MULHERES QUE CURAM: UM ESTUDO SOBRE MULHER, NATUREZA E PAJELANÇA EM SOURE (ILHA DE MARAJÓ/PA)



MULHERES QUE CURAM: UM ESTUDO SOBRE MULHER, NATUREZA E PAJELANÇA EM SOURE (ILHA DE MARAJÓ/PA)

Mayra Cristina Silva Faro*




RESUMO

Este trabalho pretende apresentar uma pesquisa realizada entre períodos de 2009 e 2010 sobre a pajelança cabocla e as mulheres pajés na cidade de Soure, Ilha de Marajó/PA, que culminou no trabalho de conclusão de curso em Ciências da Religião pela UEPA, defendido em dezembro de 2010, sob a orientação da Profª Dr. Maria Betânia Albuquerque. A pajelança cabocla é definida, segundo Maués (1990), como um conjunto de crenças e práticas xamanísticas presente em praticamente todo o território amazônico, em que interagem em graus variáveis elementos da religiosidade indígena, afro-brasileira e católica. Muitos estudos sobre o tema, sobretudo da área da Antropologia, observam que a pajelança ou o xamanismo praticado em algumas localidades da Amazônia é um campo permitido somente aos indivíduos do sexo masculino (MOTTA-MAUÉS, 1993; CAVALCANTE; 2008). Entretanto, foi possível observar no município de Soure que não há uma restrição da mulher em exercer a pajelança ou práticas de cura. Nesta comunicação, será abordado sobre as principais características da pajelança cabocla e sobre as práticas e crenças de três mulheres que curam em Soure, sendo duas pajés e uma curandeira.



Palavras-chave: Mulher; Pajelança; Soure.



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* Graduada em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).




1. INTRODUÇÂO

Esta pesquisa teve início no ano de 2008, quando tive a oportunidade de participar do grupo de pesquisa "Cultura e Sociabilidade na Amazônia" (atualmente não mais ativo) e onde pude estudar e conhecer aspectos diversos da cultura amazônica, sobretudo, a religiosidade, e se desenvolveu durante os anos de 2009 e 2010.
Meu interesse de estudo surgiu, particularmente, sobre a pajelança cabocla, e a partir das leituras realizadas sobre esse tema, percebi que haviam dois aspectos pouco discutidos pelos estudiosos. O primeiro é quanto a localidade, a maioria dos estudos se refere à região do salgado e bragantina, sendo poucos os trabalhos cujo locus da pesquisa seja na região marajoara. O segundo aspecto refere-se à questão da mulher na pajelança, pois em vários estudos, como em Galvão (1955), Maués (1990) e Motta-Maués (1993), por exemplo, a pajelança é considerada um campo exclusivamente masculino. Até mesmo em comunidades indígenas a maioria dos pajés são homens. Portanto, esses aspectos me instigaram a estudar com mais detalhe as práticas e crenças da pajelança, especificamente no município de Soure, na Ilha de Marajó, e sobre a questão da mulher como pajé.
Metodologicamente, esta é uma pesquisa de campo e bibliográfica, com abordagem qualitativa, e a coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas narrativas, com perguntas semi-abertas. O trabalho de campo na cidade de Soure ocorreu em quatro momentos e em períodos curtos: o primeiro aconteceu entre os dias 21 e 24 de fevereiro de 2009, o segundo aconteceu entre 30 de outubro e 02 de novembro de 2009, o terceiro, de 21 a 24 de abril de 2010, e o último de 26 a 31 de julho de 2010.
Teoricamente, esse estudo se baseou em diversos autores, principalmente Galvão (1955), Maués (1990; 1999; 2005), Salles (1988; 2004), Motta-Maués (1993), Cavalcante (2008), Villacorta (2000), Montal (1986), Delumeau (1989), Koss (2004), Tedlock (2008), dentre outros.
Ao longo da pesquisa, foram realizadas entrevistas e conversas com cinco "experientes da cura" (terminologia de MAUÉS, 1990), que são duas pajés, dois curadores (um homem e uma mulher) e uma parteira, sendo que três entrevistados foram considerados mais relevantes para este trabalho. Essas três pessoas entrevistadas são mulheres, duas pajés (D. Roxita e D. Zeneida), e uma curadora (D. Flor), que não é necessariamente pajé, mas trabalha com ervas medicinais, remédios caseiros à base de plantas e raízes.
Este trabalho, portanto, pretende apresentar as características principais da pajelança cabocla, levantando uma discussão sobre a mulher como pajé na Amazônia, e analisar algumas práticas e saberes de cura e pajelança em Soure, a partir de três mulheres que curam.


2. PAJELANÇA CABOCLA NA AMAZÔNIA

A cultura brasileira reúne elementos de diversas culturas e povos, em que desde o início do processo de colonização e exploração do território a relação entre as etnias proporcionou a formação de nosso corpo cultural, intensamente diversificado. Além de outros povos e culturas que participaram de certa forma na colonização do Brasil, os indígenas, portugueses e africanos representaram presença marcante e nos legaram aspectos de sua cultura e religião até hoje.
A cultura amazônica, por sua vez, em suas múltiplas faces e aspectos é resultante da "integração dos elementos culturais de que eram portadores os que participaram do processo de colonização da região" (FIGUEIREDO, 1972, p. 35). A pajelança cabocla é um significativo aspecto da cultura brasileira, e especificamente, da cultura amazônica.
A pajelança cabocla é uma religiosidade bastante presente em várias localidades da Amazônia, apresentando suas particularidades dependendo do contexto histórico e social e da localidade na qual está inserida. Podemos atribuir como característica geral da pajelança a que foi definida por Heraldo Maués em "A Ilha Encantada" (1990): um conjunto de práticas e crenças xamanísticas que tem em suas expressões culturais diversos elementos da religiosidade indígena, africana e católica, mesclados em graus variáveis.
A pajelança cabocla, assim como a indígena, são formas de Xamanismo características da Amazônia. Compreende-se Xamanismo como "um fenômeno religioso da Ásia Central e Setentrional (povos altaicos, buriatas, samoiedos, iacutes, tungues, voguls etc.) e das regiões árticas norte-européias (lapões)" (MONTAL, 1986, p.13), que remonta sua origem ao período Paleolítico, a mais de 25 mil anos a.C. Segundo Alix de Montal (op. cit., p. 15), em seu livro intitulado O Xamanismo, "a palavra xamã vem do tungue saman, aparentado com o sânscrito sramana e com o pâli samana, que significa ?homem inspirado pelos espíritos? ", e afirma também que:

Encontram-se fenômenos xamânicos similares entre os esquimós, entre os índios da América do Norte e da América do Sul; na Oceania, na Austrália, no sudeste asiático; e enfim, na Índia, no Tibete e na China. Trata-se, aqui, de um conjunto de práticas evidentemente adaptadas e amalgamadas a cada cultura, a cada crença, mas que em toda parte apresenta o mesmo conteúdo mágico-religioso e simbólico (MONTAL, 1986, p.15).

De acordo com este autor, o animismo (isto é, ideia de que em tudo há alma ou energia vital), a crença nos espíritos de animais ou animais de poder, o poder curativo e sagrado das plantas, o transe, o êxtase, a existência de outros mundos paralelos ao mundo material, são algumas das principais características do xamanismo. O xamã seria, então, o sacerdote deste culto, o mediador fundamental entre os espíritos (de antepassados, de deuses e de animais) e os seres humanos.
O pajé, que corresponderia ao xamã, é aquela pessoa que tem o dom de curar doenças naturais e não-naturais com o auxílio dos encantados, e os encantados ou caruanas, são seres mágicos que vivem no fundo dos rios, florestas, e detentores de poder e sabedoria. Ambos são os dois eixos principais que compõem a Pajelança.
Importante ressaltar que há diferenças entre pajelança cabocla e pajelança indígena. A primeira, objeto de estudo neste trabalho, é resultado da relação entre diversas tradições culturais e religiosas (sobretudo, indígena, cristã católica e africana) ocasionada a partir da colonização. E a segunda, refere-se às práticas e crenças restritas as aldeias e etnias indígenas.
Sobre os pajés, existem dois tipos: o "de nascença" e o "de agrado". O pajé de nascença manifesta seu dom ainda no ventre da mãe, chorando ou emitindo um som. Tal ocorrido não pode ser revelado publicamente antes do tempo, sob pena de a pessoa perder seus poderes (MAUÉS, 2005). Ao alcançar certa idade, o jovem passa por um processo chamado de corrente-do-fundo, de muito sofrimento, crises, doenças ou ataques de violência ou possessão descontrolada de espíritos e caruanas. Ele deve, então, submeter-se a tratamento com um pajé experiente, que irá afastar os espíritos e os maus caruanas, treinando o noviço para que ele possa controlar as incorporações. O pajé:

Ao mesmo tempo, ensina-lhe os mitos, as técnicas, o conhecimento dos remédios, as orações etc., de sua arte. Ao final do período de treinamento, o novo pajé é "encruzado" numa cerimônia imponente, em que deve morrer simbolicamente para renascer como xamã. A partir daí, estará pronto para tratar seus próprios doentes e até formar seus próprios discípulos. Mas nunca se cura inteiramente da "doença" (chamada de "corrente do fundo") que o acometeu: ele terá que manter permanentemente certos tabus alimentares, sexuais e de outros tipos, bem como "chamar" regularmente suas entidades, dedicando-se, sempre, à prática da "caridade", isto é, à cura das doenças, sem procurar fugir de suas "obrigações", sob pena de ser castigado por seus próprios caruanas (MAUÉS, 2005, p. 10).

Galvão (1955) aponta que entre os pajés de nascença o mais poderoso e importante é o sacaca, capaz de realizar incursões ao fundo dos rios, local de morada dos encantados. Galvão (op. cit.) também afirma que há muitos casos em que a iniciação do pajé de nascença acontece no próprio Encante, ao invés do auxílio de um pajé experiente. Nesses casos, o futuro pajé chega a passar meses desaparecido, imerso nas profundezas dos rios, aprendendo diretamente com os Caruanas os segredos de sua arte. Este pajé será considerado um sacaca.
Os pajés de agrado ou de simpatia manifestam o dom apenas na juventude ou maturidade. Também são acometidos pela corrente-do-fundo e devem ser tratados e preparados por um pajé experiente, que realizará sua iniciação. Os pajés de agrado são "escolhidos" pelos encantados ao simpatizarem, se afinarem com esses indivíduos. No entanto, essa categoria de pajé não possui tanto prestígio quanto os de nascença, como afirma Cavalcante (2008, p. 53).
Existe uma diferença entre curandeiro(a) e pajé, em que o(a) primeiro(a) não incorpora ou não é possuído(a) por forças mágicas para curar, mas apenas receita banhos, garrafadas, chás, defumações, e utiliza-se sobretudo de orações e rezas, e sua maior aliada é a intuição e observação atenta para saber que mal aflige os que a procuram. Por sua vez o(a) pajé incorpora e serve como instrumento (ou "ave") dos encantados para efetuar a cura, além de ser capaz de visitar o fundo ou encante (onde habitam os encantados), e acredita-se ser detentor de maior poder de cura para diversas doenças (naturais e não-naturais) (SILVA, 2006).
Os encantados, por sua vez, podem ser definidos como seres sobrenaturais, que possuem poderes de cura ou maldição, e vivem no fundo de rios ou no interior das matas. De acordo com Maués (2005, p.7), os encantados:

São normalmente "invisíveis" aos olhos dos simples mortais; mas podem manifestar-se de formas diversas. A partir dessas formas distintas de manifestação, eles são pensados em três contextos, recebendo, por isso, denominações diferentes. São chamados de bichos do fundo quando se manifestam nos rios e igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e jacarés. Nessa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas comuns. Caso se manifestem sob forma humana, nos manguezais ou nas praias, são chamados de "oiaras"; neste caso, eles frequentemente aparecem como se fossem pessoas conhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em que eles, permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pessoas, quer sejam aquelas que têm o dom "de nascença" para serem xamãs, quer sejam as de quem "se agradam", quer sejam os próprios xamãs (pajés) já formados: neste caso, são chamados de caruanas, guias ou cavalheiros. Ao manifestar-se nos pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas vêm para praticar o bem, sobretudo para curar doenças.

A cosmovisão na encantaria amazônica, segundo Harris (2004), é dividida em três mundos ou domínios: o Céu, habitação de Deus e dos santos, fica "em cima"; o Intermediário, que é o mundo dos homens, do mundo material e profano, fica "no meio"; e o Fundo, isto é, a profundeza dos rios, da terra ou das matas, é habitação dos encantados e caruanas, fica "embaixo". O mundo dos homens seria interligado pelo Céu e o Fundo, e os pajés, xamãs ou mestres são o eixo de comunicação entre essas esferas.
Na maioria dos estudos e trabalhos publicados sobre a pajelança se observa uma recorrência maior de homens pajés ou curadores do que de mulheres pajés, pois estas são em grande parte dos casos proibidas pela família e pela comunidade de exercerem seu dom de cura, mesmo que seja um dom de nascença.


3. A MULHER COMO PAJÉ NA AMAZÔNIA

Em algumas localidades da Amazônia encontra-se uma forte interdição relacionada à prática da pajelança por mulheres. No entanto, mulheres xamãs ou pajés existentes no território amazônico não são raras, embora ainda encontrem resistência em certas comunidades. Em outras comunidades, contudo, encontram-se mulheres pajés consideradas mais poderosas até que os homens pajés, como em Soure (Marajó/PA). E em outras situações, é mais comum encontrarmos curandeiras, benzedeiras e parteiras, sendo esta última uma função exclusiva do sexo feminino.
De acordo com Silva (2006), curandeiras e benzedeiras são aquelas pessoas que se utilizam de ervas, banhos e chás para curar doenças, além de utilizarem também as rezas e benzeções de caráter cristão, invocando santos católicos e o nome de Jesus e Maria. Estas pessoas geralmente não entram em transe e também não recorrem aos encantados e entidades características da pajelança. O(a) pajé, por sua vez, pode tanto curar por meio de rezas, ervas e banhos, como por meio de rituais mais elaborados que envolvem o transe e a incorporação de entidades. Dessa forma, considera-se o pajé mais poderoso do que o benzedeiro ou curandeiro.

O grande entrave que impede a mulher de exercer a função de pajé é a menstruação, pois a população consideram que a mulher não consegue controlar os seus ciclos biológicos, e por essa razão não controlaria os seres e forças que nela atuariam. No período em que a mulher se encontra menstruada, diz-se que ela está "fraca" e não pode incorporar (CAVALCANTE, 2008). Deve aguardar que a menstruação pare, para voltar às atividades normais da pajelança. Ou então, ela deve aguardar até a menopausa, quando se "hominiza" (expressão empregada por MOTTA-MAUÉS, 1993), isto é, se assemelha ao estado natural masculino, sem ciclos menstruais, para então exercer seu dom.
Cavalcante cita um estudo de Colpron (2005), sobre um grupo indígena da Amazônia peruana shipibo-conibo, em que a existência de mulheres xamãs se torna freqüente. Segundo Cavalcante (2008, p. 85):

nessa sociedade indígena as mulheres conseguem conciliar o papel maternal com as funções xamanísticas, algumas desde jovens começam seu aprendizado, outras apenas após a menopausa. Assim, seu aprendizado vem do ensinamento de outros mestres, salienta a autora que a maior parte delas fora guiada por um mestre masculino.

Motta-Maués (1993) realizou um interessante estudo em Itapuá, vila de pescadores em Vigia, acerca do papel da mulher na comunidade e na religião, e o quanto este papel está relacionado à fisiologia e ao ciclo biológico da mulher. A autora afirma que a mulher é vista como portadora da "desordem", devido aos seus ciclos biológicos (confusos e incompreendidos pela população masculina itapuaense), enquanto que o homem é o portador da "ordem". Motta-Maués verifica a existência de áreas definidas como de domínio feminino (a ?roça? ou agricultura e a religião católica) e masculino (a pesca, a caça e o xamanismo).
No município de Colares, Villacorta (2000) observou que mesmo sendo proibido o exercício do gênero feminino na pajelança, havia mulheres pajés. Porém, elas eram discriminadas por parte da sociedade e chamadas de Matinta-Perera, feiticeiras do imaginário amazônico que, segundo a autora, mescla elementos mitológicos da cultura africana (as mulheres do pássaro da noite), pré-judaica (Lilith) e do cristianismo medieval (a bruxa). Acredita-se que a matinta é uma mulher ora de aparência idosa e feia, ora jovem e bela, que carrega consigo um fardo, herdado de família (de mãe para filha, ou avó para neta), e que se contrariada ou desrespeitada pode lançar um feitiço, doença ou desgraça para um indivíduo. Anda sempre acompanhada de um pássaro negro, que com seu assobio anuncia a presença da bruxa.
Em Soure, foi observado ao longo da pesquisa que é recorrente a prática de pajelança por mulheres, sendo que ao todo foram entrevistados cinco "experientes da cura": duas pajés, um curador e uma curadora, e uma parteira. A seguir, será abordado especificamente sobre três mulheres que curam em Soure (duas pajés e uma curadora), e sobre suas práticas e crenças de cura e pajelança.


4. SENHORAS DA CURA


4.1. D. FLOR

A entrevista com esta senhora ocorreu em abril de 2009. D. Flor é uma senhora simpática entre os 60 e 70 anos de idade, magra, cabelos ondulados e grisalhos abaixo dos ombros, altura mediana, mora com o esposo e os filhos em uma casa simples e com terreno grande, repleta de plantas e flores que ela própria cultiva.
Sua fonte de renda é, principalmente, vender plantas que são utilizadas tanto para decoração quanto para fins medicinais (chás, banhos), e vender redes de pesca, que ela mesma produz junto com seu esposo. Ela apresentou um pouco de resistência sobre eu tirar fotos suas, o que me impediu de obter qualquer registro visual dela.
Em seu relato ela conta que aprendeu desde moça a lidar com as ervas e que sua mãe a ensinava os mais variados tipos de plantas e suas funções curativas. Ela afirma que é um dom de família, herdado de seus bisavós. Conta também que muito de seu conhecimento vem da própria intuição, ela ouve ou de alguma forma sabe que tipo de erva serve para determinada doença, e que procedimento deve ser feito. Quando se sente insegura ou não sabe que planta utilizar para tratar uma doença, ela se "embrenha" no mato, caminha entre a vegetação até que sinta ou intua que uma planta lhe "chama".
Ao perguntar-lhe se ela trabalha com pajelança ou se define a si mesma como pajé, ela responde que não, e afirma que o que ela faz são remédios naturais, que não incorpora encantado e nem balança maracá. Contudo, admite que quando sente necessidade, recorre aos cabôcos ou encantados e realiza alguns "trabalhos" a eles pedindo auxílio, mas de forma muito pessoal e individual.
D. Flor defende a importância da cura através das plantas, pois afirma que antes dos médicos e cientistas, eram os curadores e as parteiras responsáveis pela saúde das pessoas. A dificuldade de se locomover a um grande centro, como Belém, em busca de tratamento especializado faz com que muitas pessoas procurem o pajé ou curador, em vez do médico. Como explica D. Flor:

Então a gente vive aqui com as plantas naturais, com o remédio natural. E aqui é um interior, se uma pessoa fica doente seja de pneumonia, de qualquer problema sério, aí ele vai pro médico e o que o médico faz? Encaminha logo pra Belém, e a gente, meu amor, não tem condições... Se for caso de vida ou morte, vai morrer, porque nós não temos avião, o navio não pode chegar lá dentro num piscar de olhos, e como já aconteceu, o paciente morre mesmo, é melhor ficar em casa e morrer, porque não vai ter jeito. Então, a gente prefere logo ir fazendo o tratamento (Entrevista, abril/2009).

Além dos chás e banhos, D. Flor também faz "óleo de bicho", feito do caroço de tucumã ou da andiroba, que alega ser eficaz na cura de câncer, como o câncer do cólo do útero. Outros tipos de problemas, de causa não-física ou não-natural, também podem ser curados por meio das plantas, como a inveja ou mau-olhado.
D. Flor afirma não cobrar pelos remédios que ensina, pois "quando você se oferece de coração, você está fazendo muita coisa, você tá fazendo um bem que você não sabe o tamanho que é. Se é de coração, é maravilhoso", assim ela explica.
Além de D. Flor, outra mulher também exerce práticas e rituais de cura em Soure, que é D. Roxita.


4.2. D. ROXITA

D. Roxita é uma senhora de 59 anos, robusta, de pele negra, cabelos curtos e escuros, e muito simpática. Entrevistei esta pajé duas vezes, a primeira vez em fevereiro de 2009 e a segunda em abril de 2010, e ela mostrou-se muito acessível e disponível em conversar comigo sobre o assunto.
Segundo seu relato, ela nasceu com o dom, e sua mãe e seu pai teriam sido "médiuns", mas não aceitavam a própria "mediunidade" e nem a da filha. De acordo com D. Roxita, ela e sua irmã gêmea nasceram juntas com o dom de ser pajé, mas, sem me explicar a causa, sua irmã morreu aos sete anos, idade em que Roxita começou a curar. Sem ser ensinada ou preparada por nenhum outro pajé ou curador, D. Roxita aprendeu seus saberes com Deus, com os santos e os encantados. Ela afirma que tudo o que o pajé sabe é um dom de Deus, e que ele sempre lhe orienta.
A respeito de seu particular sincretismo religioso, foi possível observar várias imagens de santos católicos espalhadas por sua casa. Uma de N. S. de Nazaré acima da televisão na sala, um pôster do Círio de Belém pregado na parede, e em seu altar (que fica em um pequeno cômodo da casa, onde realiza as curas) vários outros santos, dentre eles Santo Antônio e São Jorge, indicando claramente o catolicismo como uma forte expressão de sua religiosidade, assim como elementos de outras religiões também compõem o seu universo de crenças, como a ideia de reencarnação, espíritos perturbadores, e outras provenientes do Espiritismo. É possível observar que suas práticas e crenças se enquadram no "padrão" de pajelança bastante conhecido e estudado por antropólogos e historiadores, que é a pajelança cabocla, propriamente dita.
A pajé explica que pode curar qualquer tipo de doença, quando é para ela, ou seja, quando pode ser tratada com ervas, quando não, ela (e as entidades) recomendam que a pessoa procure o "bata branca", ou seja, o médico. Com o auxílio dos seres que a guiam, ela pode curar tanto doenças de causa espiritual (perturbação de espíritos, por exemplo) como de causa física ("tocedura", "quebradura"), embora em casos mais urgentes ela aconselhe procurar o médico. Entretanto, pessoas podem solicitar sua ajuda para diversas outras razões, como encontrar um animal perdido, como testemunhei certa vez um rapaz pedindo ajuda à dona Roxita para encontrar sua égua fugida, pedir para serem "benzidas" ou protegidas espiritualmente.
D. Roxita realiza suas curas em dois lugares, em períodos de muita chuva e quando o ritual não precisar ser muito elaborado, ocorre no pequeno quarto próximo a sua sala de estar, e em períodos de pouca chuva e quando os rituais são mais complexos, ocorre "na mata" em uma área já especificada pela pajé, ou na praia do Pesqueiro. Ela prefere realizar as curas em meio a natureza, pois afinal, é o meio natural dos encantados e onde a ligação com eles pode ser melhor facilitada.
Ela afirma não cobrar das pessoas os ritos de cura ou remédios que realiza, pedindo apenas o material que for necessário para o trabalho, caso ela própria não tenha esse material em casa. D. Roxita diz que pajé não deve cobrar pelo seu trabalho, pois seria errado cobrar por algo que foi dado por Deus, o dom de curar.
A pajé Roxita relata que aos nove anos de idade ela vivenciou uma experiência muito significativa, que marcou definitivamente sua iniciação na encantaria. Em seu depoimento D. Roxita conta que foi levada para o Fundo, para o mundo dos encantados sob as águas, por uma menina índia encantada, chamada Mayara. A partir dessa experiência, D. Roxita começou a sofrer o que os estudiosos chamam de corrente-do-fundo, dando início de fato a sua preparação como pajé. Seus conhecimentos de cura provêm, segundo a pajé, dos próprios encantados, dos santos e de Deus, que se comunicam com ela por meio de intuição, sonhos, visões.
Atualmente, D. Roxita já entrou no período da menopausa, mas ela explica que durante os dias em que estava menstruada não era permitido realizar cura, pois as suas "correntes estavam quebradas", voltando as atividades normais somente quando terminado o sangramento. Ela também explica que não deve ter relação sexual três dias antes de um ritual de cura.


4.3. D. ZENEIDA LIMA

A mulher pajé que começou a ser conhecida no Brasil em 1998 e desperta hoje admiração e também discussões polêmicas entre acadêmicos e leigos, é bastante reservada e de difícil acesso. Consegui conversar com dona Zeneida Lima duas vezes, em novembro de 2009 e em julho de 2010, depois de muita persistência, e ainda assim restaram algumas lacunas na pesquisa, pois não foi possível participar ou assistir a um ritual seu de pajelança.
Zeneida Lima possui dezessete livros publicados, sendo o mais famoso "O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó" (2002), atualmente em sua 6ª edição, em que escreve sobre sua infância em Soure, os conflitos familiares, alguns acontecimentos do cenário político da época, sua iniciação na pajelança, alguns conhecimentos de cura, sua estada no Rio de Janeiro, e outros eventos de sua vida até o início da idade adulta. Há, inclusive, um segundo volume sendo escrito pela pajé para ser publicado em breve, e também um filme de longa-metragem dirigido por Tizuka Yamazaki chamado "Amazônia Caruana", baseado na obra autobiográfica de D. Zeneida Lima, mas ainda sem previsão de lançamento no cinema. Essa estreita relação da pajé Zeneida Lima com a mídia é um fator que incomoda muitas pessoa, tanto os moradores de Soure, quanto outros pajés e até mesmo os pesquisadores sobre a pajelança.
D. Zeneida nasceu em 21 de julho de 1934 e foi sentada pajé aos onze anos de idade, pelo mestre Mundico de Maruacá, em Salvaterra. A preparação antes do ritual de cruzamento consistiu em algumas ações necessárias a serem feitas pela pajerana, ou seja, aquela que vai ser pajé (LIMA, 2002), que deve seguir uma rigorosa alimentação, tomar nove banhos de ervas um a cada mês na lua crescente, durante nove meses, e não deve olhar para a lua cheia, até o dia do ritual de iniciação. O processo de formação como pajé de D. Zeneida Lima durou um ano e dezessete dias, em que aprendeu com seu mestre sobre os rituais da pajelança (ou pajeísmo, como ela também denomina), o mundo dos caruanas sob as águas, as sete cidades encantadas, as divindades (como o Girador, Patu-Anu, Auí, Anhangá), e outros conhecimentos.
A pajelança, de acordo com D. Zeneida Lima (2002), é um culto oriundo dos indígenas, repassado aos caboclos e que hoje, em nossa civilização "são as últimas marcas de um culto em vias de extinção" (LIMA, op. cit., p.16), pois estaria cada vez mais difusa entre elementos de outras religiões. Os seus saberes e suas práticas seriam a sobrevivência de um culto originalmente indígena das tribos do Marajó. Em entrevista, realizada em julho de 2010, a pajé Zeneida Lima argumenta que a pajelança exercida por ela consiste na "pajelança marajoara", que difere da pajelança cabocla, provinda do Maranhão.
O pajé, para D. Zeneida Lima, não é somente o instrumento dos caruanas e a ponte de ligação com o mundo dos encantados, mas também um defensor e guardião da natureza e de sua sabedoria. Daí a razão do trabalho que desenvolve com a educação e a ecologia, por meio de uma ONG (Instituição Caruanas do Marajó) que a pajé criou e mantém em Soure.
Os caruanas, conforme esta pajé, são energias das águas, e explica que "são energias do fundo, energias do meio das águas e as energias da superfície, cada um tem, dentro da pajelança, tem um posto, cada um tem uma hierarquia, [...] quer dizer, então, cada um tem um domínio" (entrevista, julho/2010). O domínio que ela se refere é o local onde reside cada caruana, ou seja, cada praia, rio, igarapé é habitado por um ou mais encantados. Os caruanas são os encantados das águas doces, e possuem caráter "positivo", enquanto que os encantados das águas salgadas são denominados de caruás, possuem caráter "negativo" e geralmente efetuam malinezas, mas também têm o poder de curar.
Enquanto pajé, D. Zeneida Lima afirma não ter sofrido discriminação pelo fato de ser mulher, e sim pelo fato de ser pajé, pelas práticas que realiza, tendo em vista que a pajelança ainda é uma prática marginalizada. Ela reclama ter sido alvo de perseguição e preconceito, sobretudo em sua cidade. Relata também que durante o período em que estava menstruada ela não poderia realizar pajelança, pois seu corpo "não estava puro para os caruanas" (Entrevista, julho/2010), deveria se alimentar somente de peixe e da parte inferior do mesmo e beber água apenas três vezes no dia. Também não poderia ter relação sexual durante a lua cheia e nem alguns dias antes de uma pajelança. Caso ela não seguisse essas regras, correria o risco de perder seu poder de cura.
Por meio de seu depoimento e de seus livros, percebemos, portanto, que as práticas e crenças desta pajé são permeadas por saberes construídos a partir de sua própria cultura local, a marajoara, por conhecimentos transmitidos por seu mestre, e por conhecimentos adquiridos ao longo de sua vida, seja por meio de livros que tenha lido sobre o tema, como encantaria, mitologia e cultura amazônica, ou por meio de sua própria experiência e vivência dessa religiosidade.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo sobre as mulheres pajés na Amazônia está se ampliando cada vez mais e vem demonstrando que elas participam do universo da pajelança de uma maneira ou de outra, seja agindo efetivamente como pajés ou xamãs, seja agindo como serventes ou meuans. Em todo o território amazônico elas são mulheres que curam, são as curandeiras, benzedeiras, parteiras e pajés, que possuem saberes das plantas curativas, da mata, das águas, dos ciclos da lua e da natureza.
Com este estudo foi possível constatar que em Soure, além de existir uma grande diversidade de práticas e crenças de cura e pajelança, as mulheres não são proibidas de serem pajés ou de atuarem na prática da cura. Pelo contrário, dentre os entrevistados elas representaram quantidade maior do que os homens.
Entretanto, devido ao seu ciclo fisiológico natural e aos simbolismos a ele atribuídos, a mulher pajé deve seguir certas restrições que o homem geralmente não segue. Em período de sangramento menstrual ela não deve realizar nenhum ritual de cura, pois está "impura" ou com as "correntes quebradas", e também deve seguir uma dieta alimentar baseada em determinados tipos de peixes e não comer a parte da cabeça destes. E dentre outras coisas que devem ou não fazer nesse período, possivelmente não reveladas pelas pajés nas entrevistas.
Por fim, espera-se que esse estudo incentive pesquisas sobre a pajelança cabocla e sobre mulheres pajés na Amazônia, haja vista que esse é um campo de estudo ainda recente, sobretudo sobre a questão da mulher como pajé.




REFERÊNCIAS

CAVALCANTE, Patrícia Carvalho. De "nascença" ou de "simpatia": iniciação, hierarquia e atribuições dos mestres na pajelança marajoara. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA, 2008.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800. Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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Autor: Mayra C. S. Faro


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