Cheios de enchentes enlameadas



Cheios de enchentes enlameadas


Podemos escolher o que semear, mas somos obrigados a colher aquilo que plantamos.
Provérbio chinês


Todo verão brasileiro ocorre um embate de gigantes: de um lado águas torrenciais das chuvas excedendo limites ano pós ano e de outro lado aglomerados urbanos excedendo limites de ocupação e impermeabilização. O evento é dramático e o final já é por demais conhecido: mortes, desabrigados, desalojados, destruição, epidemias e alto custo social e econômico. A sociedade organizada já está cheia de enchentes enlameadas da incompetência e do descaso do poder constituído, que trata a irreversibilidade das mortes oriundas dessas tragédias como se fossem fatalidades naturais.

A sociedade solidária se mobiliza, enquanto governantes sensibilizados sobrevoam áreas alagadas, prometem verbas emergenciais, melhoria de sistemas preventivos e rigor na aplicação de leis existentes que impeçam ocupação ilegal de áreas de risco. Passa o verão e as águas de março se encarregam de lavar e apagar da curta memória do povo brasileiro todo esse triste cenário. Os meios de comunicação têm farto material para deleitarem-se noite e dia em épocas de poucas pautas interessantes, alguns com o abominável jornalismo do espetáculo.

Ocupar várzeas de cursos de água como se fossem o quintal de suas casas é lugar comum por todo o mundo, um sonho de consumo. Os rios e córregos, por conta da urbanização crescente perdem seus traçados sinuoso originais e tornam-se artificialmente retilíneos. Suas margens, outrora repletas de mata ciliar, são tomadas pela impermeabilidade humana. As civilizações humana desenvolveram-se junto dos cursos de água, afinal água é vida. O privilégio de uma bela vista é muito atraente, mas numa fração de tempo cada vez mais curta aciona-se a bomba relógio da crônica de uma tragédia anunciada.

Os prejuízos materiais e humanos causados por fenômenos naturais se intensificam. As causas são por demais conhecidas: aumento geométrico da população, ocupação desordenada, intenso processo de urbanização e industrialização, descaso de autoridades públicas. Nas áreas urbanas, entre os principais fatores que potencializam esses desastres, destacam-se a impermeabilização de solos, o adensamento de construções, a conservação de calor nas ilhas construtivas e a poluição do ar. Já nas áreas rurais, pode-se citar a compactação dos solos, o assoreamento dos rios, os desmatamentos e as queimadas. Dessa forma, a ausência de planejamento na forma de ocupação do solo e no gerenciamento das bacias hidrográficas só tende a intensificar os desastres naturais.

Investe-se em escala mundial R$ 1 para prevenção contra R$ 25 a R$ 30 para obras de reconstrução pós tragédia, um completo disparate. O sistema climático é controlado pela troca de energia entre a Terra e o Sol e o espaço exterior, e é composto por três grandes fatores: tectônicos, astronômicos e atmosféricos. O inter-relacionamento entre esses três elementos é complexo, e mecanismos fundamentais ainda são desconhecidos ou pouco pesquisados e documentados pela literatura científica.

Entre as causas naturais conhecidas referentes a fatores atmosféricos, o ser humano pode interferir apenas na retenção de calor pela atmosfera, já que não pode influenciar causas astronômicas nem tectônicas. Portanto, terremotos, erupções vulcânicas, maremotos, tsunamis, ciclos de calor e frio extremos devido à posição da Terra em relação ao Sol fogem ao controle humano. Mas, certamente emissões desenfreadas de gases do efeito estufa entre outros fatores têm provocado um aquecimento anormal das temperaturas médias mundiais. Efetivamente a atmosfera está aquecendo: nos últimos cem anos houve acréscimo médio de 1º. C. A atmosfera mais quente é passível de turbulências e agitações provocadas por correntes de energia mais quentes. A dissipação dessa corrente se dá por meio de precipitações progressivamente mais freqüentes e intensas.

O planeta Terra nunca foi um lugar segura à vida - a maior parte das espécies já desapareceu. O ser humano parece querer acelerar esse processo e não há futuro para ele se não houver equilíbrio em sua relação com a natureza. Cientistas têm alertado amiúde sofre a gravidade progressiva dos eventos extremos provocados por mudanças climáticas, como chuvas, secas, incêndios e nevascas de radicalidade inédita. Mesmo assim, a maior parte das autoridades do globo encara esses desastres como fenômenos episódicos, excepcionais sem a gravidade crescente, o que esbugalha a visão da sociedade cada vez melhor informada. As ambições, a arrogância e a irresponsabilidade humana desequilibram o hábitat. Ë um duelo desigual, quase sempre vencido pelas forças da natureza, com rastros da fragilidade humana espalhados por todos os cantos.

No Brasil o poder público é incompetente para executar medidas preventivas e de remediação na área da defesa civil, porque nunca priorizou a formação de gestores nem o necessário aparelhamento dos órgãos de proteção aos seus cidadãos. Infelizmente, depara-se todos os anos com a mesma mantra: desculpas esfarrapadas onde a culpa recai sempre sobre o excesso de chuvas.

As chuvas intensas no sudeste brasileiro que acontecem nos meses de calor intenso entre os meses de outubro e março ocorrem devido a um fenômeno denominado Zona de Convergência do Atlântico Sul. É uma concentração de massa de ar quente e úmido de longa permanência - pode ficar até cinco dias em uma região. Desloca-se do sul da Amazônia, passa pelo Centro-Oeste e chega ao Sudeste, onde se encontra com outra massa de umidade proveniente do Atlântico Sul. Essa massa de ar encontra um obstáculo na cadeia de montanhas da Serra do Mar, que segue pelo litoral brasileiro, de Santa Catarina até o Espírito Santo.

O maior desastre natural brasileiro ocorrido na paradisíaca região serrana do Rio de Janeiro no início de 2011, aconteceu por uma combinação de fatores já conhecidos, exceto a intensidade recorde de chuvas em um curto período de tempo, fato que levou alguns especialistas em clima a afirmar que esse fenômeno sem precedentes pode estar ligado às mudanças climáticas de aquecimento global. Outros cientistas afirmam ser prudente esperar períodos de 30 anos de eventos extremos para concluir se de fato há relação de causa e efeito. O maciço de até 2000 metros de altitude da Serra do Mar que cerca a região criou uma barreira que aprisionou imensas nuvens densamente carregadas, com até 18 quilômetros de altura. As encostas da serra são compostas por uma tênue camada de terra sobre as rochas, com baixa capacidade de absorção. Chuvas de intensidade anormal atingiram as nascentes de pequenos riachos, que rapidamente se transformaram em rios caudalosos e arrastavam tudo que encontravam pela frente.

Para ocorrer uma tragédia basta haver solo encharcado e instável por chuvas anteriores, aliado ao declive acentuado que chega a 90 graus, à inexistência de vegetação adequada, a ocupação desordenada de áreas de risco (morros, encostas, vales, várzeas de rios, mangues), e a leniência do poder público. Todos esses fatores estavam presentes na serra fluminense e uma avalanche de lama a incríveis 150 quilômetros por hora ceifou a vida de mais de 1000 brasileiros, sem qualquer distinção social.

Populações de baixo poder aquisitivo moram nesses locais não porque querem, mas por falta de opções em função de políticas públicas capengas. Ações de fiscalização enérgica devem ser uma constante, para evitar novas ocupações em áreas de risco e retirar os que nela estão. A água e esgoto que todos querem na porta de casa certamente não é a que ocorre com as chuvas torrenciais de verão. O povo paulistano está cheio de enchentes e da lama advinda da incapacidade das autoridades em implementar obras e ações de prevenção.

Há dois tipos básicos de medidas preventivas: estruturais e não estruturais. As medidas estruturais envolvem obras de engenharia para contenção de cheias como barragens, diques, alargamento de leitos de rios e reflorestamento. São providências caras e por vezes complexas. As medidas não estruturais envolvem ações políticas de planejamento e gestão, como implantação de planos diretores e de drenagem que contemplem os riscos ambientais, sistemas de alerta em tempo real, principalmente em aglomerados humanos, onde possam ocorrer inundações e deslizamentos de terra.

Sistemas eficientes de gestão de uso e ocupação de solo, retratados nas leis de zoneamento constantes em planos diretores das posturas municipais já refletem o que pode e o que não pode se construir na maior parte das grandes cidades brasileiras. Moradores de áreas de risco devem participar de processos e campanhas de mobilização e conscientização junto às autoridades públicas.
Um estudo de cientistas da área do clima na Universidade de São Paulo para a Agenda do Verde e do Meio Ambiente da capital paulista serve de aprendizado para ações preventivas. Aponta que a diferença de temperatura entre as áreas do município ainda ocupadas por vegetação nativa (Serra do Mar e Cantareira, principalmente) e áreas da cidade de alta ocupação industrial e trânsito intenso, como a Mooca, chega a seis graus Celsius. Há vultosas consequências na distribuição espacial e temporal das chuvas. Áreas mais quentes formam as chamadas ilhas de calor, que atraem chuvas intensas. Com isso, chove mais nas áreas onde os altos volumes de água são um problema e menos nas áreas de nascentes e reservatórios. Da mesma forma, com o calor, chove mais nas áreas urbanas de segunda-feira a sexta-feira ? quando a água é mais problemática ? do que nos fins de semana, quando diminui o calor e há menos movimentação de pessoas.
Os últimos 10 anos estão entre os 12 mais quentes da história do globo terrestre. O Estado do Rio de Janeiro tem uma história de eventos extremos dessa natureza desde 1966, e os mandatários sabem disso. Em Niterói a prefeitura estava informada, há seis anos, por um estudo do Instituto de Geociência da Universidade Federal Fluminense, dos riscos com a ocupação desordenada de topos de morros e encostas. No ano de 2007 a mesma instituição chamou a atenção para 142 pontos de risco em 11 regiões, cinco das quais agora drasticamente atingidas pelos deslizamentos: uma delas era exatamente o Morro do Bumba, área que durante 15 anos recebeu o lixo de Niterói e São Gonçalo. Uma das hipóteses é a de que o recente deslizamento tenha sido agravado por uma explosão de gás metano ali acumulado pela decomposição do lixo. Um completo nonsense!
Gestores públicos devem ser responsabilizados criminalmente por omissão e incúria, ao permitir baixas evitáveis e supérfluas em série contra a vida. A ocupação da região serrana do Rio de Janeiro, assim como muitos outros exemplos no Brasil, surge sob o olhar obtuso e populista das autoridades, escorados em acordos espúrios com loteadores ou com a formação de clientelismo eleitoral dos ocupantes de áreas de risco, como várzeas, vertentes e morros. É uma tarefa hercúlea ir adiante com leis punitivas ao poder constituído, pois são eles mesmos os autores de leis.

Em países desenvolvidos há grande respeito à cidadania e o planejamento urbano prima pela segurança dos indivíduos, diferentemente do que ocorre em países periféricos, onde até existem leis de ordenamento urbano, mas nem todas são cumpridas e a baixa cidadania contribui para deixar tudo como está. Dessa forma, os desastres naturais ceifam poucas vidas em países ricos que se previnem e tomam proporção de horror em países pobres. Esse cenário só muda quando o custo político for insuportável e isto depende fundamentalmente do exercício pleno da cidadania, qual seja, fazer as escolhas corretas na hora de semear o que se deseja colher.

Autor: Rodnei Vecchia


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