A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM SOB A PERSPECTIVA DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO



INTRODUÇÃO

A hodierna pesquisa científica, cujo tema é "Inseminação artificial post mortem sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro e suas transformações", vem na esteira em que foi facultado ao profissional do direito interpretar e estudar dispendiosamente sobre este contexto tão atual, entretanto, desamparado pela legislação, questionar: ao filho concebido por inseminação artificial post mortem é atribuído o reconhecimento da filiação e, consequentemente, os direitos sucessórios?
No tocante à justificativa, vale ressaltar que o mesmo é dono de descomedida relevância e veemência social e científica, posto que a amplitude e abrangência deste estudo, ao tratar das crescentes transformações na seara biotecnológica, em especial a reprodução humana homóloga realizada em laboratório, na ocasião em que o progenitor jaz falecido.
Cabe salientar, todavia, a proeminência científica da aludida pesquisa, na medida em que aventou uma matéria demasiadamente intrincada, no sentido de que se trata de um tema pouco sopesado em estudos científicos e de que não goza de amparo pelo corpo legislativo nacional, apresentando, por este motim, como sendo de grande valia ao ordenamento jurídico brasileiro.
Em síntese, corroborando a relevância científica, insta frisar que a análise da matéria aqui proposta permite que a técnica da procriação artificial seja cada vez mais utilizada e tratando-se, ainda, de um tema pouco analisado em estudos científicos.
Hodiernamente, o Direito Civil Brasileiro tem sofrido drásticas mudanças no que tange à possibilidade de inclusão e igualdade de direitos relativos à filiação e à sucessão da prole eventual para com os filhos já concebidos antes o óbito do progenitor. Tais mudanças têm sido reflexos das evoluções científicas na medicina que torna cada vez mais acessível aos casais que buscam técnicas de reprodução assistida, como a fertilização in vitro e a inseminação artificial, além de provocar uma série de discussões e controvérsias entre tribunais e doutrinadores acerca dos direitos e deveres patrimoniais e civis atribuídos aos filhos.
O Código Civil brasileiro, ao tratar da vocação hereditária, elimina, de um modo geral, o nascido cuja concepção tenha sido posterior, da habilitação a suceder. Por conseguinte, entende-se que somente os nascituros e os filhos nascidos são corroborados à sucessão, desamparando expressamente os concepturos, ou seja, aqueles que ainda não foram concebidos, participando deste rol os embriões gerados in vitro, uma vez que não ostentam a condição de nascituro enquanto não for implantado no ventre materno.
De modo controvertido, o mesmo instituto aludido acima admite que os filhos havidos a qualquer tempo, decorrentes de concepção artificial homóloga, presumem-se concebidos da constância do casamento. Portanto, a prole gerada através da inseminação artificial, mesmo tendo falecido o pai, tem direito à presunção da filiação.
Neste diapasão, se o corpo legislativo permite que filhos ainda não concebidos de terceiros, indicados em testamento, sejam chamados a suceder, presume-se que a permissão para a habilitação de sua própria prole eventual para suceder por testamento, seja também amparada por este diploma legal.
Nesta direção, o objetivo geral da pesquisa incidiu em analisar o reconhecimento da filiação e os direitos sucessórios nos casos de inseminação artificial homóloga post mortem. Assim sendo, para alcançar esse desígnio, admitindo ou não a hipótese circunstanciada, pretende-se preencher, especificadamente, as consequentes metas: examinar a reprodução humana medicamente assistida sob a perspectiva da Bioética e do Biodireito; verificar as transformações jurídicas e sociais proporcionadas pelos avanços da reprodução humana medicamente assistida e discutir os efeitos jurídicos da inseminação artificial post mortem.
Na tentativa de elucidar a problemática proposta ou, ainda, torná-la resoluta, segue-se com a hipótese de que após a crescente demanda de casos em que foi manifestado o desejo de procriar artificialmente mesmo após o depauperamento do cônjuge varão, insta evidenciar e resguardar a condição civil e hereditária do fruto desta concepção, reformulando e adaptando o ordenamento jurídico brasileiro, de forma a acompanhar os atuais progressos científicos e sociais nesta seara.
Por oportuno, pretende-se, através das mudanças alvitradas acima confiadas ao legislador brasileiro, que a prole eventual tenha uma vida digna e que lhe seja auferida os direitos sucessórios e de filiação, haja vista que a própria Carta Magna, juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente, resguarda os direitos, o bem estar e os interesses da criança, tendo como primordial a sua proteção.
Conquanto, há uma questão relevante no que atine à fixação do prazo para que a prole eventual, nos casos de inseminação artificial homóloga post mortem, possa estar apta a suceder, uma vez que o fato da possibilidade desta ser feita a qualquer tempo ocasionaria ao ordenamento jurídico e à sucessão prejuízos, no que tange a espera de uma prole indefinida, de maneira que o material genético tem a possibilidade de ficar crio-conservado por décadas.
Destarte, a perspectiva da exclusão de direitos gerados à prole eventual viola os princípios da igualdade, da dignidade humana, do melhor interesse da criança. Porquanto o reconhecimento de amplos direitos ao concepturo, por fecundação póstuma, respeita a Constituição Federal na medida em que o legislador se preocupou com a dignidade das pessoas e a proteção da família.
No mais, a pertinente pesquisa consiste em um estudo teórico-empírico, de forma que esta iniciação científica proporcionou o debate teórico entre os doutrinadores elencados na mesma e, qualitativo, visto que foram usadas obras pertencentes a renomados doutrinadores no cenário sócio-jurídico brasileiro.
Ainda sobre questões metodológicas, a presente monografia baseia-se em fontes primárias como, por exemplo, a legislação, bem como fontes secundárias como, por exemplo, sites e doutrinas. Desta feita, o método de pesquisa utilizado é o hipotético-dedutivo, posto que na tentativa de solucionar a problemática anunciada nessa monografia foram apresentadas algumas hipóteses, ou seja, possíveis respostas ao problema que será ou não confirmadas no deslinde da pesquisa, oferecendo proposições para um problema resoluto.
No Capítulo I será abordada a reprodução humana medicamente assistida sob a perspectiva da Bioética e do Biodireito, sendo abordados princípios inerentes a estas ciências que cumprem um papel crucial na análise e no estudo de técnicas oriundas de experimentações científicas.
O Capítulo II desta pesquisa tratará das transformações jurídicas e sociais ocasionadas pelos progressivos avanços biotecnológicos e biomédicos, principalmente na no que se traz à baila a procriação artificial, de forma que será estudada sob o âmbito do direito comparado, dos acondicionamentos sobre a filiação, a entidade familiar, bem como o direito ao planejamento familiar alvitrados pelo Código Civil e pela Constituição Federal e, dos aspectos gerais da reprodução humana medicamente assistida.
Enfim, o Capítulo III vai aventar os efeitos jurídicos da inseminação artificial post mortem, apontando pontos fundamentais ao estudo, os reflexos da fertilização artificial homóloga no direito de família e no direito de sucessões, a possibilidade ou impossibilidade de reconhecimento de direitos à prole eventual, bem como alguns impasses à compreensão e aceitação destes efeitos, quais sejam a inexistência de um filho ao tempo da abertura da sucessão, a necessidade do consentimento e a vocação hereditária.






































CAPÍTULO I

A REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA NA VISÃO DAS CIÊNCIAS DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO


1.1. A Reprodução Humana Medicamente Assistida


Nas últimas décadas, os céleres avanços tecnológicos têm atingido uma diversidade de campos cada vez maior. Tais progressos acarretam inúmeras mudanças no âmbito social, cultural e consequentemente na legislação, posto que o direito seja uma ciência em constante transformação de forma a acompanhar as mudanças que ocorrem na sociedade, em especial na conduta do homem, enquanto ser social.
Neste sentido, a presente pesquisa busca estudar a evolução tecnológica na seara da medicina, em especial a inseminação artificial post mortem, no que se refere às questões éticas, bem como à existência de normas jurídicas e aplicação destas às procriações artificiais.
A utilização de técnicas de reprodução artificial teve seus primeiros relatos históricos no final do século XVIII, através da prática do cirurgião escocês John Hunter (LEITE, 1995).
Porém, tal prática só teve percussão na contemporaneidade, com o crescente anseio de homens e mulheres impossibilitados de gerarem filhos, por esterilidade ou até mesmo por carência de consorte.
Em se tratando da reprodução humana medicamente assistida, Luiz Edson Fachin ensina:

O tema remete a dimensão jurídica do próprio corpo humano, apto a fixar limites e possibilidade do sujeito do corpo e do corpo como objeto do direito. (...)
Daí o sentido da bioética, princípios necessários para reger condutas aplicáveis à reprodução humana. Diretivas a partir de um "patrimônio comum de valores".
Enfrenta-se aí problema que se refere às fronteiras da ciência e aos eventuais limites éticos, morais ou jurídicos ao desenfreado "progresso científico". (...)
Mais do que apontar tal contexto, cabe também perguntar "a que" e "a quem" serve a biotecnologia. Não sem razão, é necessário um olhar crítico sobre o nosso tempo, penetrante e desconfiado desse determinisme lâche que governa a nouvelle vague da economia. Isso tudo para que no corpo do direito não ingresse simplesmente um novo estatuto do corpo humano a título de artefatos da mercantilização, objetos de mercancia suscetível de trânsito na arena jurídica.
Não há neutralidade na ética nem na biotecnologia, governada, de um lado, pela lógica do conhecimento e do poder, a qual está seguramente associada à lógica do lucro; de outra parte, a lógica do desejo e da livre busca da felicidade (2003 p. 251-252).


À luz destas discussões, se faz importante ressaltar que o maior índice de esterilidade incide sobre os homens e, consoante Eduardo Oliveira Leite (1995, p. 32) "(...) as causas da esterilidade masculina (?) mais frequentes continuam sendo a ausência completa de espermatozoides (azoospermia), ou quando a produção de espermatozoides é alterada (azoospermia secretória)".
Relativamente aos casos de esterilidade em homens, Eduardo de Oliveira Leite elucida que:

A esterilidade masculina atinge diretamente o homem naquilo que ele tem de mais profundo e provoca importantes repercussões psicológicas. Na mulher, a esterilidade também provoca reações psicológicas. As reações das pessoas que nos cercam, igualmente pesam sobre o casal. O que ocorre é uma reação de reprovação em cadeia. Limitada, inicialmente, a uma pessoa, passa a atingir o casal, e daí, passa ao grupo familiar, envolvendo, num estágio derradeiro, a sociedade inteira (1995, p. 102).


Analisando o método científico da inseminação artificial, percebe-se que esta pode ser classificada em dois modos, quais sejam homóloga e heteróloga. A primeira ocorre nos casos em que o sêmen é procedente do próprio cônjuge varão, ao passo que a inseminação heteróloga pode ser realizada em mulheres solteiras ou casadas, porém, neste caso, o sêmen é proveniente de um doador que não advém da relação marital.
Com fulcro nas ilações advindas de Álvaro Villaça Azevedo (1996, p. 145), a reprodução humana medicamente assistida, consiste na "fecundação, com artificialidade médica, informada e consentida por escrito, por meio de inseminação de gametas humanos, com probabilidade de sucesso e sem risco grave de vida ou saúde, para a paciente e para seu futuro filho".
Estudando acerca da técnica de colheita e conservação de sêmen, a obra "Procriações artificiais e o direito" de Eduardo Oliveira Leite, vem claramente explicar:

Recolhido o esperma do doador, o material, é preparado e conservado em azoto líquido a ? 196° (cento e noventa e seis graus abaixo de zero). A coleta do esperma é feita em laboratório, através de masturbação, em recipiente plástico, devidamente esterilizado. O esperma, muito viscoso na emissão (chama-se-lhe, nesta fase, "coagulum") se liquefaz em quinze a trinta minutos na temperatura ambiente. Retira-se, então, uma gota que é observada entre a lâmina e a lamínula do microscópio. Conta-se o número de espermatozoides por milímetro, a porcentagem dos espermatozoides móveis (é a mobilidade) e sua velocidade no deslocamento (é a motilidade). Finalmente aprecia-se a taxa relativa de espermatozoides normais e anormais depois de os haver espalhado e colorido para melhor os observar e distinguir. O esperma (2 a 5 ml, aproximadamente, em cada emissão) é depois diluído com a solução crioprotetora (verdadeiro antigelo, que é misturado a um açúcar, a frutose, misturado à antibióticos e à gema de ovo). Mistura-se tudo e reparte-se nos capilares, (?) que são tubos finíssimos de plástico, com 14 cm de tamanho e 2 mm de diâmetro, tampados numa das extremidades por uma rolha porosa. O enchimento dos capilares se faz graças a um aparelho automático que distribui 0,25 ml da mistura por capilar, depois solda-se com ultrassom o orifício de cada tubo. Os capilares são cuidadosamente numerados. Cada número identificará, a partir de então, o doador, cujo nome e as coordenadas só serão conhecidas pelo responsável do CECOS e serão conservadas sob chave, ao abrigo das indiscrições. Os capilares estão prontos para o congelamento. Frequentemente eles são mantidos em vapores de azoto durante dez minutos, depois mergulhados no azoto líquido, a uma temperatura de menos de 196 graus. Os capilares são, então, colocados em botijões de estocagem, também cheios de azoto líquido à nível constante. Os espermatozoides podem assim ser conservados dez, vinte anos e até mais (1995 p. 36-37).


Após o procedimento de recolhimento e conservação, minuciosamente explicado acima, os espermatozoides se encontram aptos a serem depositados no organismo da mulher, posto que estes podem ser introduzidos no interior da vagina, ao redor ou no interior do colo, ou ainda, dentro do útero ou do abdômen.
Ponderando que a esterilidade é um problema de saúde reprodutiva que, assaz, pode ser solucionado pela medicina, o método da reprodução assistida é benquisto, uma vez que a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) prevê que é direito de todas as pessoas o acesso à saúde e comprometimento do Estado, assim como conjetura o direito destas ao planejamento familiar, disposto no § 7º do artigo 226, in verbis:

Art. 226 - (...)
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.


A referida forma de procriação vem seguida de imprecisões no que diz respeito à conduta do homem, bem como na psicologia e sociologia da humanidade, pois além de ser atual e não prevista em lei, afeta diretamente nas questões éticas e morais, na dignidade da pessoa humana e em seus direitos adquiridos.
Desta feita, compete à ciência do Direito atuar na seara da Bioética no que se faz menção à prática da inseminação medicamente assistida, regulamentando-a e limitando-a.


1.2. A Bioética


Antes de se iniciar o debate proposto neste estudo cientifico, faz-se imprescindível conceituar e descrever o campo de atuação da Bioética no cenário jurídico-brasileiro, posto que pode ser conceituada, de forma sucinta, como sendo a ética da vida, tendo-se em vista que é formada por bios (vida) e ética (costumes), vocábulos gregos.
A terminologia Bioética, em consonância com os dizeres de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, enraizou-se:

Em 1971, pelo cancerologista Potter Van Rensselaer, da Universidade de Winscosin, com significação diversa da atual. O criador do termo entendia que o objetivo da bioética deveria ser o de auxiliar a civilização humana a racionalizar o processo evolutivo dos nexos da biologia e da cultura, possuindo uma finalidade moral-pedagógica (2003 p. 46-47).


Hodiernamente, a Bioética tem como propósito a dissolução dos embates trazidos pelo descomedido desenvolvimento biotecnológico, que se ocupou em sobrepor as descobertas científicas com carência de discussões concernentes à moral.
Neste contexto, Bioética é um modelo de conduta que procura trazer o bem à humanidade como um todo, e, ao mesmo tempo, a cada um dos indivíduos. Portanto, consiste em um estudo orientador do Biodireito e das leis pertinentes ao assunto.
Com arrimo na doutrina de Regina F. Sauwen e Severo Hryniewicz (1997, p. 12) a "Bioética é um estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga na área das ciências da vida e da saúde, totalidade de condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular".
Quanto à utilização e à propagação imoderada das técnicas reprodutivas desenvolvidas pela ciência, bem como os sucessivos avanços tecnológicos, Hermínio Martins apud Hermetes Reis de Araújo assevera:

(...) a perspectiva tecnocêntrica para a qual a continuação do projeto tecnológico ou tecnocientífico em toda a sua plenitude é a grande prioridade. Não se trata só da defesa do avanço técnico como indispensável para assegurar o nosso futuro em quaisquer circunstâncias, mas da realização dos possíveis tecnológicos como um valor em si mesmo, sem limites, sem parar, apesar de tudo, custe o que custar: fiat tecnologia, pereat mundus. A perspectiva tecnocêntrica rejeita também o antropocentrismo porque o bem-estar humano, embora possa ser um resultado do avanço técnico, não deve ser limitativo porque então se poderia argumentar que uma redução ou domesticação do avanço tecnológico poderia ser benéfico, e a nossa espécie só é privilegiável como veículo, por enquanto, do avanço tecnológico. Nesta linha de pensamento tecnocêntrico, uma resposta possível à crise das nossas condições de existência, sugerida com perfeita seriedade por cientistas-profetas, seria precisamente transcender a nossa condição animal. Nesta auto-superação, por exemplo, transformando-nos talvez gradualmente em entidades mecânicas, eletrônicas, químicas, etc., em seres não só superinteligentes, mas também com uma aparelhagem sensorial e locomotora fantástica, trans-humanos e eventualmente trans-terrestres, viajando através do cosmos procurando sempre saber e poder mais e mais (MARTINS apud ARAÚJO, 1998, p. 160-161).


De acordo com esta acepção, vale dizer que o ordenamento jurídico brasileiro, juntamente com os preceitos da Bioética, deve infundir limites e determinações à atual realidade biotecnológica, assim como às futuras possibilidades que esta ciência nos proporcionará, de modo que seja observado, especialmente, sob o contexto social, psicológico, antropológico e jurídico.
Por oportuno, a Bioética não é uma ciência por si só, ela carece ser complementada por vários ramos da ciência médica, bem como outros ramos adversos da medicina, tais como a política, o direito, a sociologia, a teologia, dentre outras.
Logo, a substancialidade de outros campos de conhecimento para que a Bioética possa ser suplementada, pode ser indubitavelmente compreendida, posto que consistiu pioneira na ligação entre a ciência e a ética, tendo surgido como um meio de restringir os céleres progressos biotecnológicos sendo, por esse motim, indispensável o seu amparo.
No mais, a Bioética e o Biodireito têm sido fundamentais na acepção de proteção da vida humana, em especial no que se refere à proteção dos seres humanos que estejam direta, ou indiretamente, envolvidos em experimentos científicos.


1.2.1. Princípios da Bioética


A Bioética, em virtude de sua heterogeneidade, é provida de alguns princípios referenciais básicos, sem os quais esta desfaz sua caracterização, quais sejam os princípios da autonomia, da beneficência ou não maleficência, da justiça e da sacralidade da vida humana ou da dignidade da pessoa humana.
À luz das reflexões de Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine, a Bioética tem sido:

(...) concebida como uma resposta para as novas tecnologias em medicina, mas foi gestada numa cultura sensível em relação a determinadas dimensões éticas, de modo especial ao direito dos indivíduos e abuso por parte de instituições poderosas. As necessidades e preferências dos pacientes deveriam ser defendidas vigorosamente. A primeira década da bioética como um movimento e disciplina, fez justamente isso (1997, p. 22-23).


Neste diapasão, os princípios bioéticos denotam que a ética médica vem limitar os atos praticados pelos profissionais da medicina, exaltar os valores pertinentes à vida e à dignidade do homem, bem como provar que esta é uma ciência circunspecta e com finalidades a alcançar.


1.2.1.1. Princípio da Autonomia


O princípio da autonomia se encontra diretamente adstrito ao paciente enquanto ser autônomo, dotado de razão e consciência próprios, capaz de deliberar positiva ou negativamente sobre os procedimentos médicos a ele inerentes.
Segundo os autores Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes e Fernando Galvão da Rocha, o princípio da autonomia:

(...) refere-se à capacidade de autogoverno do homem, de tomar suas próprias decisões, de o cientista saber ponderar, avaliar e decidir sobre qual método ou qual rumo deve dar a suas pesquisas para atingir os fins desejados, sobre o delineamento dos valores morais aceitos e de o paciente se sujeitar àquelas experiências, ser objeto de estudo, utilizar uma nova droga em fase de testes, por exemplo. O centro das decisões deve deixar de ser apenas o médico, e passar a ser o médico em conjunto com o paciente, relativizando as relações existentes entre os sujeitos participantes (...) (1998, p. 228).


Nesta mesma acepção, Aline Mignon de Almeida prescreve:

O princípio da autonomia está diretamente ligado ao livre consentimento do paciente na medida em que este deve ser sempre informado; em outras palavras, o indivíduo tem a liberdade de fazer o que quiser, mas, para que esta liberdade seja plena, é necessário oferecer a completa informação para que o consentimento seja realmente livre e consciente.
O princípio da autonomia é considerado o principal princípio da Bioética, pois os outros princípios estão, de alguma forma, vinculados a ele (2000, p. 7).


Desta feita, observa-se que o princípio da autonomia se encontra intrinsecamente voltado para o respeito ao próximo, em especial ao paciente e na dignidade da pessoa humana, posto que a pessoa submetida a cuidados médicos deve ser recebida como indivíduo independente e descomedido para optar pela melhor vereda.


1.2.1.2. Princípio da Beneficência


Nas palavras de Aline Mignon de Almeida (2000, p. 7), o princípio da beneficência significa "a ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos (...)".
O princípio supracitado é igualmente conhecido por princípio da não-maleficência, tendo-se em vista sua imposição em relação aos atos realizados na seara da saúde, que sejam de forma a proporcionar e priorizar o bem-estar e a saúde do homem, ou mais especificamente, ao paciente, minimizando os prováveis riscos e prejuízos a este.
À luz destas acepções o princípio da beneficência coloca em evidência o deleite do paciente, enquanto ser individual, frente aos interesses da ciência e da sociedade.


1.2.1.3. Princípio da Sacralidade da Vida


Para os juristas Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes e Fernando Galvão da Rocha, tais princípios:

(...) são os principais norteadores da bioética, na medida em que consideram a vida como sagrada e inviolável. Neste sentido, não se justifica a causa do sofrimento e da dor desnecessária, a imputação de um ônus superior ao que a pessoa possa suportar, ainda que, por decisão sua, mesmo para a realização de pesquisas ou qualquer atividade científica. Combate-se assim, a consideração do homem como objeto, como uma ?coisa?, a favor da compreensão da vida humana como algo sagrado, intangível. Ainda que fora dos aspectos teológicos que a questão envolve, a expressão ?sagrado? não necessariamente estará ligada a Deus, mas sim ao caráter inviolável de seu objeto (...) a vida humana não pode ser sacrificada em prol da ciência, e da experimentação (...) (1998, p. 230).


Este princípio é decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana e reputa a vida do homem como ser intangível. Por este princípio, portanto, a vida humana deve ser, a todos os momentos, reverenciada e resguardada em oposição aos acometimentos impróprios. Desta forma, tais princípios consideram a vida humana e o ser humano como valores em si mesmos.


1.2.1.4. Princípio da Justiça


Na acepção dos doutrinadores Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria (1999, p. 84), "a justiça é o princípio que garante a relação equânime, justa e universal dos benefícios dos serviços de saúde. A justiça sempre foi vista como parte da consciência da cidadania e luta pelo direito à saúde".
O princípio da justiça alvitra a distribuição dos riscos e dos benefícios de maneira justa, proporcionando o acesso igualitário aos serviços de saúde para as pessoas que deles necessitam, a despeito de suas contendas, de modo que tenham a mesma terapêutica, posto que ponderar quem a priori carece mais é um meio de atingir a equidade e, consequentemente, a justiça.


1.3. O Biodireito


Os sucessivos progressos advindos das evoluções biotecnológicas e biomédicas têm acarretado uma série de discussões e até problemas no sistema jurídico, exigindo deste, soluções jurídicas para dissolver os conflitos causados por estas inovações, não dantes controvertidos pela legislação vigente.
Assim sendo, a necessidade de soluções jurídicas trouxe consigo o anseio pela congregação de normas consagradas que versassem sobre conflitos morais da vida para a resolução dos problemas atraídos pelos avanços técnico-científicos, posto que a Bioética não conseguiu por si só, dirimir a subversão causada por estes progressos que vem sempre apresentando fatos inusitados que provocam os vários campos das ciências humanas, inclusive o Direito.
À luz das reflexões de Heloísa Helena Barboza e Vicente de Paulo Barretto:

A construção de uma racionalidade que procure justificar universalmente alguns direitos e a consequente responsabilização por atos que infrinjam essas normas, supõe o reconhecimento de que existem para além do direito positivo um conjunto de valores que devem justificar-se e sobre os quais podem ser formulados direitos, ainda não considerados pelo direito positivo (2001, p. 65).


Neste ínterim, a inovação científico-tecnológica possui a capacidade de realizar intensas e rápidas transformações no modo de vida da humanidade, o que conduz às novas situações e relações não previstas no ordenamento jurídico, demandando cada vez mais do aplicador do Direito uma deliberação político-jurídica, ou seja, uma preferência por valores morais fundamentais contemplados nas normas.
Ainda sobre este contexto, Reinaldo Pereira e Silva assevera:

A originalidade programática do Biodireito está no reconhecimento de que a dimensão operacional do direito não deve se nortear, pura e simplesmente, pelo critério da validade formal; o Biodireito (...) expressa o compromisso operacional com a validade substancial, isto é, com a ?validade ética?(2001, p. 104).


No mais, a intervenção da medicina e da biologia proporcionou algumas mudanças no cenário natural, de forma que a reprodução humana passou ter a possibilidade de ser assistida, o sexo se tornou passível de mudança, os órgãos puderam ser transplantados, a morte pôde ser adiada com o prolongamento da vida, dentre outras. Destarte, contíguo a este novo cenário nasceu o Biodireito.


1.3.1. Os Princípios Gerais e Específicos do Biodireito


A indigência de instituir normas que regulamentassem e acompanhassem os avanços biotecnológicos, tornou propício o despertar do Biodireito. No entanto, para estudá-lo se faz essencial reconhecer os princípios que foram fundamentais para sua instituição, tendo-se em vista que possui reflexos da Bioética e tutela direitos inerentes às presentes e futuras gerações que habitam em um Estado Democrático de Direito.
As normas jurídicas podem ser classificadas em regras e princípios e, no âmbito do Biodireito, observa-se uma grande incidência de princípios fundamentais, podendo, a atuação principiológica, ser identificada no plano da justificação e da aplicação, para a efetivação da justiça.
No plano da justificação, os princípios tendem a auxiliarem a interpretação das regras, justificando a formação e aplicação destas. São intermediários que norteiam todo o sistema jurídico. Enquanto que no plano da aplicação, observa-se que os princípios são aplicados de forma imposta, no desígnio de deliberar um fato (NAVES, 2002, p. 137).
É imperioso atentar para o fato de que os princípios constitucionais podem colidir entre si, demandando do intérprete discrição para que possa prevalecer o princípio de maior relevância diante dos fatos a ele apresentados. É de grande valia esta adequação no bom emprego dos princípios ao caso fático, posto que "os princípios fornecem indicações gerais de comportamento, mas é o valor ético do bem da pessoa como fim último a ser atingido que confere o sentido último da ação" (SGRECCIA, 1996, p. 168). Portanto, entende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o princípio da beneficência, jamais podem ser circunscritos.
O princípio da dignidade da pessoa humana além de consistir em um princípio constitucional, ou seja, expresso na Constituição Federal de 1988, é um dos mais importantes na ciência do Direito.
Neste diapasão, José Afonso da Silva registra sobre o princípio tratado acima que:

Poderíamos dizer que a eminência da dignidade da pessoa humana é tal que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valos supremo, princípio constitucional fundamental e geral que inspiram a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a Poe como fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do país, da democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional (1998, p. 92).


O Biodireito do mesmo modo apresenta o princípio da igualdade em sentido material das pessoas humanas, o qual fundamenta todo o ordenamento jurídico brasileiro, posto que trata de um dos direitos fundamentais essenciais, qual seja a isonomia. Este princípio busca respeitar cada ser humano em suas excentricidades, procedendo para com cada um de maneira isonômica na medida de suas multiplicidades.
Nos dizeres de Cláudia Lima Marques, Maria Cláudia Cachapuz e Ana Paula da Silva Vitória:

A igualdade é uma meta-narrativa da modernidade, mas a pós-modernidade tende a destacar o que há de ?diferente? e ?privilegiador? nestes novos direitos humanos, permitindo a desigualdade formal para atingir a igualdade material, mas também a desigualdade material e formal (1999, p. 27).


O princípio da justiça social e do solidarismo também constituem princípios norteadores do Biodireito, o qual prevê a edificação de uma sociedade solidária e justa, desprovida de quaisquer tipos de preconceitos e discriminações, proporcionando o bem a todos que dela façam parte.
Outros princípios do Biodireito podem ser enfatizados, quais sejam: o princípio do pluralismo, posto que a República Federativa do Brasil, ao constituir-se em Estado Democrático de Direito, perfilhou como fundamento o pluralismo político, reconhecendo, tacitamente, a multiplicidade de valores e opiniões; o princípio da democracia que assevera a cada cidadão o direito de deliberar os caminhos de seu país tanto nas questões políticas, quanto nas questões éticas; o princípio da liberdade, assim como todos os outros um princípio constitucional, o qual anseia pela compleição de uma sociedade livre.
O Biodireito é dotado de um princípio que se encontra intrinsecamente ligado a um dos assuntos tratados neste estudo, a reprodução humana medicamente assistida, tal qual o princípio da paternidade responsável, diretamente perpetuado ao princípio do melhor interesse da criança.
Neste contexto, Sérgio Ferraz (1991, p. 27) exprime: "a constituição da prole só é desejável quando os pais, naturais ou artificiais, têm condições de todo gênero (inclusive econômicas) para garantir a vida, a criação, a manutenção, a saúde e a educação dos filhos".
Já foi visto nesta pesquisa que a dignidade da pessoa humana é o princípio primordial na fundamentação e sustentação da Bioética, do Biodireito e em praticamente todos os campos do Direto.
Neste ínterim, em se tratando do Biodireito, tal princípio se distende no princípio da identidade biológica pessoal e da sua intangibilidade, o qual permite que o ser humano aprecie todos os acontecimentos saudáveis ou não que ocorrem em seu organismo, facultando-o o direito de intervir nos atos médicos para que, desta forma, possa resguardar sua integridade.
No mais, o Biodireito procura integrar os valores morais, éticos e culturais aos avanços biotecnológicos e biomédicos, com baldrame em seus princípios congraçados e em concordância com os princípios bioéticos, para que as exigências sociais e individuais do homem em relação a este contexto possam ser devidamente atendidas.


1.3.2. Biodireito e Direito Constitucional


O Direto Constitucional absorve as diretrizes políticas e jurídicas fundamentais de um Estado. Fato que configura a este a característica de ser o principal ramo do Direito, posto que é a partir dele e respeitando-o que as demais searas jurídicas se fundamentam, inclusive o Biodireito.
Os Direitos Humanos, salvaguardados pelo referido instituto no rol dos direitos e garantias fundamentais, devem ser reverenciados pelo Poder Legislativo, de forma a evitar que sejam sancionadas normas aptas a beneficiar interesses individuais e a ferir as garantias constituídas pela Carta Magna em prol dos componentes do Estado, limitando, deste modo o Poder Estatal.
A Constituição Federal de 1988, apesar de positivar assuntos inerentes aos procedimentos científicos feitos em seres humanos, tais como os direitos à vida, à saúde e à integridade física, os quais devem ser respeitados pelos institutos infraconstitucionais, a mesma preleciona que as práticas de qualquer profissão ou ofício sejam realizadas de forma descomedida, asseverando a liberdade no exercício da ciência e atribuindo aos profissionais desta seara restrições pertinentes às suas técnicas.
Enfim, conclui-se que o Biodireito, apesar de aventar matérias de tamanha relevância, como o direito à vida, à liberdade, à saúde e ao livre exercício da profissão, encontra-se em estado de subordinação quanto ao Direito Constitucional, devendo aquele observar as restrições deste.









CAPÍTULO II

AS TRANSFORMAÇÕES JURÍDICAS E SOCIAIS PROPORCIONADAS PELOS PROGRESSIVOS AVANÇOS BIOTECNOLÓGICOS, EM ESPECIAL, A REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA


2.1. A Reprodução Humana Assistida e o Direito Comparado


2.1.1. O Direito Comparado e sua acuidade com os Institutos Legislativos Nacionais


Após as considerações feitas neste estudo que trouxe à baila a Bioética e, em especial, o Biodireito, faz-se essencial estudar a repercussão ética e jurídica da reprodução humana medicamente assistida após a morte, pertinente aos direitos de sucessão, à filiação e outros tantos questionamentos sob o âmbito do direito comparado.
No entanto, este estudo deve ser realizado de forma bastante ampla e não disjuntivamente em cada país, tendo-se em vista que cada qual é dotado de características econômicas, políticas, históricas, geográficas, culturais, sociais, morais e religiosas dessemelhantes, posto que estas devem ser sopesadas para que se tenha uma compreensão mais graduada sobre a matéria, respeitando os valores consuetudinários e as diferenças próprias de cada pessoa dentro do ordenamento jurídico e da realidade social em que se encontra inserida.
Neste ínterim, ressalte-se:

(...) o aproveitamento da experiência do direito estrangeiro para o aperfeiçoamento e desenvolvimento do direito nacional não deve ser feito de maneira acrítica; ao contrário, tal trabalho somente será valioso se for realizado através de uma boa crítica, "que saberá escoimar o produto importado daquilo que não é adaptável às condições estranhas ao meio próprio e originário" (PEREIRA, p. 8 apud GAMA, 2003, p. 193).


À luz das acepções de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, pode-se dizer que:

No contexto da sua concepção atual, o direito comparado se iniciou propriamente no ano de 1900, em Paris, por ocasião da realização do Congresso Internacional de Direito Comparado, promovido pelos franceses Édouard Lambert e Raymond Saleilles, tendo como pontos centrais os valores do progresso e da informação, e como objetivo primordial a promoção do droit commun de l?humanité. Havia deste modo, a crença na unificação dos sistemas jurídicos que, no entanto, foi afastada diante dos acontecimentos históricos mundiais envolvendo principalmente os conflitos armados entre alguns povos e nações, a gerar o descrédito acerca da possibilidade da construção do direito comum da humanidade. Apesar da perda do objetivo originariamente cogitado, o direito comparado se desenvolveu, com objetivos mais modestos e baseado em outros valores, porquanto sempre foi considerado de grande utilidade e ao mesmo tempo, necessário para outros fins (...) (2003, p. 180).


No entanto, referindo-se ao método comparatista, o doutrinador Guilherme Calmon Nogueira da Gama expõe:

A atividade comparatista realizada com base nos sistemas jurídicos é tão antiga como a própria ciência do direito, como se pode observar, por exemplo, pelo estudo realizado sobre as cento e cinquenta e três constituições que existiram na Grécia Antiga e nas terras dos bárbaros, e que serviram de fonte para Aristóteles escrever sua obra sobre a Política, ou pela comparação entre o direito romano e o direito canônico na Idade Antiga. Contudo, tal atividade não tinha caráter científico para o Direito, porquanto durante vários séculos a ciência do direito tinha por objetivo descobrir os princípios, regras e soluções de um direito ideal, ora por vontade divina, ora por vontade da natureza, ora diante da razão humana. A ciência do direito não estava associada ao estudo dos direitos positivos dos vários sistemas jurídicos existentes, sendo que nas universidades a preocupação era com o ensino da vraie science du droit, o método pelo qual se poderiam alcanças as soluções justas em qualquer território ou momento histórico: o estudo do direito romano e o do direito canônico que eram apresentados como o direito comum do mundo civilizado. Foi necessário aguardar a chegada do século XIX e, especialmente nos países da tradição jurídica do civil law, a derrocada do direito comum com as codificações nacionais, para que a noção de um direito de valor universal se esvaziasse e, assim, abrisse oportunidade para o surgimento, mais adiante, do direito comparado ante a necessidade de se analisarem outros sistemas jurídicos, fruto do crescimento e desenvolvimento de relações sociais e internacionais, desde então. Atualmente, destacam-se várias funções do direito comparado, entre elas a dos juristas poderem melhor conhecer e entender o seu próprio direito, as de aperfeiçoar ou modificá-lo e, ainda, a de estabelecer, em conjunto com juristas de outros países, regras jurídicas de direito substantivo e de direito adjetivo de Direito Internacional Público e Privado (2003, p. 183-184).


O direito comparado apresenta amplos motins doutrinários no que se faz alusão à sua natureza, de maneira que alguns doutrinadores classificam-no como sendo um método e não uma ciência independente, na medida em que consiste em uma técnica justaposta ao direito por meio de uma comparação da legislação nacional com a legislação de outros países sobre determinada matéria.
Nesta conjuntura, demais doutrinadores, em acepção diversa, caracterizam o direito comparado como uma ciência autônoma, posto que é dotado de objetivos, métodos, conceitos e resultados próprios, valendo-se da colação para a confecção de um novo ordenamento jurídico ou para a adequação de uma legislação já existente em um determinado país onde o exercício comparatista estiver sendo aplicado.
Para que os ordenamentos estrangeiros sejam adequadamente e facilmente identificados e estudados, bem como em razão de sua abastada diversidade de direitos e legislações, o direito comparado relaciona seus institutos jurídicos agrupando-os em famílias, ou tradições, as quais são classificadas de acordo com alguns critérios e pontos em comuns como, por exemplo, a localização do país, a cultura, a religião, dentre outros.
Em meio a estas famílias ou tradições jurídicas depara-se com três principais, quais sejam a romano-germânicas (civil law), a anglo-saxã (common law) e as socialistas.
Deste modo, referindo-se ao campo das tradições jurídicas, Guilherme Calmon Nogueira da Gama coloca o Brasil como sendo:

(...) influência do direito germânico e do direito estadunidense na edificação de vários institutos e postulados jurídicos em inúmeros segmentos do direito, sendo que sob o prisma dos valores e elementos fundamentais os ordenamentos jurídicos, famílias e subfamílias dos países do Ocidente têm inúmeros pontos em comum, como a religião cristã, a cultura ocidental e o pensamento filosófico que se constituiu com o Renascimento, que resultaram em ideias e princípios como o liberalismo, a noção de direitos subjetivos, o individualismo, entre outras. No que toca especialmente ao Direito de Família, é importante destacar a notável influência da Religião ? inclusive nos países do Ocidente, devido à marcante atuação da Igreja Católica ?, e também o relevante papel desempenhado pelas diversidades culturais na história da civilização humana (2003, p. 185-186).



2.1.1.1. Os aspectos jurídicos da Reprodução Humana Assistida no Brasil sob a perspectiva do Direito Comparado


Os reflexos trazidos pela nova realidade científica no campo da reprodução humana têm despendido dos profissionais do direito, bem como dos doutrinadores e intérpretes desta ciência, a aplicação da legislação comparada e uma maior compreensão e interdisciplinaridade com outras ciências correlatas como a sociologia, a biologia, a medicina, a política, a ética e a psicologia.
Sem dúvida, essa transposição social, jurídica e científica tem ocasionado perplexidade e dúvidas nas relações jurídico-familiares, interferindo, por consequência, no conceito de ser humano, de personalidade jurídica e nas relações de parentesco designadas há séculos.
No que se faz alusão à matéria da reprodução humana medicamente assistida, tem-se razões para dizer que é tratada de forma abastada pela legislação comparada, posto que há uma grande diversidade de países que se ocupam em cuidar do assunto, trazendo à luz uma interdisciplinaridade de ciências humanas e biológicas para fins de ordenar as dissidências éticas e jurídicas no que se refere às concessões, aos limites e às consequências de tal prática, apresentando, para tanto, determinadas posições e aspectos diferentes sobre este idêntico assunto.
Atento a esta feição, a entidade familiar percorreu os séculos segundo descrição de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

A família é uma entidade histórica, tão antiga quanto à própria civilização humana e, como tal, acompanhou todo o desenvolvimento da história dos povos, modificando-se de acordo com as mudanças das estruturas e modelos da sociedade nos seus diversos campos: político, econômico, social, religioso, cultural, entre outros. Tais circunstâncias explicam a diversidade de modelos e formatos que a família apresentou no decorrer dos tempos, sendo certo que as influências e condições políticas, econômicas, sociais, culturais e religiosas sempre produziram no reconhecimento da família jurídica, ou seja, a família inserida num determinado momento histórico e no sistema jurídico em vigor à época. É oportuno ressaltar que, após todo o percorrer da família na história da civilização humana, especialmente nos países do Ocidente, atualmente atingiu-se o estágio do modelo eudemonista que é representado pela incessante busca da felicidade pessoal por cada m dos seus integrantes na própria família ou por meio dela (GAMA, 2003 p. 216 apud HIRONAKA, 2000, p. 19).


Faz-se mister ressaltar que o Brasil se sirva do direito comparado para desenvolver a legislação brasileira trazendo à baila o tema da reprodução humana medicamente assistida que, hodiernamente, não se encontra amparada pelo texto legislativo deste país, a despeito de ser uma técnica bastante utilizada no Brasil, em casais que por alguma razão biológica não podem ter filhos ou por mulheres que não possuem um companheiro, mas ensejam auferir a filiação, mesmo que independente.
Entretanto, ao considerar a matéria supracitada, deve-se levar em consideração os aspectos fundamentais advindos da relação entre pais e filho, ou melhor, da relação de família, tendo-se em vista seus intensos laços afetivos, transcendentais à própria sociedade, cultura, religião e até mesmo ao ordenamento jurídico.
O mesmo doutrinador, ao tratar do ordenamento jurídico brasileiro, em especial do Código Civil de 1916, em face do direito comparado, expõe:

O direito brasileiro, filiado à tradição romano-germânica, à época da elaboração do Código Civil de 1916, foi profundamente influenciado pela estrutura e pelo conteúdo do Codé Civil na construção das normas legais a respeito da família jurídica, o que, por exemplo, fez com que não fosse considerado o modelo extramatrimonial de família não apenas no que se refere às uniões sexuais não fundadas no casamento, mas também à filiação extramatrimonial. Os dois pontos cardeais na construção jurídica do direito brasileiro em matéria de família foram: o patrimônio e a paz familiar. Daí a justificativa para a constatação de que a maioria esmagadora dos dispositivos do Código de 1916 dizia respeito a algum aspecto ou interesse existencial de outro familiar que não o chefe da entidade. Desde já cabe antecipar que tal quadro normativo sofreu relevante e radical transformação no curso do século XX, não apenas no direito brasileiro, mas também no de outros países, valendo observar, em vários deles, a importância da Constituição editada no âmbito das relações jurídico-familiares, a alterar, sobremaneira, a estrutura, os modelos, os perfis e o conteúdo das famílias atualmente reconhecidas pelo direito, não sendo possível desconsiderar, também, a relevância de Atos Internacionais pós-Segunda Guerra Mundial (...), já que foi observado, por motivos óbvios, que a maior parte da população integrava organizações familiares (...) que não detinham riqueza imobiliária e, portanto, não representavam uma organização sustentada pelo intercâmbio de afetos e sentimentos, revelando que o aspecto econômico não deve ser priorizado nos dias atuais (GAMA, 2003, p. 217-218).


Entretanto, ao exercer a atividade comparatista na seara da reprodução humana assistida, deve-se atentar ao caráter pátrio do Direito de Família, tendo-se em vista que cada país possui uma história e uma identidade própria.
No mais, a entidade familiar insere na sociedade como sendo de grande acuidade, na medida em que se caracteriza como o baldrame do homem enquanto ser social, religioso, político, ético e moral. Aspectos estes que incidem diretamente nas particularidades de cada nação, especialmente em suas transformações sociais.


2.2. Os Acondicionamentos sobre a Filiação e a Entidade Familiar no Brasil, alvitrados pelo Código Civil e pela Constituição da República Federativa


2.2.1. As transformações no Direito Civil de 1916, mais especificamente do Direito de Família, advindas da Constituição Federal de 1988


O Código Civil instituído no direito brasileiro em 1916 apresentou uma acepção da entidade familiar inteiramente edificada no matrimônio, de modo que a família jurídica só era reconhecida se a união fosse pautadamente formalizada pelo casamento, mesmo que os consortes desfizessem faticamente a união e não habitassem mais a mesma morada.
Portanto, mesmo os companheiros vivendo em união, tendo filhos, compartilhando bens e afetos, não eram amparados juridicamente, tendo-se em vista que não haviam contraído a instituição do casamento. Do mesmo modo, os filhos concebidos de relações constituídas fora do matrimônio não eram reputados legítimos pelo ordenamento.
Entretanto, a perspectiva apresentada pelo Código Civil de 1916, no que se faz menção ao conceito de casamento enquanto instituto jurídico, social e afetivo, bem como ao reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento e à caracterização da entidade familiar, sofreu abastadas e significativas transformações com a instauração da Constituição Federal de 1988 que intensificou os laços sanguíneos
Neste ínterim, o texto constitucional de 1988 perfilhou a igualdade entre os filhos que a partir de então passaram a ser protegidos pela lei, tendo seus direitos resguardados pelos efeitos que o hodierno ordenamento os estenderam, posto que o matrimônio deixou de ser requisito essencial para as considerações cominadas aos vínculos e aos direitos atribuídos pela paternidade, maternidade e filiação, como também os atribuídos pelas relações extra matrimoniais.
À luz das ponderações perpetradas pelo doutrinador Guilherme Calmon Nogueira da Gama, trazendo à baila as alterações conferidas pela Constituição Federal de 1988 explanadas anteriormente, faz-se essencial glosar:

As mudanças operadas no âmbito das relações familiares no sistema jurídico brasileiro pós-Constituição de 1988, especialmente com a possibilidade do divórcio como forma de romper o vínculo matrimonial, a diminuição dos prazos para fins de separação judicial e divórcio, a igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges e dos companheiros, a igualdade material entre os filhos, a proibição de emprego de qualificações discriminatórias a respeito da filiação, a proteção integral e absoluta da criança e do adolescente, o reconhecimento de outros modelos de família alem da matrimonial ? entre outras mudanças ? demonstram o deslocamento que os institutos de Direito de Família sofreram para a emocionalidade ? afetividade ?, fazendo com que as famílias somente possam ser tuteladas e, consequentemente, se manter, se forem fundadas na vontade contínua e permanente (2003, p. 385-386).

O aludido jurisconsulto, em sua mesma obra, acrescenta:

De acordo com a evolução do Direito de Família no século XX, alguns fenômenos têm se verificado, e influenciado pontualmente as mudanças: a) a estatização, ou seja, a crescente ingerência do Estado nas relações familiares; b) a retração, no sentido da substituição do modelo de família extensa, do tipo patriarcal, pelo modelo de família nuclear, constituída do pai, da mãe e dos filhos menores; c) a matrimonializado, a saber, a mudança do caráter das relações patrimoniais da família, determinante da diminuição da importância do seu aspecto econômico, dando maior ênfase a aspectos de natureza existencial, como se constata nas relações de tipo alimentar; d) a democratização, ou seja, a tendência em transformar a organização familiar num grupo societário do tipo igualitário, cujo processo acompanha a emancipação dos personagens familiares, como a esposa e os filhos menores; e) a responsabilização e a desencarnação, representando a substituição do elemento carnal (ou biológico) pelo elemento psicológico (ou afetivo) e a conscientização de que na formação do homem deve-se atribuir maior valor ao sentimento, à convivência saudável, à educação do que à hereditariedade; f) a dessacralização do casamento, no sentido de retirar os privilégios odiosos da instituição matrimonial, aproximando-a da realidade sociológica, daí a maior facilidade na dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, a admissão do companheirismo como realidade jurídico-familiar e a indistinção entre filhos matrimoniais e extramatrimoniais. Tais fenômenos foram perfeitamente apreendidos no texto constitucional de 1988, e se notabilizam por viabilizarem as transformações do Direito de Família, fundamentadas naquilo que a civilização humana tem de melhor; a esfera afetiva, espiritual, existencial e psíquica de todos os familiares (GAMA, 2003, p. 386-387).


Neste diapasão, é visivelmente compreendido que o Direito de Família brasileiro sofreu alterações e influências essenciais da Carta Magna e de seus princípios, auferindo mais rigidez em suas relações familiares que passam a valorizar com intensidade os laços afetivos por elas proporcionados e a realidade fática destas, bem como a dignidade da pessoa humana, a boa convivência e o bem-estar individual das pessoas que nelas encontram-se inseridas, ou melhor, envolvidas.
Destarte, a perspectiva da exclusão de direitos gerados ao nascituro, ao adotivo e à prole eventual viola os princípios da igualdade, da dignidade humana e do melhor interesse da criança.
Deste feita, o reconhecimento de amplos direitos à criança nascida ou não, por fecundação póstuma ou não, respeita a Constituição Federal à medida que o legislador se preocupou com a dignidade das pessoas e a proteção da família.
Nesta seara, ressalta Paulo Luiz Netto Lôbo:

Não se permite que a interpretação das normas relativas à filiação possa revelar qualquer resíduo de desigualdade de tratamento aos filhos, independentemente de sua origem, desaparecendo os efeitos jurídicos diferenciados nas relações pessoais e patrimoniais entre pais e filhos, entre irmãos e no que concerne aos laços de parentesco (2003, p. 40).
Trazendo à baila o Princípio da Equiparação de Todos os Filhos esculpido pela Constituição, as implicações atinentes à filiação se estenderam a todos os filhos, arrogando-lhes tratamento isonômico, independentemente da origem dos laços que os unem aos seus pais, sejam biológicos ou simplesmente afetivos.


2.2.2. O direito ao Planejamento Familiar instituído pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988


As transformações ocorridas na história da civilização no que se faz referência aos aspectos sociais, culturais e científicos, proporcionaram à ciência do direito, por intermédio do conhecimento humano, o prestígio de valores e perspectivas não dantes identificadas. Dentre estas mudanças, a mulher conquistou espaços na sociedade que a ela nunca foram inerentes, participando ativamente da sociedade, da política e até da economia da nação.
Neste impasse, o ser feminino, hodiernamente, participa do mercado de trabalho em pé de igualdade com o homem, assim como detém a autonomia de sua entidade familiar ao mesmo tempo e/ou do mesmo modo que o homem.
Neste contexto social, o poder de família concentrado nas mãos exclusivas da figura masculina entrou em decadência, de forma que o matrimônio ou a simples união passou a ter um significado antagônico no sentido de vincular esta relação à afetividade, ao companheirismo, à vontade de cada partícipe compondo o bem-estar e a felicidade da entidade familiar como um todo, afastando assim, o caráter patrimonialista que era conferido ao instituto da família.
Como já foi dito, os progressos não ocorreram tão-somente na cultura e na sociedade, eles incidiram também no campo da ciência e da tecnologia, mais especificamente, como tratado neste estudo, no palco da biotecnologia.
Deste modo, os desenvolvimentos da seara científica como reflexo direto da nova sociedade, incidiram sobremaneira na reprodução humana, proporcionando aos casais, prioritariamente, às mulheres a autonomia diante da filiação, tendo-se em vista que foram assoalhados e desenvolvidos métodos conceptivos e contraceptivos.
À luz destas considerações, o desenvolvimento de técnicas que possibilitam a concepção e a contracepção da vida, consentiu e atribuiu ao ser humano o direito de constituir uma família planejada, ou seja, o direito de controlar a sua prole no aspecto quantitativo e o momento oportuno para que cada um fosse concebido.
No entanto, para que o planejamento familiar seja feito alguns preceitos, dispostos no ordenamento jurídico, devem ser considerados, como a dignidade da pessoa humana, o acesso a técnicas seguras e admissíveis de reprodução, dentre outros.
Por oportuno, o doutrinador Guilherme Calmon Nogueira da Gama preceitua a propósito do texto constitucional:

A Constituição da República brasileira de 1988, em alguns dispositivos, de maneira direta ou indireta, trata do tema envolvendo os direitos reprodutivos e, neste contexto, o direito ao planejamento familiar. Assim, podem ser enunciados alguns dispositivos constitucionais de relevo neste tema: a) o artigo 1º, incisos I e II, que prevê a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República brasileira; b) o artigo 3º, incisos I, III e IV, que se refere à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, à erradicação da pobreza e da marginalização, e à promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como os objetivos fundamentais da República; c) o artigo 4º, inciso II, que prevê o principio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, mas também, por lógica e coerência, nas relações internas; d) o artigo 5º, caput e incisos I e X, especialmente, que trata do princípio e direito à igualdade entre as pessoas, especialmente entre homens e mulheres, e do direito à intimidade, à privacidade, à honra, e à imagem, entre outros bens que se relacionam ao exercício dos direitos reprodutivos e sexuais; e) o artigo 5º, § 2º, que prevê a encampação de outros direitos fundamentais implícitos e aqueles reconhecidos em Tratados e Atos Internacionais que tenham sido assinados pelo Brasil; f) os artigos 196, 201 e 203, que asseguram o direito à saúde, à proteção especial à gravidez, à maternidade, e à assistência social, com caráter de universalidade; g) o artigo 226, § 7º, que prevê o direito ao planejamento familiar (2003, p. 446-447).


No mais, Regina Fiuza Sawen e Severo Hrynyzwicz expõem:

Os grandes impactos que a revolução biotecnológica provoca sobre o Direito atual dizem respeito, sobretudo aos seguintes itens: o sentido da procriação, os fundamentos da filiação, as estruturas familiares e a especificidade e intangibilidade dos seres humanos (1997, p. 35).


Conclui-se, portanto, que o direito ao planejamento familiar constitui prerrogativa expressa da Carta Magna, sendo, consequentemente, inerentes a ele as responsabilidades do Estado, que o atribuiu à pessoa, em proporcionar as condições essencialmente saudáveis e de fácil ascensão da concepção e contracepção, de modo que a família seja planejada segundo seus interesses particulares, como também possibilitar posteriormente à percepção da prole, o acesso à saúde, à educação, a um modo de vida seguro e saudável dentro do contexto social em que se encontra.
2.3. Aspectos gerais da Reprodução Humana Medicamente Assistida


2.3.1. Aspectos médicos


A propagação alvitrada pelos estudos científicos no campo da contracepção proporcionou ao homem e à mulher a possibilidade de intervir na procriação, bem como a liberdade para determinar, de modo individual e incisivo, sobre questões inerentes à filiação, como a quantidades de filhos que se quer ter e o momento ideal para concebê-los.
Desta feita, a pretensão de compor a prole recebeu atributo de ato consciente e responsável tanto para o genitor, quanto para a genitora.
Destarte, no que é concernente às práticas de concepção estabelecidas pelas novas técnicas de reprodução advindas do desenvolvimento da biotecnologia, foi conferido ao ser humano a cura e/ou a solução para os casos de esterilidade ou infertilidade feminina e masculina, ensejando a procriação.
Trazendo à baila os métodos de reprodução assistida no Brasil, o doutrinador Guilherme Calmon Nogueira da Gama expõe:

(...) No Brasil, como se sabe, o Conselho Federal de Medicina baixou a Resolução n° 1.358/92, passando a adotar um conjunto de normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida e, dentro de seu campo de atuação, agiu corretamente. No entanto, tal corpo de regras não possui caráter vinculante, especialmente no sistema jurídico brasileiro, em respeito ao disposto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, daí mais uma vez a premente necessidade da edição de lei referente ao tema. Há no entanto, alguns reflexos das normas previstas na Resolução não na topografia normativo-legal do sistema jurídico, mas como fonte de norma consuetudinária (2003, p. 649).


Neste ínterim, é nitidamente compreendido que enquanto o Direito brasileiro caracteriza espermatozoides e óvulos como sendo materiais desprovidos de personalidade jurídica e, portanto, também carente de direitos e guarida legislativa; as ciências biológicas, no aspecto médico, consideram-nos vida em potencial, defendendo a acuidade em doá-los, posto que óvulo e espermatozoide unidos e inseridos no útero da mulher passam a ser chamados de nascituro, o qual se encontra amparado pelo ordenamento jurídico brasileiro, juntamente com seus direitos que por ele estão resguardados.

2.3.2. Aspectos religiosos


Como é sabido, os países ocidentais, assim com o Brasil, é amplamente influenciado pela religião, sendo que no ocidente a entidade religiosa predominante é a Igreja Católica, a qual detém poder para atuar e interferir diretamente no contexto econômico e social de cada país que se encontra sob seu domínio.
No que se refere à matéria da reprodução assistida, o Código Canônico se manteve inerte, porém, Guilherme Calmon Nogueira da Gama propõe:

(...) A respeito da inseminação artificial homóloga, não há previsão de proibição no cânone 1.055, pois não existe qualquer referencia acerca da modalidade através da qual a procriação pode ser legitimamente obtida, o que gerou algumas manifestações no sentido da admissibilidade da técnica conceptiva endógena. No entanto, a inseminação homóloga post mortem é totalmente descartada, ainda que o falecido tivesse manifestado seu consentimento em vida, pois a morte rompe a comunidade de vida. Quanto à inseminação heteróloga, a questão se mostra mais complexa diante da convicção da Igreja Católica de que a procriação deve ser fruto exclusivo dos cônjuges, não sendo possível a interferência de um terceiro. Em 1978, o Papa João Paulo I, ao se manifestar sobre o nascimento do primeiro "bebê de proveta", disse que não tinha como condenar os pais e, ao contrario, os congratulava especialmente por terem agido de boa-fé e com intenções puras. (...) Entretanto, (...) a posição assumida pela Congregação para a doutrina da fé que, em 1987, (...) considerou inaceitável qualquer prática relacionada ao congelamento de embriões para futura gestação ou experiências, ao diagnóstico pré-natal, à fertilização in vitro, bem como à maternalidade-de-substituição. Assim, a esterilidade continua sendo encarada pela Igreja Católica de maneira fatalista, como se o casal devesse se resignar com os destinos que a natureza lhe reservou (2003, p.657-658).


Neste diapasão, a Igreja Católica se ocupou em tomar posicionamentos contrários acerca dos avanços científicos advindos das técnicas de reprodução humana medicamente assistida, ressaltando o ideal de que a vida humana só poderia ser gerada através da conjunção carnal, entre o homem e a mulher que houvessem se submetido ao instituto do casamento.


2.3.3. Aspectos psicológicos


Ao estudar a reprodução humana medicamente assistida, se faz essencial considerar não somente seus aspectos médicos e religiosos, como também seus aspectos psicológicos, tendo-se em vista que tal prática causa mudanças expressivas na vida dos seres humanos que ao optarem por submetê-la já se encontram em momentos inoportunos e difíceis.
À luz do que fora explanado acima, tem-se como exemplo a descoberta de esterilidade ou infertilidade impossibilitando a procriação por meio do contato sexual, em alguns casos tendo que aceitar a concepção através de gametas doados por um terceiro, o óbito do companheiro com o qual não obteve filhos, dentre outros casos.
Neste sentido, faz-se importante ressaltar a precariedade do procedimento da reprodução assistida, de modo que este consiste em um método relativo, não garantidor do êxito, causando nos casos de insucesso ainda mais frustrações psicológicas aos pacientes quanto à incapacidade de disseminar sua descendência.
No mais, é possível destacar alguns aspectos psicológicos inerentes à criança concebida como, no caso da inseminação artificial post mortem, o fato da eventual prole se desenvolver sem o amparo e o conhecimento de um dos genitores, tendo-se em vista que foi concebida após seu falecimento, como também o fato de revelar ou não o processo realizado para que sua concepção fosse admissível.
Entretanto, vários são os cuidados pertinentes à psicologia ao tratar da reprodução humana medicamente assistida e, principalmente, dos seres humanos que a ela encontram-se submetidos, bem como da vida em potencial que dela pode ser gerada.























CAPÍTULO III

OS EFEITOS JURÍDICOS DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM E OUTRAS CONSIDERAÇÕES


Fora exposto pelo desembargador aposentado do TJRS e professor das Escolas da Magistratura e do Ministério Público, José Carlos Teixeira Giorgis, o seguinte relato:

Em agosto de 1981, Corine Richard encontrou o amor no jovem Alain Parpallaix, passando a conviverem. Poucas semanas depois da união surgiram sintomas de câncer nos testículos de Alain, que antes de submeter-se à quimioterapia, que o ameaçava com a esterilidade, optou em depositar seu esperma numa clínica de conservação de sêmen, para uso futuro.
Corine e Alain casaram-se in extremis, mas dois dias depois da cerimônia o varão faleceu; alguns meses depois Corine compareceu à clínica para ser inseminada com os gametas de seu finado esposo, mas os responsáveis pela empresa recusaram o pedido, por falta de previsão legal.
A jovem bateu às portas do Tribunal de Créteil, França, onde se discutiu a titularidade das células e a existência de um contrato de depósito que obrigaria o centro a restituir o esperma, alegando os médicos que não se cuidava de pacto de entrega, na medida que o material da pessoa morta é uma coisa fora do comércio e no território francês não havia lei que autorizasse a fecundação póstuma.
Depois de longo debate, a decisão do tribunal condenou a clínica a devolver à viúva o sêmen reclamado, impondo uma cláusula penal por eventual demora.
Infelizmente a inseminação não teve sucesso, pois os espermatozoides já não mais estavam potencializados para a fecundação (2005).


Ressalte-se que hodiernamente, casos como o narrado acima têm entrado cada vez mais em discussão nos tribunais de vários países, inclusive nos tribunais brasileiros. Posto que as agressivas evoluções biotecnológicas permitiram que as procriações artificiais tornassem meios comuns e possíveis para a concepção de filhos, mesmo nas situações em que o cônjuge varão já estiver chegado a óbito.
Não obstante, a ciência do Direito não tem conseguido acompanhar os avanços da Medicina, tendo-se em vista que a discussão supracitada atingiu amplas proporções no Brasil somente depois do Código Civil de 2002.
Por esta razão, não há normas jurídicas que dispõem expressamente sobre tais vicissitudes, em especial no que traz à baila os casos em que o procedimento, para a inseminação artificial, se inicia após o fim da vida da figura paterna da relação.
No mais, ainda quanto à inexistência de normas que regulamentam esta matéria, o professor Miguel Reale esclarece:

A experiência jurídica, como tudo que surge e se desenvolve no mundo histórico, está sujeita a imprevistas alterações que exigem desde logo a atenção do legislador, mas não no sistema de um código, mas sim graças a leis especiais, sobretudo quando estão envolvidas tanto questões de direito quanto de ciência médica, de engenharia genética, etc. exigindo medidas prudentes de caráter administrativo, tal como se dá, por exemplo, no caso da fecundação in vitro. Em todos os países desenvolvidos, tais fatos são disciplinados por uma legislação autônoma e específica, inclusive nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, nações por sinal desprovidas de Código Civil, salvo o caso singular do Estado da Luisiana na grande república do norte, fiel à tradição do direito francês.
Como se vê, a atualidade da nova codificação brasileira não pode ser negada com base em realizações científicas supervenientes, que por sua complexidade, extrapolam do campo do direito-civil, envolvendo outros ramos do direito, além, repito, de providências de natureza meta-jurídica. Isto não impede que, ao tratar da presunção dos filhos na constância do casamento, o artigo nº 1.597 se refira também aos "havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido", e haja referência a filhos "havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga", e mesmo aos "havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido" (REALE, s.d.).


Neste ínterim, pode-se dizer que a legislação brasileira ao discorrer sobre esta matéria é bastante reacionária diante da realidade social proporcionada pelos desenvolvimentos biotecnológicos que têm ocorrido na Medicina, tampouco que são facilmente percebidos os embates existentes entre as normas jurídicas que mencionam o assunto, como por exemplo, o Código Civil em relação aos seus próprios institutos, bem como em relação à Carta Magna.
À luz das informações acima expostas, é considerável ressaltar que o nosso aparato constitucional de 1988 garante, dentre os direitos fundamentais do ser humano, o direito à herança de modo em geral.
Em contraposição, o texto civilista em vigor incorre em contradições na medida em que tutela a legitimidade para suceder aos nascidos ou já concebidos no tempo da abertura da sucessão e, logo após, arroga a possibilidade de ser chamados a suceder os filhos de pessoas indicadas pelo testador que, por hora, não foram concebidos.
No mais, o legislador civilista, a despeito de não prestar maiores aprofundamentos acerca do assunto, bem como de apresentar uma posição conflitante sobre o mesmo, conjetura a possibilidade de serem chamados a suceder os filhos havidos por fecundação artificial homóloga nos casos em que o marido tiver falecido, tendo-se em vista que a legislação civil os presumem como concebidos na constância do casamento.
Por consequência, se o Código Civil de 2002 prevê a procriação artificial realizada após a morte do esposo, presumindo o fruto desta reprodução como sendo percebidos na constância do casamento, assim como prevê que só terá capacidade para suceder as pessoas já concebidas, verifica-se uma lacuna no corpo legislativo.
No mais, conforme já fora explanado, a Constituição Federal de 1988 assevera o direito à herança e, neste caso, os filhos havidos após a morte por métodos artificiais encontram-se desolados quanto à aptidão em suceder.
Para a dissolução das questões supracitadas, alguns doutrinadores propõem a presciência testamentária, ou seja, o doador do sêmen deverá indicar os filhos que ainda estarão por vir em testamento, manifestando expressamente o seu desejo. Contudo, esta tese é um tanto quanto frustrada, já que o testamento não é muito utilizado e nem obrigatório no Brasil.
Ainda sobre esse disparato, faz-se relevante dizer que nosso país constitui um Estado Democrático de Direito e, por esta razão, o ordenamento jurídico deve tutelar os direitos sucessórios e, inclusive, os direitos de filiação de uma possível prole eventual quando o autor da herança estiver chegado a óbito antes da concepção do filho, tendo-se em vista as garantias constitucionais resguardadas pelo atual sistema institucional do país.
Ainda na tentativa de dissolver o celeuma tratado, faz-se essencial ressaltar a solução para esta problemática proposta pelo jurista Lenio Streck no que se refere à adoção de regras hermenêuticas, in verbis:

Interpretar é, pois, hermenêutica, e hermenêutica é compreensão, e através dessa compreensão se produz sentido (?). Desse modo, fazer hermenêutica jurídica é realizar um processo de compreensão do Direito.
(...)
Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o direito de soslaio, rompendo-se com um(a) hermé(neu)tica jurídica tradicional-objetificante prisioneira do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência (2000, p. 198 e 227).

Por hora, outro aspecto importante a ser tratado a respeito dos efeitos jurídicos da inseminação artificial após a morte é a liberdade que a Constituição Federal de 1988 assevera aos cônjuges quanto ao direito ao planejamento familiar, em atenção aos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, assim como também confere ao Estado a aptidão legal em proporcionar meios educacionais e científicos suficientes para que este direito seja preenchido, ficando vedada qualquer minoração do mesmo.


3.1. A (im) possibilidade do reconhecimento de direitos arrogados à prole resultada de inseminação artificial homóloga, realizada após a morte do progenitor


Alguns doutrinadores se posicionam de forma contrária à possibilidade de ser autorizado que se inicie um procedimento de inseminação artificial após o óbito do progenitor, como é o caso do professor Eduardo de Oliveira Leite, que expõe:

Do ponto de vista ético, a inseminação ?post mortem? desvia o sentido mesmo da procriação artificial, negando sua razão se ser: remediar as consequências da esterilidade e da hipo-fertilidade. Além disso, a medicina poderia contribuir ao nascimento de uma criança órfã, desejada como tal pela vontade dos pais? É este o papel da medicina? Tudo indica que não (1995, p. 142).


Ainda com o mesmo posicionamento, Eduardo Oliveira Leite reforça:

A resposta negativa a um pedido dessa natureza se impõe. E isto, por diversas razões. Inicialmente, vale lembrar que tal pedido sai do plano ético reconhecido à inseminação homóloga; ou seja, se não há mais um casal solicitando um filho, nada mais há que justifique a inseminação. Num segundo momento, tal solicitação provoca perturbações psicológicas em relação à criança e em relação à mãe. Nada impede que nos questionemos se essa criança deixada pela mãe viúva não o é, antes de tudo, para preencher o vazio deixado pelo marido. Além disso, a viuvez e a sensação de solidão, vividas pela mulher podem hipotecar pesadamente o desenvolvimento psico-afetivo da criança (1995, p. 155).


Em consonância com os pensamentos do autor supracitado, quais sejam os de dissuadir a prática da reprodução humana medicamente assistida homóloga realizada após o traspasse do marido, Maria Helena Diniz, em sua obra "A ectogênese e seus problemas jurídicos", assevera:

É preciso evitar tais práticas, pois a criança, embora possa ser filha genética, por exemplo, do marido de sua mãe, será, juridicamente, extramatrimonial, pois não terá pai, nem poderá ser registrada como filha matrimonial em nome do doador, já que nasceu depois de 300 dias da cessação do vínculo conjugal em razão da morte de um dos consortes. E, além disso, o morto não mais exerce direitos, nem deveres a cumprir. Não há como aplicar a presunção de paternidade, uma vez que o matrimônio se extingue com a morte, nem como conferir direitos sucessórios ao que nascer por técnica conceptiva ?post mortem?, pois não estava gerado por ocasião da morte de seu pai genético (...). Por isso, necessário será que se proíba legalmente a reprodução assistida ?post mortem?, e, se, porventura, houver permissão legal, dever-se-á prescrever quais serão os direitos do filho, inclusive sucessórios (1995, p. 91).


O doutrinador Eduardo Oliveira Leite, em sua acepção conservadorista, assim como os demais jurisconsultos apontados acima, prescreve:

Quanto à criança concebida por inseminação post mortem, ou seja, criança gerada depois do falecimento dos progenitores biológicos, pela utilização de sêmen congelado, é situação anômala, quer no plano do estabelecimento da filiação, quer no direito das sucessões. Nesta hipótese a criança não herdará de seu pai porque não estava concebida no momento da abertura da sucessão. (?) Solução favorável à criança ocorreria se houvesse disposição legislativa favorecendo o fruto de inseminação post mortem (2003, p. 110).


Considerando que o ordenamento jurídico brasileiro, assim como já fora explanado, não tratou de conceder o completo desenvolvimento às consequências jurídicas e existenciais advindas da prática da inseminação artificial homóloga post mortem, é fato que fica arrogado aos profissionais do direito uma infinidade de interpretações quanto à condição jurídica da prole no direito de família e sucessões.



3.1.1. Os reflexos da fertilização artificial homóloga no direito de família e o reconhecimento da filiação, pertinente aos casos em que a prole é concebida após a morte do marido


No tocante aos reflexos trazidos ao direito de família através da prática da inseminação medicamente assistida post mortem, faz-se mister salientar que o texto civilista prevê a presunção de paternidade nestes casos, tendo-se em vista as modificações legislativas trazidas por este quanto às manipulações genéticas.
Desta forma, reputa-se a declaração da paternidade nestes casos, analisando-a sob o aspecto cronológico, ou seja, o reconhecimento da paternidade é concedido de acordo com o instante em que tal procedimento for inicializado, através do qual são atribuídos os direitos sucessórios, bem como os direitos de filiação.
Entretanto, a atribuição de paternidade aos filhos havidos por fecundação artificial homóloga executada após o óbito do progenitor, será tão somente motivada nos casos em que for constatado que o sêmen inseminado é realmente do de cujus e se existir a inequívoca e expressa manifestação de vontade deste, em relação ao procedimento no caso de acontecer esta fatalidade.
Por outro lado, alguns estudiosos do direito, assim como Mônica Aguiar (2005, p. 117), não são adeptos da vertente explanada acima, tendo em vista que ponderam a morte como cessadora da manifestação de vontade quanto à reprodução humana medicamente assistida post mortem, não sendo, portanto, possível presumir a paternidade, mas tão somente a maternidade ao cônjuge supérstite.
Diante das consequências relativas à impossibilidade de reconhecer a paternidade na ocasião em tela, faz-se essencial salientar a relevância da identidade genética para o homem em seu quesito existencial.
Neste diapasão, Heloísa Helena Barboza entende que a descoberta da naturalidade genética pondera como sendo "a mais legítima e concreta expressão da personalidade, a identidade genética é um direito de personalidade, assim como o nome, e tanto ou mais do que os elementos de identificação, a informação da origem genética deve ser tutelada", posto que seja percebida como "fator integrante da dignidade humana" (BARBOZA, 2002, p. 384-385 apud ALBUQUERQUE FILHO, s.d.).
De acordo com as ilações acima, expostas pela jurista supracitada, a inseminação artificial homóloga consiste na utilização de material genético dos cônjuges ou companheiros, assim como ocorre nos casos post mortem.
Destarte, tanto na primeira situação, como na segunda, há o laço sanguíneo entre os partícipes, tendo-se em vista a insignificância do momento em que o procedimento fora inicializado frente à relevância da compreensão da origem genética para a prole e, por consequência, dos seus direitos de filiação.
Neste sentido, o jurisconsulto Guilherme Calmon Nogueira da Gama, a despeito de se posicionar desaprovando a utilização da técnica após a morte, independentemente do consentimento do de cujus, resguarda o reconhecimento da filiação nesta hipótese, conforme exposto a seguir:

A despeito da proibição no Direito brasileiro, se, eventualmente, tal técnica for empregada, a paternidade poderá ser estabelecida com base no fundamento biológico e no pressuposto do risco, mas não para fins de direitos sucessórios, o que pode conduzir a criança prejudicada a pleitear a reparação dos danos materiais que sofrer de sua mãe e dos profissionais que auxiliaram a procriar utilizando-se do sêmen de cônjuge ou companheiro já falecido (2008, p. 370).


No mais, não subsistiria como justo o ato de excluir a prole de um direito que se encontra intrinsecamente ligado aos seus direitos de personalidade e de dignidade. Assim como prescreve Heloísa Helena Barboza (1993, p. 108) que "(...) a determinação da paternidade e da maternidade deve ter como pressuposto o bem do filho. Não pode o concebido, em qualquer hipótese, arcar com as consequências dos atos daqueles que engendraram seu nascimento".
Ante as ilações acima, percebe-se a impossibilidade jurídica e biológica em desprestigiar o reconhecimento da paternidade, em razão das consequências proporcionadas por esse tipo de procriação, qual seja a concepção de um filho mesmo que de forma post mortem e, tendo observado o consentimento prévio e expresso do progenitor.


3.2. O reflexo da prática da fecundação artificial post mortem no direito das sucessões


Considerando que o reflexo da prática da inseminação artificial homóloga post mortem no direito sucessório é o assunto mais polêmico e, portanto, o que traz mais controvérsias sobre a matéria, faz-se essencial citar o posicionamento doutrinário de alguns autores, como por exemplo, o entendimento de GAMA, o qual a despeito de sopesar sobre o deferimento do parentesco consanguíneo nestes casos, não acolhe as implicações hereditárias oriundas desta prática, conforme as ilações expostas a seguir:

(...) haverá diferenças no que pertine aos efeitos de tal paternidade-filiação relativamente aos outros filhos deixados pela pessoa do falecido e que foram concebidos e nascidos durante a vida deste. No direito brasileiro, nos termos dos artigos 1.717 e 1.718, do Código Civil de 1916, somente as pessoas que, ao menos, tinham sido concebidas antes da morte do autor da sucessão, teriam aptidão para suceder ? tal regra é inserida no âmbito do artigo 1.798, do Código Civil de 2002, de forma mais técnica porque se refere tanto à sucessão legítima quanto à sucessão testamentária ?, sendo que no caso da técnica conceptiva post mortem ainda sequer havia embrião no momento do falecimento do ex-cônjuge ou ex-companheiro (2003, p. 732.
Neste sentido, o mesmo doutrinador supracitado, acrescenta:

(...) no Código Civil de 2002, o artigo 1.799, inciso I, admite o chamamento, na sucessão testamentária, dos filhos ainda não concebidos de pessoas indicadas pelo testador, desde que tais pessoas estejam vivas à época da abertura da sucessão.
(...) Ao se admitir a possibilidade de disposição testamentária em favor da prole eventual decorrente do recurso às técnicas de reprodução assistida homologa, deve-se considerar que o tratamento é diferenciado, no campo sucessório, entre os filhos, já que ao menos os filhos concebidos após a morte do pai somente poderão herdar na sucessão testamentária, e não na sucessão legítima (2003, p. 732-733).


Nesta mesma inteireza, o jurisconsulto Eduardo de Oliveira Leite ajuíza sobre o instituto civilista:

Quanto à criança concebida por inseminação post mortem, ou seja, criança gerada depois do falecimento dos progenitores biológicos, pela utilização de sêmen congelado, é situação anômala, quer no plano do estabelecimento da filiação, quer no direito das sucessões. Nesta hipótese a criança não herdará de seu pai porque não estava concebida no momento da abertura da sucessão.
Solução favorável à criança ocorreria se houvesse disposição legislativa favorecendo o fruto de inseminação post mortem. Sem aquela previsão não há que se cogitar a possibilidade de eventuais direitos sucessórios (2003, p. 110).


De forma adversa, doutrinadores mais contemporâneos reconhecem e atribuem os direitos sucessórios aos filhos havidos por fecundação artificial homóloga, cujo procedimento tenha sido iniciado após o óbito do pai.
Neste diapasão, as ilações do jurisconsulto Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho ponderam o adjacente posicionamento:

No nosso modo de sentir não se pode excluir da participação nas repercussões jurídicas, no âmbito do direito de família e no direito das sucessões, aquele que foi engendrado com intervenção médica ocorrida após o falecimento do autor da sucessão, ao argumento de que tal solução prejudicaria ou excluiria o direito dos outros herdeiros já existentes ou pelo menos concebidos no momento da abertura da sucessão.
(...) o simples fato da criança existir e uma vez comprovada a relação de parentesco já seria suficiente para fazer inserir, na ordem de vocação hereditária, um herdeiro legítimo, da classe dos descendentes, de primeiro grau, na condição de filho, com direito à sucessão (2006, p. 173-175).


Portanto, para que a procriação artificial homóloga realizada após a morte produza reflexos no direito das sucessões, faz-se essencial que seja resguardada a herança do concepturo, tendo-se em vista que o Código Civil de 2002 obsta que o sucessor reivindique sua parcela hereditária.
Desta feita, ao ponderar a problemática existente quanto à possibilidade da inseminação artificial homóloga post mortem elucubrar na sucessão, desfigurando o destino originário da herança, torna-se essencial que os profissionais do direito atentem ao prazo para que esta prática seja concretizada, posto que o corpo legislativo admita uma lacuna também sobre este contexto.
Assim sendo, doutrinadores como Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho (2006, p. 188) recomenda, para a solução deste impasse, que seja empregado, "por analogia, o prazo constante do artigo 1.800, § 4º, do Código Civil, ou seja, de dois anos a contar da abertura da sucessão", de forma que se o concepturo for concebido após o prazo consagrado pela lei, perderá os direitos sucessórios que a ele poderiam ser inerentes.
Entretanto, de forma adversa ao entendimento prescrito acima, Silmara Juny Chinelato (2004, p. 60) propõe que "não se poderá discriminar o filho havido post mortem, concebido com sêmen do pai pré-morto, depois do prazo de dois anos de que trata o § 4º do art. 1.800 do Código Civil".
Outro aspecto de grande valia para este estudo a ser analisado consiste na probabilidade do inventário se processar na via extrajudicial, tendo-se em vista que este é mais ágil que o inventário que se encontra sob a apreciação do Judiciário.
Por conseguinte, nos casos em que o inventário for tramitado extrajudicialmente, tem-se que sopesar a jurisdição para interpor a petição de herança, bem como se o processo tramitaria da via extrajudicial para a via judicial.
Por estas razões torna-se relevante a fixação exacerbada dos prazos pelo legislador civilista diante deste contexto para que, ao filho concebido por inseminação artificial homóloga post mortem, seja assegurado os direitos que são inerentes aos herdeiros quanto à herança do progenitor falecido, bem como para evitar a precariedade do procedimento sucessório.


3.2.1. A inexistência de um filho ao tempo da abertura da sucessão


Antes de se iniciar o debate proposto, face à inexistência de filho ou nascituro no momento em que a sucessão for aberta, tendo-se em vista que esta se abre com a morte do de cujus, considera-se importante salientar que a legislação civilista determina que para a configuração de herdeiro, é necessário que este já tenha sido concebido anteriormente ao óbito do progenitor.
Não obstante, a biomedicina proporcionou drásticas transformações neste quadro com a possibilidade de conceber a prole eventual, ou seja, a plausível hipótese de reprodução assistida post mortem, transpondo à ciência do direito uma série de fatos a serem analisados e previstos pelo ordenamento jurídico nesta seara, uma vez que a este é atribuído o dever de acompanhar as transformações ocorridas na sociedade, de forma a buscar a melhor resolução das lides constituídas por estes acontecimentos, em especial no âmbito do direito sucessório que, nesta ocasião, é o mais omisso.
Neste sentido, Código Civil de 2002 não ampara como legítima a sucessão provinda de situações posteriores como esta, porém o mesmo instituto prevê a sucessão testamentária, a qual admite a atribuição de direitos sucessórios aos filhos não havidos no momento da morte do de cujus.
Para tanto, o artigo 1.718 do texto civilista entende como sendo "absolutamente incapazes de adquirir por testamento os indivíduos não concebidos até a morte do testador, salvo se a disposição deste se referir à prole eventual de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão".
Destarte, a despeito do dispositivo acima conjeturar a prole eventual, alguns doutrinadores entendem o contexto como se o legislador estivesse fazendo referência a filhos de terceiros não inerentes à herança.
Ainda, o de cujus pode preestabelecer bens à prole eventual por intermédio do fideicomisso, o qual nos dizeres de Caio Mário da Silva Pereira (1997, p. 204) "consiste na instituição de herdeiro ou legatário com o encargo de transmitir os bens a uma outra pessoa a certo tempo, por morte, ou sob condição preestabelecida".
Quanto ao instituto do fideicomisso, existe o chamado fiduciário que consiste no herdeiro ou legatário designado para a substituição, enquanto que ao destinatário dos bens, dá-se o nome de fideicomissário.
Entendido isto, fica exposto as ilações do ilustre Caio Mário da Silva Pereira sobre a matéria:

Não é indispensável que o fideicomissário já viva no momento da abertura da sucessão, nem ao menos que esteja concebido, pois que é lícita a substituição diferida para o futuro remoto da morte do fiduciário; mas é essencial que, ao se abrir a sucessão fideicomissária (seja esta subordinada à morte do fiduciário ou qualquer outra ocorrência) o fideicomissário já exista, isto é, seja nascido ou ao menos concebido (1997, p. 208).

Desta feita, o fideicomisso é uma maneira, encontrada pelos estudiosos de direito de conceder ao testador a possibilidade de valer-se da inseminação artificial após a sua morte, assegurando ao eventual filho os direitos de ingressar na sucessão como herdeiro, tendo-se em vista que ao fideicomisso fica constituída a incumbência de conservar os bens que posteriormente beneficiará o sucessor concepturo.
Ainda considera-se importante discorrer sobre o assunto que a ocorrência de qualquer das formas acima expostas, no que traz à baila a utilização da prática tratada nos casos em que o genitor encontra-se falecido, é imprescindível o consentimento inequívoco e expresso do doador do sêmen.
De forma que nos casos em que o doador do material genético optar pelo fideicomisso, deverá confeccionar um testamento e neste descrever minuciosamente acerca do seu desejo quando da sua morte. Logo, o instituto do fideicomisso só é admissível através da sucessão testamentária.
No mais, a inseminação artificial homóloga realizada após o óbito do pai obterá chances de ser plausível e de forma a amparar a prole eventual quanto aos direitos sucessórios, ainda que o ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente o seu texto civil, legisle circunscritamente sobre esta possibilidade.


3.2.2 A necessidade do consentimento


No que é pertinente à utilização de técnicas de reprodução assistida, o item I-3 da Resolução n° 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, institui a imperiosidade do consentimento minucioso e por escrito de ambas as partes, no que se refere não tão-somente à permissão para submeter-se a tal prática, como também às circunstâncias médicas pelas quais serão submetidos e, ainda, dados pessoais de abrangência biológica, jurídica, ética e econômica.
Em se tratando da crio-preservação de gametas, segue-se pela mesma vereda, tendo-se em vista que a Resolução supramencionada, em seu item V-3, determina a essencialidade dos cônjuges ou companheiros em admitir a realização deste procedimento por escrito, estabelecendo o destino do material genético congelado nas eventuais circunstâncias em que sobrevir divórcio, doenças graves, falecimento ou, ainda, doação deste.
Portanto, no que traz à baila a utilização do sêmen crio-preservado após o óbito do esposo ou companheiro, entende-se que a inseminação artificial só poderá ser efetuada nos casos em que o de cujus houver, prévia e expressamente, consentido o procedimento nesta eventualidade.
Neste diapasão, pode-se considerar que não existe a presunção do desejo de conceber um filho, de forma que não havendo a preliminar manifestação de vontade quanto à inseminação artificial no princípio do procedimento, esta não poderá ser realizada, tendo-se em vista a impossibilidade de produzir direitos sucessórios, nem no âmbito do direito de família, assim como nos casos em que a doação do sêmen é feita no anonimato.
Por outro lado, alguns doutrinadores conceituados desaprovam tal prática, realizada após o falecimento do cônjuge ou companheiro em razão da carência de previsão legal sobre o assunto por parte da Constituição Federal, ferindo princípios por ela consagrados, tais como o princípio da paternidade responsável, o princípio do melhor interesse da criança, dentre outros.
Nesta inteireza, faz-se essencial ressaltar que em ocasiões como fora citado no parágrafo anterior, o princípio da paternidade responsável entraria em decadência, tendo-se em vista a impossibilidade do de cujus cumprir com as suas obrigações de pai, muito menos de exercer um direito que lhe é inerente, qual seja o direito ao planejamento familiar, sendo este, nesta hipótese, um ato unilateral da progenitora.
Segue-se pelo mesmo discernimento as ilações do conceituado doutrinador Eduardo Oliveira Leite, que também considera a impossibilidade em proceder à fertilização artificial post mortem, sem o precedente consentimento do cônjuge falecido, in verbis:

A resposta negativa a um pedido desta natureza se impõe. E isto, por diversas razões. Inicialmente, vale lembrar que tal pedido sai do plano ético reconhecido à inseminação homóloga; ou seja, se não há mais casal solicitando um filho, nada mais há que justifique a inseminação. Num segundo momento, tal solicitação provoca perturbações psicológicas em relação à criança e em relação à mãe. Nada impede que nos questionemos se esta criança desejada pela mãe viúva não o é, antes de tudo, para preencher o vazio deixado pelo marido. Além disso, a viuvez e a sensação de solidão vividas pela mulher podem hipotecar pesadamente o desenvolvimento psico-afetivo da criança. Logo, a inseminação "post-mortem" constitui uma prática fortemente desaconselhável (1995, p. 155).


No entanto, referindo-se ao princípio do melhor interesse da criança, é essencial que a inseminação artificial post mortem seja observada no âmbito jurídico, social e psicológico, atrelando-se ao fato da prole gerada, ser concebida por ato exclusivo de sua genitora, não subsistindo a manifestação de vontade por parte paterna, bem como ao fato da criança se desenvolver sem jamais ter conhecimentos sobre seu pai e, muito menos convivência com o mesmo.
De forma adversa, outros profissionais do direito são adeptos à realização da técnica tratada, mais especificamente neste capítulo, considerando o direito constitucional que os consortes ou companheiros têm ao planejamento familiar, o qual deve ser realizado enquanto os partícipes da relação parental ainda estejam com vida, na medida dos casos em que famílias são compostas somente pelos filhos e pela figura materna, têm estado cada vez mais presente em nossa hodierna realidade social, motivo este que não dá causa ao surgimento de transtornos psicológicos à criança.
Diante do que fora exposto, pode-se dizer que poderia ser ainda mais problemático à criança não constituir vínculos afetivos com o pai que se encontra vivo, do que o fato dela crescer somente sob os cuidados da mãe em circunstâncias que seu genitor veio a óbito antes mesmo de sua concepção.
Destarte, faz-se relevante ressaltar que os confrontos doutrinários a respeito da possibilidade ou não pertinente à realização do processo de inseminação artificial homóloga post mortem, são reflexos da omissão legislativa sobre a matéria, por parte do ordenamento jurídico brasileiro, o qual a despeito de permanecer inerte deverá conjeturar os efeitos jurídicos desta procriação em face da prole concebida.


3.2.3. A vocação hereditária interpretada sob a determinação legal apresentada pelo Código Civil de 2002


O legislador civilista ao tratar da vocação hereditária reputa como legitimados a suceder os filhos já trazidos à vida ou aqueles que, pelo menos, já houverem sido concebidos no instante em que a sucessão for descerrada, tendo-se em vista que a abertura da sucessão se dá a partir do momento da morte do autor da herança, não admitindo, portanto, ao nascido por reprodução medicamente assistida, realizada após o óbito do progenitor, os direitos conferidos aos filhos referentes à sucessão.
As hodiernas técnicas de procriação feitas em laboratório proporcionadas pelos desenvolvimentos biotecnológicos, tornam plausível a expansão da prole eventual biológica, ainda que tenha advindo a morte do cônjuge ou companheiro, de modo que a viúva possa valer-se do material genético, congelado em vida, de seu ex-consorte mesmo após este sucedâneo inesperado.
A doutrinadora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2003, p. 86), tratando da legitimidade para suceder trazida pelo Código Civil de 2002, explica que "(...) tanto podem ser herdeiros legítimos, testamentários, ou mesmo legatários os indivíduos que já tivessem nascido quando do momento do exato falecimento do de cujus, bem assim todos os que já estivessem concebidos no mesmo momento".
Neste sentido, faz-se importante adentrar nas considerações de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, in verbis:

(...) é possível que o sêmen, o embrião, e também o óvulo ? quanto a este, as experiências científicas são mais recentes ? possam ser crio-preservados, ou seja, armazenados através de técnicas próprias de resfriamento e congelamento, o que possibilita, desse modo, que mesmo após a morte da pessoa seu material fecundante possa ser utilizado, em tese na reprodução medicamente assistida (2003, p. 732).


A possibilidade colocada em evidência acima resulta em questionamentos éticos, jurídicos, sociais e existenciais, no sentido de que excluir o nascido da vocação hereditária pelo simples fato deste não ter sido concebido antes da morte do de cujus, bem como por questão financeiras visando resguardar o direito de outros herdeiros, concebidos anteriormente à eventual fatalidade, asseverando certa confiança no processo sucessório.
Portanto, a questão levantada neste momento vai além de interesses patrimoniais, sendo essencialmente mais importante o aspecto afetuoso e os laços sanguíneos criados pela filiação, ainda que esta se dê após o falecimento do pai.
Porém, faz-se imprescindível destacar que o fato de subsistir filhos não reconhecidos à época da sucessão sugere transformações substanciais na vocação hereditária, tendo-se em vista que existem conjunturas em que restam como herdeiros do de cujus cônjuge e ascendente, cônjuge e descendente, dentre outros e, quanto a estes casos, o Código Civil de 2002 legitima-os a suceder, assim como estabelece quotas, diferentemente e de acordo com as particularidades de cada um destes casos expostos.
É importante salientar que nos casos em que há a interposição da ação de petição de herança, somente o fato de subsistir a existência de um filho consanguíneo configura causa de inserção na ordem de vocação hereditária, como descendente, não sendo, portanto, questionável o anseio do de cujus em procriar ou se sua manifestação de vontade foi ou não evidente, bem como também não vai tratar dos transtornos psico-emocionais que provavelmente poderão atingir a criança, fruto de uma inseminação artificial homóloga post mortem.
Ainda neste contexto, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, subleva a questão da possibilidade jurídica da interposição da ação de petição de herança em casos como os tratados neste estudo, deliberando:

A petição de herança não prescreve. A ação é imprescritível, podendo, por isso, ser intentada a qualquer tempo. Isso assim se passa porque a qualidade de herdeiro não se perde (?). Sempre que transcorrido o lapso temporal referente à prescrição aquisitiva, pode o meio originário de aquisição da propriedade ser oposto como meio de defesa pelo herdeiro aparente ou quem por ele, ou como seu sucessor, se encontre na posse dos bens da herança (2003, p. 196).


Neste ínterim, apesar de se posicionar defronte à fecundação artificial realizada após a morte do genitor, a professora Maria Helena Diniz (2002, p. 478) redige: "Apesar de sermos contrários a essas novas técnicas de reprodução humana assistida, temos consciência de que o jurista não poderá ser inerte ante essa realidade, ficando silente diante de tão intrincada questão, nem o legislador deverá omitir-se, devendo, por isso, regulá-la, rigorosamente, se impossível for vedá-la".
Por oportuno, pode-se dizer que o não reconhecimento da filiação, é que indubitavelmente produziria desarranjos psicológicos a esta prole. Fato este que não denota ao ordenamento jurídico omissão sobre o assunto, o qual deve ser observado como sendo de grande relevância diante da matéria tratada, somente não é discutido na ação de petição de herança.



















CONCLUSÃO


A humanidade, nos últimos tempos, percebeu seu território como palco de constantes evoluções e, consequentemente, drásticas transformações no contexto social, moral, político, tecnológico, ético, científico e jurídico.
Tais mudanças, evidentemente, trazem consigo acrescentamentos e maleficências, no sentido de que apesar de, em grande maioria, proporcionarem recursos para uma melhor qualidade de vida. Estas transformações acontecem de forma instantânea, anteparando que a política, a religião, a sociedade e o próprio ordenamento jurídico possam acompanhá-la.
Neste diapasão, é visível que o ser humano, apesar de encontrar-se sempre em busca de novos caminhos e entendimentos, laqueia-se e assusta-se com a novidade, com a descoberta do que ainda não fora assoalhado.
Diante do explanado, traz-se à baila os campos que mais têm se evolucionado nas últimas eras, quais sejam, a biomedicina e a biotecnologia. Estas ciências tem proporcionado às pessoas uma dádiva que pelos céus não lhes foram concedidas ou, em alguns casos, até foram, mas as circunstâncias da vida a tenha extraído.
Nesta inteireza, pode-se dizer que o ser humano percorre as veredas da vida ultrapassando fases que suas eras por si só já as estabelecem e, dentre estas etapas da vida existe uma em que é almejado a este a construção de uma família que começa no matrimônio, na vida a dois e, de repente, a três.
Portanto, sabe-se que as pessoas nasceram e se desenvolveram para um fim que é por excelência, como já fora explanado anteriormente, uma dádiva, ou melhor, o presente mais puro e mais íntimo que poderia lhe ser oferecido, qual seja o dom da procriação.
Porém, como também já fora dito esta graça divina pode lhe ter sido tirada por motivos que não são divinos como, por exemplo uma doença, um acidente e tantas outras eventualidades, ou ainda, podem nem lhes ter sido presenteado. Em casos como estes, a ciência médica tratou em desenvolver uma técnica que ultrapassou os limites da vida que foram impostos ao homem, qual seja a reprodução humana medicamente assistida.
Por oportuno, este trabalho tratou de enfatizar uma das formas existentes desta técnica que consiste na inseminação artificial homóloga post mortem que, dentre elas é a mais polêmica nas searas da psicologia, da antropologia, da sociologia, da ética e, em especial, do direito.
Nesta direção, faz-se importante ressaltar a condição da criança concebida por esta prática após o seu nascimento e a possibilidade jurídica de se permitir que esta seja realizada, temas estes que foram altamente analisados nesta iniciação científica.
Assim sendo, conclui-se que se é possível ao homem, por intermédio da medicina, a realização do sonho de procriar, quando este não pode ser concretizado através da conjunção carnal, a sociedade e o direito não teria razões ou o poder para impedir esta excelência.
Diante disto, o ordenamento jurídico brasileiro, a despeito de ponderar pormenorizadamente sobre o assunto, prevê, já de antemão, a prole eventual, bem como ampara o ainda não concebido (concepturo) no momento da abertura da sucessão.
O mesmo instituto também conjetura o dispositivo do fideicomisso, o qual pode ser conhecido como outra forma de ser admitida a prática tratada neste instrumento de pesquisa, sendo que neste não há a necessidade de concepção prévia para que seja instrumentalizado.
Destarte, para que a reprodução humana assistida homóloga seja realizada após a morte do cônjuge, alguns requisitos devem ser observados, como a expressa manifestação da vontade do de cujus em vida, como também se houve entre o casal uma idealização deste desejo anterior à fatalidade e, ainda, o prazo para que esta técnica seja realizada, de forma a não tornar vulnerável a sucessão.
No mais, não só o texto civilista, como também o texto constitucional brasileiro encontram-se com a aludida prática de procriação humana, haja vista que a Constituição da República Federativa do Brasil atribui à família o direito ao planejamento familiar e da paternidade responsável, assim como ampara a prole quanto a este tipo de reprodução atribuindo-lhe o direito à igualdade entre os filhos, a dignidade da pessoa humana, o reconhecimento da filiação, os direitos sucessórios, dentre outros.
Enfim, é fato que a biotecnologia e a biomedicina encontram-se difundidas em nosso contexto social e tendem a se desenvolverem sempre mais. Portanto, cabe ao legislador brasileiro perfilhar caminhos e possibilidades para que as práticas advindas destas ciências sejam realizadas da melhor maneira, de forma a atender as necessidades e particularidades de cada indivíduo, principalmente em questões como estas que demandam de decisões intimamente personalíssimas, bem como para que sejam desempenhadas com responsabilidade e legalidade, no sentido de não trazer prejuízos a nenhum ser humano, inclusive aqueles que ainda não o são, mas eventualmente poderão vir a consistir.

Autor: Ludimila Lacerda Oliveira


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