UMA ESTRANHA LUZ




Sebastião Pereira, o Tião, como ficou conhecido no bairro da periferia onde mora, nasceu naquele bairro, 18 anos atrás. De família muito pobre, vinda do interior do Estado, ele enfrentou todos os reveses que a pobreza, os preconceitos e morar numa favela podem trazer a um ser humano.
Criado nas ruelas sujas da favela, convive com toda sorte de situações proporciona-das por ambientes violentos, cercado por drogas, sexo precoce, fome... Apesar de tamanha proximidade com tudo isso, ele nunca se "enquadrou" nesse esquema de miséria e corrup-ção. Quando criança, brincava com os outros garotos da favela sim, mas quando os inevitá-veis convites para "fazer uma função" ou "dar um rolê" eram feitos, ele sempre recusava e ia saindo de "fininho" e, aos poucos evitando os garotos mais chegados a essas práticas.
A primeira atividade em que se envolveu pra valer foi no grupo comunitário de jovens da paróquia local. Ali, aprendeu a tocar violão e desenvolveu a dádiva que a natureza lhe deu: uma bela voz, que aliada à boa performance no violão, abrilhantava as missas e reuni-ões festivas da comunidade.
O tempo passou rápido, ele tem agora 18 anos. Completou apenas o 1º grau, pois teve que enfrentar muito cedo o batente. Trabalho duro para um garoto franzino; embalava e carregava as compras dos fregueses de um supermercado próximo, em troca de gorjetas e uma pequena quantia que recebia a guisa de salário. Quando não estava trabalhando no mercado, recolhia papelão com seu carrinho feito com gabinete de geladeira. De sol a sol, todos os dias.
De certa forma, todo esse empenho permitiu, pelo menos, que ele conseguisse cons-truir, ali mesmo, na favela, uma casinha de alvenaria, saindo do barraco de um só cômodo onde morava com os pais e irmãos desde que vieram do interior.
Tião agora fora contratado pelo supermercado. O dono se acostumara a confiar na-quele "pretinho" trabalhador e esforçado. Tião já sonhava em sair da favela!!!

Sexta-feira, dia de reunião da comunidade na igreja do bairro. Tião participava do gru-po de músicos e cantores que abrilhantavam essas reuniões. Nesse dia em especial, desde o tema discursado pelo eloqüente orador, às músicas que foram cantadas, deixaram o "pre-tinho" Tião com a alma enlevada.
_ "Viva, pratique, cante o amor, mesmo na adversidade...", dizia o tema daquela noite. E as músicas que foram entoadas para acompanhar o tema, eram simplesmente arrebatado-ras.
Já passava das 22:30 hs quando a reunião terminou. Tião foi o último a sair; guardar os instrumentos e fechar as portas do salão da igreja eram também suas tarefas. Sua casa não era longe, cerca de dez a quinze minutos de caminhada. Naquela noite, mesmo com a fina e fria garoa que caía, e a lama das ruelas que as tornavam escorregadias e difíceis de transitar, não tiravam de Tião aquele enlevo, aquela alegria e paz interior que experimentava, ainda reflexo do ambiente calmo e espiritual que envolvera a reunião daquela noite. Tião com seu violão a tiracolo, assobiava baixinho o refrão de uma das músicas que cantou na missa que antecedeu a palestra - era o refrão de um salmo - "Quem habita o abrigo do altís-simo e vive à Sua sombra... Nenhum mal há de chegar perto de ti, nem desgraça baterá a tua porta..."; e emendava em outra melodia, "o caminho da fraternidade é acolher a quem foi excluído..."

xxx

Já passava das dez da noite quando uma viatura policial saíra da estrada principal e iniciava sua patrulha naquele bairro pobre da periferia. Os quatro policiais que a guarneciam já estavam, como se diz no linguajar popular, "de saco cheio".
Eram homens violentos, talhados pelo tipo de trabalho que desempenhavam, em con-tato diário com a brutalidade e violência. O diálogo que mantinham enquanto transitavam pelas lamacentas ruas daquela favela ressaltavam isso ? "Numa noite como essa, o desgra-çado que cruzar o nosso caminho vai subir mais cedo..." ? dizia o sargento Pedro, no que era completado pelo soldado França: - "É´, vai ver Jesus... aliás, se aparecer alguém, essa é minha vez de assinar o passaporte do infeliz...". Sem traumas dizia o soldado Francisco: -"Uma hora dessa, com um tempo desse, gente boa já se recolheu. Só pilantra fica dando mole!"
A viatura, com os faróis apagados, entra numa estreita rua ainda menos iluminada. O cabo Barcelos grita para os demais:- "Opa! Ali vai nossa caça..."


Tião já estava quase chegando em casa; mais alguns poucos metros e se livraria da-quela noite fria e chuvosa. Já se imaginava tomando aquele chá quente que sempre o a-guardava quando voltava da reunião. Tião estava absorto que nem percebeu a chegada da viatura policial. Assustou-se com o grito:- "Parado aí crioulo, mãos na cabeça. De onde rou-bou essa violão?" Perguntava o sargento Pedro, enquanto já desferia violentas coronhadas na cabeça e rosto do assustado Tião.
Quase sem poder falar, devido as coronhadas, socos e pontapés que recebia, tam-bém dos outros policiais, conseguiu balbuciar:- "Esse violão é meu, senhor. Não sou ladrão nem vagabundo, estou vindo de uma reunião na minha igreja."
-"Deixa de mentira, rapaz, isto lá são horas de reunião em igreja? Temos várias re-clamações de furtos nessa área e pegamos você com a boca na botija..."
Tião foi espancado barbaramente até desfalecer. Foi jogado, juntamente com seu vio-lão no "chiqueirinho" da viatura que partiu em alta velocidade do local.

xxx

- "Será que o cara apagou?" pergunta o cabo Barcelos. - "Acho que exageramos na dose."
-"E daí, que diferença faz, se não apagou, vamos apagá-lo na área de desova. "Reba-te o soldado França: "É um pilantra a menos".
Enquanto se dirigiam do local onde costumeiramente executavam suas vítimas, mui-tas delas como o pobre Tião, um silêncio repentino tomou conta dos ocupantes daquela via-tura. Cada um deles no seu silêncio, questionava sobre o que fizeram e iriam consumar.
E se aquele pobre rapaz fosse mesmo o trabalhador que dizia ser?
O sargento Pedro, que comandava o grupo, quebrando o silêncio, disse: -"Pessoal, não sei porque, mas acho que cometemos um grande erro; deixamo-nos levar pelo nosso instinto e sequer demos chance para o garoto provar que vinha mesmo da igreja. Se for ver-dade o que dizia enquanto o espancávamos, mais que uma violência, cometemos um sacri-légio."
As palavras do sargento não foram contestadas nem rebatidas, o silêncio foi total: -"Será que ele morreu? Não seria melhor levá-lo para um hospital? Mas, e as conseqüên-cias? Nós batemos muito no cara", continuou.
A viatura policial continua o seu trajeto. Um lúgubre silêncio toma conta daqueles ru-des homens. Acostumados que estavam com esse tipo de acontecimento, não conseguiam entender o que se passava. Ora, era apenas mais um dos muitos que já haviam espancado e até mesmo matado. Por que esse clima? Por que a sensação de arrependimento nunca antes sentida?
De repente, vindo da parte de trás do carro, os acordes do som de um violão rompe o silêncio e uma voz suave e terna entoa uma canção. O som e a mensagem da música dei-xam os policiais paralisados, sem ação.
A viatura pára e na escuridão daquela estrada ouve-se apenas o som vindo do "chi-queirinho"...
- "Eu avisto uma terra feliz, onde irei para sempre morar. Há mansões neste lindo lu-gar que Jesus foi para mim preparar..."
Por alguns minutos ficaram ouvindo aquela melodia. Quem a cantava, o fazia com a alma, como se estivesse diante de uma visão deslumbrante.
Cada um daqueles homens, ao som daquela melodia, como num transe, numa re-gressão, começa a rememorar o passado. Pela mente de cada um deles, começou a passar, como num filme, toda sua vida...
O sargento Pedro, vindo de uma família pobre, tinha quatro outros irmãos. Seu pai policial civil, era católico praticante e nos finais de semana levava a família para assistir as missas. O "seu" Pedrão, como era conhecido no bairro, tinha por hábito reunir toda a família para leitura bíblica. Assim, Pedro teve na sua infância e adolescência um contato íntimo com músicas como aquela que ouvia agora e que o fazia lembrar de muitos e muitos momentos junto de seus pais e irmãos, onde também cantava músicas como essas. O que aconteceu com aquele Pedro? Que caminho é esse que trilha agora, oposto ao que seu coração dese-ja, ao que aprendeu, aos preceitos cristãos?

O cabo Barcelos e os soldados França e Francisco foram criados no mesmo bairro: a bem da verdade, na mesma rua. Eram amigos inseparáveis desde a mais tenra idade. O destino cuidou de mantê-los assim também agora.
Seus pais, freqüentadores de uma igreja cristã protestante, eram exigentes nos ensi-namentos e doutrinas da religião que professavam. Como o sargento Pedro, eles também se interrogavam do por que e de como se transformaram nesse quarteto violento, truculento e criminoso. Teria sido o dia-a-dia do combate ao crime, das atividades de policiais em contato diário com criminosos violentos, fatos e ocorrências violentas que foram de alguma forma alterando e moldando um caráter igual?
Agora estavam ali os quatro com os olhos marejados de lágrimas, envoltos em seus pensamentos ao som daquelas músicas que se sucediam, numa melodia angelical que toca-va fundo em suas almas e trazia à tona o verdadeiro coração que cada um tinha.
- "Senhor, Tu me olhaste nos olhos; a sorrir, pronunciaste meu nome. Deixei o meu barco na praia, contigo, buscarei outro mar...buscarei outro mar... buscarei outro mar..."
De repente o silêncio. Os quatro policiais saíram do torpor em que se encontravam e atropeladamente correram até o "chiqueirinho" da viatura e abriram-no. Uma luz intensa bri-lhava no interior e a um canto, ainda impunhando o violão, Tião jazia sentado. O seu rosto, que refletia o brilho daquela incrível luz, expressava uma felicidade incomparável, traduzida num largo sorriso, como se a imagem que vira fosse deslumbrante, arrebatadora, irreal.
Os quatro homens atônitos correram, a um só tempo, em sua direção. Tocaram em seu rosto gelado.
- "Não tem pulso, não está respirando. Morreu... E essa luz, que luz é essa? O que está acontecendo?" Meu Deus!!

. . .


O capitão Borges era o comandante do batalhão de polícia responsável pelo policia-mento daquela região. Já a algum tempo vinha investigando denúncias anônimas contra os policiais comandados pelo sargento Pedro. Muitos acontecimentos estranhos ocorriam en-volvendo os policiais.
Naquela noite saíra com o carro-comando com mais dois oficiais para fazer uma ins-peção na área, sob sua responsabilidade. Sabia ele que o sargento Pedro e seus comanda-dos estavam de serviço nessa noite. Pra começar, iriam verificar um local onde ultimamente muitos casos de morte tinham acontecidos e debitados ao sargento Pedro e seus comanda-dos. O carro do capitão trafega pela estrada e de longe ele avista uma viatura parada com os faróis acesos e as portas abertas. Aproximaram-se. Pararam o carro, e saíram para ave-riguar o que estava acontecendo.
Na parte de traz da viatura policial, o capitão e seus dois oficiais deparam com uma estranha e inexplicável cena. No "chiqueirinho", ajoelhados diante de um rapaz negro que empunha um violão e com um expressivo sorriso nos lábios, quatro policiais choram copio-samente! Uma luz intensa parece surgir do nada.

O que está acontecendo? -"Que luz é essa?" perguntou o capitão...





Autor: Izaias De Oliveira Silva


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