenagens já entranhadas em seu ventre.

Olhou pra trás com seus olhos míopes, viu apenas manchas, e... Ora, também ela não era tão bonita assim! E o Relógio mata mais uma vez Abel. O Relógio, o assassino de todas as suas vaidades e amores, sempre estará lá, com seu olho lacrimando vernizes tóxicos sobre um galho seco, Abel.


Autor: Al Duarte


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