PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO: Uma Perspectiva Construtivista




UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA ? UNEB

Nilton Rodrigues de Souza



PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO:
UMA PERSPECTIVA CONSTRUTIVISTA

IRECÊ
2006


Trabalho monográfico apresentado à Universidade do Estado da Bahia ? UNEB, como um dos requisitos exigidos para conclusão do curso de pós-graduação lato sensu em Metodologia do Ensino Superior.


ORIENTADORA: Helga Porto Miranda


Aprovado em _____/_____/_________


BANCA EXAMINADORA


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Helga Porto Miranda
Universidade do Estado da Bahia ? UNEB



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Componente
Universidade do Estado da Bahia ? UNEB


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Componente
Universidade do Estado da Bahia - UNEB



Aos meus netos Caio, com quatro anos de idade, e João Gabriel, recém nascido, aqui representando todas as crianças que não foram apresentadas formalmente ao sistema de escrita, esperando que elas, ao cruzarem o batente de uma escola para alfabetizarem-se, tenham a felicidade de encontrar professores menos preocupados com os aspectos institucionais da educação que mais se têm voltado a domesticar gerações, e que, ao invés disso, estejam comprometidos em desenvolver o raciocínio delas.


AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por ter-me facultado o gosto pela leitura e a disposição para estudar, sempre, sem me perguntar por que e para que, salvo pelo gosto de conhecer mais da realidade desta vida maravilhosa, que dá ao homem uma cabeça e um mundo, permitindo que ele próprio estabeleça o seu limite.


Os métodos clássicos de tortura escolar, como a palmatória e a vara, já foram abolidos. Mas poderá haver sofrimento maior para uma criança ou um adolescente que ser forçado a mover-se numa floresta de informações que não consegue compreender, e que nenhuma relação parecem ter com a vida?


Rubem Alves.


RESUMO

O presente trabalho, faz comentários sobre os caminhos da alfabetização no Brasil, assim como uma viagem pelos principais referenciais teóricos de que se deve valer, hoje, o processo de aprendizagem da leitura e escrita de crianças, ancorado numa perspectiva construtivista. Passa pelo perfil do professor, que deve reunir em si um mínimo de características que o configurem como profissional consciente e empenhado em alfabetizar, observando princípios construtivistas.
Tece comentários acerca do que vem a ser o Construtivismo, entendido aqui como paradigma atual do aprendizado, tentando defini-lo e diferenciá-lo do modelo tradicional de ensinar, que, por sua vez, tem como pressupostos básicos as teorias empirista (principalmente) e apriorista da aprendizagem, que lhe servem de referencial.
Aporta na psicogênese da língua escrita, teoria defendida por Emília Ferreiro, que revolucionou o ensino do código escrito, a partir da década de setenta, quando tornou conhecidos os níveis de conceptualização da criança, durante o seu percurso pelos caminhos da alfabetização. Mas não cometemos o equívoco de não darmos um passeio, mesmo que resumido, na epistemologia genética de Piaget e nos escritos de Vygotsky, que gozam de enorme credibilidade em todo o mundo, quando se questiona a forma como se adquire o conhecimento, acessadas em obras de outros autores estudiosos das idéias destes grandes mestres.
Finalmente, antes das conclusões, sinaliza caminhos para uma prática pedagógica circunscrita à proposta construtivista, explorando os parâmetros relacionados à idéia de construir e evitando apresentar receitas, que, aliás, nem existem.



SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 09
CAPÍTULO I ? A Alfabetização no Brasil ............................................................................. 13

CAPÍTULO II ? O Que é Construtivismo? ............................................................................ 16

CAPÍTULO III ? O Professor Construtivista ......................................................................... 20

CAPÍTULO IV ? O Processo de Alfabetização ...................................................................... 27

a) Como é visto o ensino da leitura e da escrita
no modelo tradicional de ensino ....................................................... 27
b) O processo de alfabetização, numa
perspectiva construtivista ................................................................. 30
c) As Implicações Pedagógicas .................................................................. 41

CAPÍTULO V ? Conclusão .................................................................................................... 43

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 47





INTRODUÇÃO

Partindo-se de uma análise geral, ainda hoje a aquisição da leitura e da escrita, para as crianças na faixa etária de cinco, seis anos de idade, no Brasil, é um fenômeno cujo procedimentos e métodos ainda são aceitos e consolidados como eficazes, da forma como vêm sendo praticados há décadas, na maioria das escolas, sejam elas públicas ou privadas, confessionais ou laicas, não como um conhecimento a ser construído, mas como uma habilidade mecânica a ser desenvolvida pela criança. Dessa perspectiva, as crianças genericamente aprendem a ler e a escrever, na maioria das vezes, com deficiências funcionais, umas sem maiores dificuldades, outras não.
Entretanto, ainda existem aquelas crianças que não conseguem mesmo desenvolver-se no processo de alfabetização, e aí reside um problema acerca do qual hoje que os estudiosos da educação vêm se preocupando, e dando maior ênfase.
Para aquelas pessoas desincumbidas de fazerem uma análise mais acurada dos fatos da realidade em que estão inseridas, aprender bem ou mal ou não aprender de maneira alguma a ler e escrever, na escola ou fora dela, é uma coisa de somenos importância. A hipótese subjacente a esse ponto de vista e que se propõe a justificar essa posição, passa pela concepção epistemológica inatista da aquisição do conhecimento, segundo a qual as pessoas já nascem com habilidade (mais precisamente estruturas preformadas) para aprender seja lá o que for, em geral, e a leitura e a escrita, em particular, bastando apenas esperar pela maturação dessas estruturas.
Isto, numa linguagem mais científica, encerra um determinismo genético amparado por uma teoria não mais aceita pela maioria dos estudiosos de vanguarda do fazer educativo e que, portanto, não povoa o atual paradigma da educação.
Quem ainda não ouviu referirem-se a um filho, parente ou amigo, como "aquele que não nasceu com o dom da leitura e da escrita", por tratar-se de pessoa que na realidade tem dificuldade de avançar nesses trilhos, devido à forma como o ensino é levado a efeito nas escolas, ou por uma conjunção de fatores diversos, em que a forma como o ensino é levado a efeito nas escolas é apenas um deles?
O pensamento de alguns profissionais da educação, ainda está circunscrito na premissa inatista, e isto tem desdobramentos muito negativos para o processo de ensino e aprendizagem da lectoescrita, da seguinte forma: aqueles que atribuem o sucesso ou o fracasso da aprendizagem da leitura e da escrita a uma qualidade que a pessoa já traz ou deixa de trazer consigo ao nascer, assumem uma postura do tipo "render-se ao determinismo", e pior, a um determinismo infundado, baseado no senso comum. E assim argumentam que nada podem fazer, além da prática pedagógica muitas vezes já cristalizada em sala de aula, por não passar por uma análise, uma reavaliação, ao longo do seu percurso (BECKER, 1998).
Ainda segundo esse mesmo autor, é sem dúvida uma posição cômoda e inconseqüente, mas, mais do que isso, uma posição de completa insensibilidade científica, pela completa falta de curiosidade e inquietação ante o problema que é desse professor, da escola em que trabalha, das crianças e da sociedade, num âmbito mais lato.
Nesse caso o senso comum perpassa todas essas idéias e esse fazer pedagógico consumados, obstaculizando possíveis e desejáveis inquietações e inconformismos que poderiam desencadear rupturas nas práticas educativas institucionais, com reflexos amplamente positivos para a qualidade da educação, no seu sentido amplo, e com considerável avanço na aprendizagem da leitura e da escrita.
Muitos professores se queixam de que as teorias hoje existentes, que tratam da aprendizagem dos atos de ler e escrever ainda não são suficientemente conclusivas; pelo contrário, muitos argumentam que elas são até confusas, motivo pelo qual não podem ser tomadas como embasamento do que é feito em sala de aula, como instrumento promotor de maior eficácia do processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita, o que não deixa de constituir uma defesa do método tradicional de ensinar, praticado na escola há muito tempo.
Este argumento pode ser interpretado de diversas maneiras. Uma delas revela uma tendência notoriamente explícita entre professores em geral e das séries iniciais do ensino fundamental, principalmente, de falta de disposição para a leitura de textos, de livros, enfim, de portadores em geral, que contêm informações de como andam as pesquisas, as teorias e discussões sobre o objeto de estudo das classes de alfabetização. Conforme Maria da Glória Seber em (SEBER, 1997), há uma aversão pelo estudo, um conformismo com o que há em ermos de ensino, uma dificuldade de refletir sobre um texto e uma ausência de questionamentos, de discriminação de idéias, que são conseqüências do modo como a escola encara o ato de ensinar e interferem nas atitudes dos professores, tornando-os passivo e sem atitudes renovadoras. Uma outra interpretação que se pode dar é de que há ainda, nos mais diversos rincões do país, uma enorme lacuna no que tange à formação continuada de professores. Através dos cursos de formação continuada é que surgem os debates, as discussões, o conhecimento dos avanços científicos na educação, as angústías, as rupturas com o status quo educativo, no seu modelo tradicional e epistemologicamente equivocado.
Mais uma interpretação do argumento mencionado é com relação ao medo que alguns professores cultivam de adotarem métodos ditos mais científicos de ensino. Um seria a falta de crença nesses métodos, conforme já referido, sobre a eficácia deles, aliada à suposição de que a forma tradicionalmente trabalhada, bem ou mal vem dando conta do recado, apesar dos pesares. Outra seria o medo do aumento da responsabilidde, implicando em necessidade de aprofundamento dos estudos, coisa que na maioria das vezes não vem sendo feita há muito tempo, por força, dentre outras coisas, de um hábito arraigado, fundado na crença de que o conhecimento que se trazia junto com o diploma era um acervo pronto, imutável e sólido, não sujeito a reavaliações, a mudanças conceituais, a desconstruções e reconstruções.
Detendo-nos um pouco sobre as verdades defendidas nas teorias, vale ressaltar que, como diz Pedro Demo (DEMO, 1987), nenhum conhecimento teórico é completo e permanente. Uma teoria só é válida até o momento em que uma outra teoria que especule o mesmo assunto venha desvelar melhor aquele aspecto da realidade.
Os cientistas não trabalham no afã de perpetuar uma teoria. Isso, além de não fazer sentido, porque anularia a razão de ser da ciência, tornaria o conhecimento, até então produzido, num cristal monolítico, cujo brilho cederia lugar ao um bolor decorrente de um repouso excessivamente duradouro. Não. Ao contrário, o cientista procura destronar teorias, superando-as com outras teorias complementares, mais ricas de detalhes da realidade focada, ou refutando-as com outras teorias que enxergam aquela problemática de outras perspectivas, apresentando outras verdades diversas e mais convincentes.
Mas, independentemente dessas considerações todas, refutar uma teoria com outra teoria é uma prática não só regular na ciência, mas um acontecimento saudável, revelador do dinamismo científico e do crescimento da ciência. É através de questionamentos acerca da validade de uma teoria que novos projetos de pesquisa são implementados e novas descobertas irrompem, ganhando, com isso, o próprio avanço do conhecimento, a própria ciência e a humanidade.
Entretanto, por em dúvida uma teoria como pretexto para não utilizá-la, no caso aqui focado, numa dimensão pedagógica, na prática de sala de aula, é uma incoerência absurda. Cheira a não aceitação de verdades, a rigor verdades científicas, situação em que se dá margem para se acreditar demais no senso comum, ou mesmo em dogmas culturais, como a aceitação da burrice e da inabilidade inata, e menos na ciência.
A partir do momento em que cientistas se voltam para a questão de como se dá a aprendizagem da leitura e escrita, de como evolui esse processo, do que pensam as crianças sobre esses fenômenos, quais são os caminhos e as hipóteses que formulam no percurso de aquisição da lectoescrita e quais são as suas implicações pedagógicas, não há como profissionais da educação assumirem uma postura de indiferença diante desses fatos.
Assim é que neste trabalho, além de um pouco de história sobre a alfabetização no Brasil, são tratadas questões relacionadas com os aspectos construtivistas da alfabetização, suas concepções e os seus processos, sua evolução, o perfil do professor construtivista e suas condutas pedagógicas transformadoras, desaguando propriamente em reflexões acerca do processo de alfabetização, numa perspectiva construtivista, tendo por base, evidentemente, a Epistemologia Genética de Piaget, a Psicogênese da Língua Escrita de Emília Ferreiro e a Teoria Sócio-Cultural de Vygotsky, por serem as mais conhecidas e mais importantes, no universo da construção do conhecimento, na atualidade.


CAPÍTULO I
ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL


Segundo o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, da Secretaria do Ensino Fundamental do (MEC, 2001), a alfabetização, enquanto modelo escolar de ensino, surgiu há pouco mais de dois séculos (1789) na França. Daí em diante veio a lume, para as crianças, a possibilidade de alfabetizar-se na condição de aluno, em escolas, ou permanecerem na condição de aprendizes informais, em suas casas ou outro lugar que não recebia o nome de escola.
A mesma fonte divide a evolução da alfabetização escolar em três períodos, de uma perspectiva geral, levando em conta o lapso histórico correspondente ao século XX.
O primeiro período corresponde à primeira metade do século, em que o foco das discussões era o ensino, e a questão principal residia em se buscar o método que melhor servisse aos propósitos do ensino da leitura e da escrita, haja vista que se alimentava a suposição de que todo e qualquer fracasso se devia ao uso de métodos inadequados.
À época, dois métodos, o global e o fonético, também conhecidos, respectivamente, por analítico e sintético, polarizavam as discussões. No Brasil essa discussão não ocorreu porque difundiu-se um método misto, expresso na famosa cartilha.
O segundo período teve nos anos 60 o seu apogeu e nos Estados Unidos o seu centro geográfico. A discussão, aí, era centrada no fracasso escolar. Gastou-se muito dinheiro em pesquisas para se descobrir o que havia de errado nas crianças, às quais era imputada a própria razão do fracasso.
Nesse período frutificaram as chamadas "teorias do déficit", pelas quais se supunha que a aprendizagem se fazia às expensas de pré-requisitos cognitivos, psicológicos, perceptivo-motores, lingüísticos etc., e que algumas crianças fracassavam por não dispor dessas habilidades, e as crianças das classes sociais menos favorecidas formavam, por conta dessa suposição, um enorme contingente aí circunscrito.
No Brasil dos anos 70 essa idéia foi bastante difundida, ao ponto de se disseminar a necessidade de exercícios de "protidão" para a alfabetização, para desenvolver os pré-requisitos mencionados, mas, por se tratar de um equívoco, evidentemente não deu em nada.
Em meados dos anos 70 começa o terceiro período, trazendo consigo uma importante mudança paradigmática. Tudo o que se pensou antes sobre o fracasso da alfabetização ruiu ante a idéia de se tentar compreender como aprendem os que conseguem aprender a ler e escrever, sem que para isso tenham enfrentado dificuldades, bem como, e igualmente importante, o que pensam sobre a escrita aqueles que não lograram alfabetizar-se.
Tudo isso teve nos trabalhos de pesquisa de Emília Ferreiro e Ana Teberosky um suporte de peso. O resultado de suas investigações foi publicado no Brasil em 1985, em livro com o título de "Psicogênese da Língua Escrita", desencadeando novas discussões e novos rumos para o processo de alfabetização de crianças (MEC/PROFA, 2001).
Historicamente o Brasil não tem conseguido garantir o direito de todas as crianças à alfabetização. Primeiro, porque o acesso à escola não abrangia a todas elas. Depois, democratizado o acesso, a escola não conseguia ? e isso perdura até hoje ? ensinar efetivamente a todos os alunos a ler e escrever. Faz tempo que os índices de fracasso escolar são inaceitáveis. O nosso sistema educacional há muito carece de medidas políticas educacionais que contemplem efetivamente as necessidades da população, principalmente no que tange à qualidade do ensino da leitura e da escrita (Op. cit.).
Nem o advento da idéia de escola transformadora, progressista, que viria substituir a escola conteudista, preocupada mais com a transmissão de conteúdos escolares, surtiu o efeito desejado de que todos os alunos desenvolvessem diferentes capacidades na escola.
Veio a reboque disso a cultura da repetência, da reprovação, fenômeno que acabou sendo aceito como natural, aos olhos da sociedade.
Nos anos 80 veio a organização da escolaridade em ciclos, para as séries iniciais do ensino fundamental. Com essa medida, além de se defender o direito a condições institucionais que contribuam para o seu processo de aprendizagem, os alunos teriam a chance de um percurso maior e contínuo ao longo de um ciclo básico, sem a possibilidade de uma retenção ao final da 1ª série, no caso de não estarem ainda alfabetizados.
Essa proposta, portanto, representava, na época, e o faz ainda hoje com a mesma veemência, uma possibilidade concreta de superar a injustiça do"tudo ou nada", do "fica ou sai",
do "sucesso ou do fracasso", idéias tão secularmente arraigadas no cenário escolar.
O problema da reprovação, fenômeno reincidente na educação brasileira, trouxe como consequência ? como não poderia deixar de ser ? a evasão escolar e a defasagem idade-série, entre aqueles que permaneceram estudando. Nesse caso, tanto os evadidos temporariamente ? que retornam depois, na maioria das vezes em outra escola ? quanto os reprovados que permanecem na escola na condição de repetentes, vão engrossando o cordão dos defasados.
Com o agravamento do problema ao longo de muitas décadas, evidentemente o problema foi se avolumando. Dentre as idéias concebidas para superar essa precária situação, surgiu nos anos 90 a chamada "correção de fluxo" e com ela os projetos de aceleração da aprendizagem, voltados para os alunos defasados, numa tentativa de se debelar um problema antigo e cada vez mais reincidente (MEC/PROFA, 2001).
Mas nada disso consegue dar conta de superar a causa original: a deficiência escolar do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Enquanto isso não for verdadeiramente resolvido, as estatísticas farão uso freqüente dos termos "reprovação" (ultimamente retenção), "evasão" e "repetência", para desengano da sociedade e desconforto dos ouvidos de alfabetizadores brasileiros (Op. cit.).




CAPÍTULO II


O QUE É CONSTRUTIVISMO?


Seria o construtivismo um método de ensino? Seria mais um modismo, ao qual muitas escolas atualmente se apegam, para parecerem mais de vanguarda e atraírem clientela maior? Ou é o construtivismo uma teoria, que propõe explicar a aquisição do conhecimento de uma perspectiva de elaboração mesmo, pelo indivíduo, que passa a ser o ator principal do processo de ensino e aprendizagem, interagindo com o meio objeto (físico e social)?
Se formos fazer um passeio pelo processo de ensino que vem sendo (ou vinha, se consideramos que nos últimos anos vêm ocorrendo mudanças consideráveis na forma de ensinar) praticado em nossas escolas, inevitavelmente nos depararemos com o método tradicional que por tanto tempo perdura nas escolas, nos seus diversos níveis, a ponto de ser quase impossível falar de ensino, sem que nos venha à mente a imagem daquela sala de aulas convencional, sempre disposta da mesma forma, com a professora à nossa frente, poderosa, ponto de convergência de todas as atenções, dos respeitos, das obediências e dos temores, transmitindo, ou melhor, impondo conteúdos ao seu bel prazer, sem se importar com as dificuldades, com os ritmos, com os tropeços, com os avanços e recuos de cada um dos alunos, tomando-os por uma massa uniforme, insensível, passiva e sem iniciativa própria, além de tomar os seus erros como falhas imperdoáveis, punindo-os com castigos diversos, que culminam, não raramente, com evasões e reprovações. Assim, tudo faz a escola e o seu ensino para impedir o aluno de verdadeiramente construir o seu conhecimento. Neste sentido, são contundentes as palavras de Maria da Glória Seber:

Nós, estudantes formados por velhas cartilhas, só podemos concluir que a menos que a pedagogia se renove estaremos formando uma multidão de indivíduos bloqueados no seu desenvolvimento intelectual. E, assim, à medida que o último decênio do século XX se esvai, também se esvaem as esperanças de um viver que nos dignifique. Se as escolas expulsam as crianças antes mesmo de elas alcançarem um nível de conhecimento que lhes permita maior participação na sua cultura e sociedade, isso significa fracasso da educação e, por extensão, fracasso de todo um povo (SEBER, 1997, p. 27)


Por quanto tempo o aluno foi desrespeitado na sua condição de aprendiz? Por quanto tempo se lhe negou o direito fundamental de traçar o seu próprio percurso estudantil e desenvolver suas habilidades e estratégias de apreensão do conhecimento, para que ele pudesse "aprender do seu jeito" o que mais lhe interessasse, descobrindo o ritmo mais apropriado ao seu desempenho cognitivo e instrumentalizando-se para concretizar seus projetos de vida?
Fazendo uma reflexão mais detida acerca do método tradicional de ensino, somos levados a pensar em como o conhecimento, desse ponto de vista, tem um propósito diferente do que concebemos hoje. Ou seja, em toda roda de conversa, acadêmica ou informal, nas discussões que desemboquem em questões de ensino, educação etc., percebemos que ninguém, do meio educacional, tem dúvidas mais, no que diz respeito à apropriação do conhecimento, ao seu uso como um instrumento de libertação e autonomia, sejam estas relacionadas às ações e atividades da vida em geral ou restritas ao âmbito econômico-financeiro.
Mas o ensino tradicional aponta para uma conotação diferente disso. Revela uma idéia de conhecimento controlado, desde a sua origem, e com intenção muitas vezes implícita de dar as cartas na forma de comportar-se das pessoas, tanto no presente como no seu caminhar pela vida, após sair da escola.
Se o conhecimento, nos moldes tradicionais (amparado na teoria empirista), é algo externo ao sujeito, a forma de "levá-lo ao aluno" é uma só: a transmissão. Mas o tipo de conhecimento a ser transmitido e as "intenções" ideológicas subjacentes ao ato de ensinar são diversas, e servem ao contexto social, econômico, cultural e político em que se insere o aluno. Sendo o conhecimento "transmitido", quem decide sobre o que se vai fazer com ele é uma questão que favorece mais (ou exclusivamente) a quem transmite, pois enquanto se ensina se tem um campo aberto e propício prá influenciar a forma de utilização daquele conteúdo.
Transmitir pressupõe repetir, reproduzir. Entendo que não se pode transmitir idéias, mas modelos. As idéias são constructos estritamente subjetivos, enquanto os modelos são produtos elaborados a partir de idéias, mas objetivados para uso individual ou coletivo, com os mais diversos propósitos. Ser aluno, num sistema de ensino que privilegia a transmissão de conhecimentos, é ser forte candidato a tornar-se um repetidor de modelos, e isso tem desdobramentos os mais diversos possíveis e os mais terríveis imagináveis. Ao contrário, o ensino construtivista é um empreendimento experimental, em que cada intervenção é um experimento, onde o professor observa as reações do aluno à sua intervenção, abandonando ou modificando sua intervenção, se as crianças não responderem. O ensino construtivista, jamais é entediante, pois os alunos sempre trazem material novo para o professor trabalhar (DEVRIES et al., 2004).
Nos últimos tempos a reprodução de modelos tem sido contestada pela sociedade, e os motivos que levam as pessoas a esse posicionamento são muitos, destacando-se entre eles questões relacionadas aos regimes de governo, às condições de vida, à convivência social, à distribuição da terra, ao acesso à educação de qualidade, em todos os níveis e ao acesso às novas tecnologias.
Com a objetiva decadência dos velhos modelos, abre-se uma comporta para uma transformação cultural, conseqüentemente. Modelos novos ou semi-novos de economia e política, a princípio, têm força suficiente para desencadearem mudanças completas e até radicais, em certos aspectos, noutros modelos, dentre eles o de educação. Aliás, pensar que transformações no modelo de educação vêm a reboque das transformações de outros modelos prévios é uma lástima, porque, a rigor, o modelo de educação é que deveria ser o front dos processos de transformação de outros modelos, fosse a educação entendida e praticada com a importância e a responsabilidade social que lhe são de direito, por vocação sócio-humanística.
E nessa esteira das transformações do modelo de educação é que se entende e se aceita como superado o modelo tradicional de ensino, fundamentado principalmente, pela teoria empirista do conhecimento, com toda a sua configuração resumidamente descrita acima e propugna por uma outra teoria que ampare a nova concepção de mundo, que ganha espaço nos indivíduos e no coletivo da sociedade: a de sujeito autônomo, responsável pelo seu próprio destino, consciente da necessidade de organizar-se em grupo para conquistar mudanças sociais e políticas, e tendo no conhecimento construído por si próprio, em interação com o meio, o aporte instrumental mais importante para superar os desafios colocados na sua trajetória histórica.
Imediatamente supera-se a idéia de transmissão e se elege o conhecimento construído como a nova realidade educativa, ao tempo em que se relativiza a importância do ensino, como valor em si mesmo, do método como instrumento determinante, bem como a do professor, como agente educativo detentor de autoridade e dono único do saber, abrindo-se espaço, em conseqüência, para a figura do sujeito do conhecimento (aluno ativo), substituindo a figura de aluno receptor de informação, passivo, repetidor e agente futuro de perpetuação de modelos.
No seio do construtivismo a palavra de ordem é "construção"; e quando se aventa a idéia de construir o conhecimento, afasta-se, por princípio, a noção de transporte e transmissão, e supera-se a possibilidade de aulas expositivas como suporte metodológico, a idéia de conhecimento pronto e acabado a ser "depositado" no aluno. A concepção de professor passa a ser outra, a de promotor da construção, orientador e incentivador de atividades criativas, instigadoras do pensamento, em harmonia com o desenvolvimento contextual do aluno.
Ainda segundo a teoria construtivista, o aluno interage com o meio ao seu redor; e nesse meio evidentemente há de tudo, mas na esfera do conhecimento destacam-se a figura do professor, do aluno, enquanto sujeito cognoscente, dos seus colegas da classe e dos conteúdos a serem assimilados pelo sujeito cognoscente. Os conteúdos submetidos ao aluno são comparados à sua experiência prévia, como se fosse uma pesquisa ao arquivo pré-existente das estruturas mentais do indivíduo, para verificar o que é que já existe ali, que servirá de referência àquele conteúdo.
Conforme se sabe, ao chegar à escola, mesmo em se tratando de educação infantil, a criança já traz consigo experiências prévias que eliminam qualquer possibilidade de que a sua mente seja o que se chama de tabula rasa, a idéia de que a mente da criança, ao ingressar na escola, seria como uma folha em branco, em que se começaria a registrar tudo, mas só a partir das suas primeiras experiências escolares, quando começariam as suas aprendizagens formais, à medida que o conhecimento vem vindo do exterior e lhe vai sendo repassado pelo professor. Esta é uma hipótese alicerçada pelo empirismo, e que não mais tem sustentação, na perspectiva de ensino e aprendizado atual.
Enfim, o Construtivismo dá uma configuração nova ao processo de aprendizado da leitura e da escrita, trazendo a este cenário conceitos novos como diálogo, ajuda, construção, formação de novas estruturas mentais, equilíbrio psicológico, assimilação, acomodação, tudo isso fundamentado nessa teoria que, pelo menos nesse momento histórico, é a que melhor explica esse aspecto da realidade educativa, isto é, o processo de alfabetização (SEBER, 1997).



CAPÍTULO III

O PROFESSOR CONSTRUTIVISTA


Já que se pretende, aqui, focar a alfabetização de uma perspectiva de aprendizado, em que o aluno torna-se co-piloto do processo, necessário se faz que se procure traçar um perfil de professor que se circunscreva nesta proposta, tendo-se em vista que, ao contrário do que muita gente pensa, o ensino construtivista não relativiza a figura do professor e não propõe que ele seja dispensável no processo. Pelo contrário, nessa perspectiva, a figura do professor permanece de suma importância, mas com outra conotação: a de mediador e orientador, facultando ao aluno interagir com o objeto de conhecimento, e a partir daí construir, em um processo contínuo, novas estruturas mentais e evoluir no seu desenvolvimento cognitivo.
Quando se levanta a idéia de que o ensino, na sua dimensão ampla e geral, e na aquisição da lectoescrita, pelas crianças, em particular, não cabe mais no formato tradicional, cuja prática pedagógica tem na teoria empirista do conhecimento a sua principal base epistemológica, pela qual o ensino é focado no objeto, o que implica no conhecimento vindo de fora, transmitido ao aluno, que a sala de aula é um lugar onde não se estimula o pensamento mas a repetição, a cópia e a memorização, que o professor reúne em si todo o conhecimento a ser transmitido, sendo, por isso, respeitado, temido e inquestionável, então é preciso que se conceba um novo perfil de professor que irá substituir o primeiro, já que a proposta de ensino é nova e transformadora.
Começar dizendo que o professor construtivista é a negação do professor tradicional não é suficiente, como não é suficiente dizer que o construtivismo é, simplesmente, a negação do método tradicional de ensino. Negar a transmissão, somente, pode resvalar para o espontaneísmo, por exemplo, e não lograr atingir uma prática pedagógica assentada na interação, na construção do conhecimento. Negar, somente, o professor tradicional, é dizer, apenas, o que o novo professor não deve fazer, e isto, por si, pela mesma via, não leva a lugar nenhum.
Urge, portanto, que se faça uma reflexão acerca do papel do professor construtivista, configurando o seu perfil na relação com o aluno, na sua prática pedagógica e na concepção epistemológica que lhe serve de referencial para a produção do conhecimento. Mas para que isso se concretize de forma mais eficaz, vamos recorrer ao método e ao professor tradicionais, não para simplesmente negá-los, mas para tomá-los como parâmetro, em nossa reflexão.
Comecemos por uma indagação: é a escola a única instância em que se dá o conhecimento, particularmente a aprendizagem da leitura e dá escrita? No modelo tradicional, sim. E Ana Luiza Bustamante, endossa esta afirmação, quando observa:


...da forma como tem sido vista na escola, a tarefa de ensinar adquire algumas características (é linear, unilateral, estática) porque, do lugar em que o professor se coloca (e é colocado), ele se apodera (não se apropria) do conhecimento; pensa que o possui e pensa que sua tarefa é exatamente dar o conhecimento à criança. Aparentemente, então, o aprendizado da criança fica condicionado à transmissão do conhecimento do professor.
Desse modo, o professor tende a monopolizar o espaço na sala de aula: seu discurso predomina e se impõe. Daí sucede que o estatuto do conhecimento passa pela escolarização, isto é, que a escolarização é constitutiva do conhecimento. O que quer dizer: "quem não vai à escola não possui conhecimento" (BUSTAMENTE, 2003, p. 31).



Estas afirmações têm implicações que se opõem à concepção de ensino tradicional. Primeiro, o professor se ilude, ao imaginar que o conhecimento é uma propriedade sua e que seu papel, ali naquele espaço (escola, sala de aula), é dar, literalmente, esse conhecimento ao aluno, imaginando que está ensinando e que o aluno está aprendendo; segundo, continua iludindo-se o professor, ao imaginar que somente no espaço da escola, do ensino formal, é que se aprende, afastando a possibilidade de a criança alfabetizar-se ou iniciar-se na leitura e na escrita fora do âmbito da escolaridade formal.
Pior ainda é o professor que assim procede conceber o conhecimento como algo estático, que deve ser recebido pelo aluno da forma que lhe é transmitido, e cristalizado dessa mesma forma, sem sofrer nenhuma transformação, enfim, sem ser ressignificado pelo aluno
. Hoje não se tem mais dúvida de que a criança, ao ingressar no ensino formal, já tem algum conhecimento da escrita, contrariando, desse modo, a crença (equivocada) de quem imagina estar essa criança confrontando-se com algo do qual não faz a mínima idéia, ao iniciar-se no processo formal de alfabetização. Isto fica bem claro nas palavras de Ana Teberosky:


Afirmamos em diversas ocasiões ? e continuamos fazendo isso ao longo deste livro ? que o início do conhecimento sobre a linguagem escrita não depende do manejo pessoal da escrita e, portanto, não coincide com o início da escolaridade obrigatória. Embora pareça paradoxal, o início do conhecimento sobre a notação escrita propriamente dita também não coincide com a escolaridade, embora esteja intimamente ligado a ela (TEBEROSKY, 1992, p. 41)


Cai, portanto, o mito de que o aluno é uma tabula rasa ao ingressar na escola, e isso, por si, já desautoriza uma prática pedagógica alicerçada no empirismo.
Por outro lado, o professor construtivista, com base na Epistemologia Genética de Piaget, afasta todas as possibilidades de ensinar a criança a ler e escrever. Fundamentado nesta teoria, esse professor concebe a elaboração do conhecimento como uma construção do individuo, mediada pela interação social, em que o professor, bem como outras crianças que estão numa fase mais adiantada do desenvolvimento cognitivo, é peça fundamental, mas não perde de vista o fato de que ninguém constrói o conhecimento do outro.
Ora! Se o conhecimento é uma elaboração do próprio sujeito, entra aí a idéia de sujeito ativo, que, na perspectiva construtivista, se opõe ao sujeito passivo do modelo tradicional de ensino. Com base na definição de sujeito intelectualmente ativo de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1999, p. 32), o sujeito ativo se caracteriza não por ter uma agenda extensa de atividades, nem por manter-se visivelmente ocupado, mas por ser aquele que compara, ordena, categoriza, reformula, comprova, formula hipóteses, reorganiza e por aí a fora. Isto em nada lembra o aprendiz "quieto", fechado ao raciocínio e aberto ao arquivamento integral do que lhe diz o professor.
Não fica, pois, difícil concluir que onde há professor empirista, tradicional, não há aluno ativo, por absoluta incompatibilidade epistemológica, psicológica e pedagógica. Assim, ou o professor reduz o aluno a um ser intelectualmente estagnado e inoperante cognitivo, ou transcende a concepção de ensino tradicional, operando uma superação consciente, pautada na teoria científica de inspiração construtivista, mas tendo cuidado de não se tornar um professor construtivista por mera opção, mas por considerar que esta teoria ainda não foi refutada por outra que defina melhor caminhos outros para se lidar com o conhecimento, agindo como um homem de ciência mesmo.
Um professor, enquanto homem de ciência, não é fâ de carteirinha desta ou daquela teoria. Pra ele tanto faz que uma teoria sustente o paradigma mais novo do processo de ensino e aprendizagem, ou desapareça, dando lugar a uma outra teoria que irrompa, trazendo novos e revolucionários conceitos. Ele agora procura tomar conhecimento da novidade científica, não sem um espírito crítico, evidentemente, e sem uma reflexão acerca dos novos postulados, mas promovendo debates e acompanhando o comportamento da comunidade científica, sobre esta nova realidade.
Por ser ele próprio um sujeito ativo e cognoscente, aberto a renovações e portador de atitudes investigativas, o professor construtivista não assume uma postura de cumplicidade cega com o conhecimento científico, porque esse procedimento contradiria na essência a sua própria condição de professor construtivista. Quando se aceita o conhecimento científico, faz-se-o, por se acreditar no rigor metodológico com que foi produzido, e não por uma questão de adesão por simpatia.
Sendo uma teoria científica, o construtivismo, além de apontar uma nova direção para o processo de ensino e aprendizagem, dando uma volta de cento e oitenta graus, em relação ao que pedagogicamente se praticava antes, em matéria de educação, tirando o aluno da condição de recipiente de informações e elevando-o ao posto de sujeito da aprendizagem, essa teoria respalda o professor com o prestígio que goza a ciência, por ser ela, amparada na pesquisa, o principal meio, atualmente, de se desvelar a realidade, mesmo não sendo isso possível, de forma completa.
Já vi professor comentando que não gostava de determinada teoria, porque ela era muito complicada e ele não lhe entendia os propósitos. Então este professor não gostava do que não conhecia. Preconceitos desse tipo acontecem muito no meio docente do ensino básico, principalmente. Ali ainda existe uma grande lacuna no que se refere a cursos de formação continuada, que tenham um programa que prime pela formação do hábito do raciocínio, da reflexão, do pensamento crítico, promovendo inquietações, rupturas conceituais, desconstruções, reconstruções. São situações desse tipo que vão lançar os germes do novo paradigma educativo e oportunizar aos professores poderem conhecer o perfil de um professor em estado tradicional ou em estado construtivista (esse em estado é para enfatizar que o professor encontra-se numa ou outra condição educativa, não por ter aderido a ela, gratuitamente, mas por encontrar-se de forma consciente convertendo em prática uma teoria em que acredita).
Quando se fala em professor construtivista fala-se, dentre outras coisas, da relação professor/aluno. Piaget (1932/1965), citado por DeVries et al. (2004), cita dois tipos de relacionamento entre adultos e crianças, um que promove o desenvolvimento desta e outro que o retarda. O que retarda é a heteronomia, ou moralidade da obediência, e o outro é a moralidade da autonomia. Se o indivíduo é heteronimamente moral, está sujeito a obedecer a regras morais vindas do exterior, dadas pelos outros, submetendo-se aos humores de uma autoridade qualquer, com a qual se relaciona direta ou indiretamente.
Já o indivíduo portador de uma moralidade autônoma obedece a regras morais que ele mesmo constrói. Portanto suas ações, sua atitudes, dependem das suas próprias convicções, livrando-o de ser um mero executor de convicções alheias.
Mas o que vêm a ser essas formas de moralidade, nas relações e interações do aluno com os seus colegas e com o professor, no contexto escolar e na sociedade como um todo? De um ponto de vista do ensino tradicional, o aluno, conforme comentado por diversas vezes neste trabalho, fica tolhido em sua liberdade de se expressar, de discordar, de ver as coisas de outra maneira, de desenvolver suas idéias próprias, porque permanece todo o tempo tendo de concordar com o discurso linear e repetitivo do professor, que o sufoca com transmissões de conteúdos muitas vezes descontextualizados e por isso não significativos e desinteressantes, e não contente com isso, ainda lhe exige reprodução de tudo o que diz, sabe Deus prá que.
Nessas condições, o professor, mesmo que não o faça com um propósito definido de "engessar" o aluno no meio do mundo (e isso é bastante factível, quando pensamos que muitos professores tiveram uma escola semelhante), está submetendo-o a um tipo de moralidade heterônima, em que ele, o professor, assume a posição de autoridade com poder coercitivo, e o aluno ? às vezes para o resto da vida ? assume a mera posição de indivíduo obediente.
Numa escola que leva em conta uma metodologia fundamentada em princípios dialógicos, dialéticos e interativos, onde predomina uma relação horizontal, em que o professor mais se preocupa em coordenar o processo de ensino e aprendizagem propondo, instigando os alunos à produção intelectual, buscando atividades significativas, reavaliando o processo, ajudando a construir idéias e promovendo atividades grupais, num clima de respeito mútuo, mais alguma coisa precisaria ser feita, a fim de que uma moralidade autônoma prosperasse na formação de seus alunos?
E por falar em respeito mútuo, nos valemos desta oportunidade para chamarmos atenção para um mito que não raro permeia discussões sobre a prática construtivista. Algumas pessoas argumentam, equivocadamente, que nesta perspectiva fica o aluno com autonomia de mais, em sala de aula, e isso pode levá-lo a não ouvir e respeitar o colega. O professor construtivista que conhece bem as principais teorias que embasam esta proposta, quais sejam, a "Epistemologia Genética" de Piaget e "Psicogênese da Língua Escrita" de Emília Ferreiro, sabe que um dos pilares do construtivismo reside na cooperação. Assim, afasta-se a possibilidade do individualismo, este sim, promotor da falta de diálogo ? não instigador, portanto, da atenção à fala do outro ? e, sub-repticiamente, colaborador da falta de respeito ao outro (professor e colegas). Cabe ao professor dar ênfase aos aspectos do respeito e da atenção ao outro, durante as atividades de grupo, boas ocasiões para se trabalhar o exercício da liberdade responsável, enquanto componente de peso no desenvolvimento integral do aluno.
Para fecharmos esta parte ? mas nem de longe pensando em esgotá-la ?, e ainda nos baseando em DeVries et al. (2004), entendemos ser oportuno registrarmos aqui a definição de educação construtivista que as autoras sugerem. Elas resumem esta definição em três palavras: interesse, experimentação e cooperação.
O interesse, colocado estrategicamente em primeiro plano, traduz uma condição necessária e fundamental para o aprendiz, na sua relação com o conhecimento. De uma perspectiva de construção, nenhum avanço pode efetivar-se no processo de alfabetização da criança, se o seu o objeto de estudo (a leitura e a escrita), lhe é apresentado de uma maneira falha, tornando-o pouco ou nada significativo, de modo a não lhe despertar o interesse. As autoras, acima mencionadas, recomendam que o professor construtivista, na busca por identificar o interesse das crianças, passem a observar o que esta meninada, espontaneamente, faz. Isto certamente vai dar aos professores subsídios importantíssimos para eles escolherem atividades "sintonizadas" com o interesse dessas crianças.
A experimentação, o segundo termo (não em importância) da educação construtivista constitui-se em ampla oportunidade para formação de conceitos. Ao participarem de atividades experimentais, em que elas mesmas fazem ou assistem atentamente a alguém fazer as coisas, as crianças, em qualquer nível de desenvolvimento, aprendem a estabelecer relações entre os fenômenos, com mais facilidade. A atividade, neste caso, tem significado, porque a criança se sente "dona" daquilo que ela própria está fazendo; e tem sentido porque, por exemplo, a reação dos diversos objetos ao toque, ao manuseio, é percebida pelo indivíduo, nas suas regularidades. Mais uma vez recorremos a DeVries et al. (2004), para citar exemplos por elas mencionados, como "regularidade dos objetos que caem ao serem tocados" e "a relação entre a altura de uma rampa e a distância que uma bola percorre, ao se deslocar de cima para baixo e percorrer extensões lineares planas que variam com a altura da rampa". Trabalha-se, neste caso, conhecimento físico e as relações lógico-matemáticas, em vários níveis de complexidade, todos contribuindo no processo de desenvolvimento da criança.
Na cooperação reside uma das principais características da educação construtivista. Criar uma atmosfera sociomoral cooperativa no ambiente de sala de aula e da escola é algo de que o professor construtivista não abre mão, e dá um novo significado à prática educativa.
No modelo tradicional de educação, algo no mínimo curioso acontece. Durante as atividades de ensino, quase sempre em sala de aula (a partir da pré-escola), os meninos e as meninas são coagidos a ficarem sentados, quietinhos, com o rosto voltado (de preferência sempre) para o professor, que considera olhar para os lados uma transgressão muitas vezes intolerável. Aí o diálogo entre crianças é impraticável, o interesse e o espírito de cooperação sufocados e a atmosfera sociomoral ostensivamente individualizada. Tudo isso parece constituir-se em valores importantíssimos que estão sendo desenvolvidos pela escola, dada a garra e a persistência dela em mantê-los.
Mas não demora muito e as próprias crianças, como que num ato simbólico de demonstração de que a atitude da escola não tem valor algum na formação delas, logo ali, no intervalo de recreio, comportam-se de maneira completamente diversa, dialogando entre si veementemente, olhando para mil lados, trocando abraços, consensuando e divergindo, perseguindo um comportamento sociomoral ao mesmo tempo autônomo e cooperrativo. A distância entre essas duas situações, a meu ver, não encerra nenhum mistério. Pelo contrário, demonstra que a escola está na contra-mão do desenvolvimento integral da criança e que não está formando para a vida.
Como fica, então, a figura do professor, que medeia o currículo de uma escola em que trabalha ? como esta do exemplo -, e os alunos, para os quais esse currículo se direciona? Como ficam as convicções epistemológicas desse professor? Será que um professor consciente da teoria que deve fundamentar a sua prática pedagógica admite trabalhar um currículo que sinaliza numa direção contrária às suas convicções, só para segurar um emprego?

CAPÍTULO IV

O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

a) Como é visto o processo de aquisição da leitura e da escrita, de uma perspectiva tradicional de ensino

Todos quantos passaram pela escola, há vinte, trinta anos atrás, e muitos que por ela passam ainda hoje, experimentaram e experimentam um processo de alfabetização calcado no ensino. Tudo, nesse contexto, gira em torno do ensino. Daí decorrem as preocupações com os currículos, as maneiras de ensinar - os chamados métodos -, a forma como os livros didáticos são elaborados, a escolha dos materiais didático-pedagógicos. Enfim, tudo, na atividade acadêmica, reflete um sistema educacional que tem no ensino o seu principal foco.
É incrível como a questão do ensino, na esfera formal, tem sido perseverada, assumindo ênfase e altos valores, em detrimento do sujeito aprendiz. Observe-se que, quando há referências à educação, seja em conversas, seja em textos etc., como é que se coloca o ensino no foco central da educação. Comentários como "aquele colégio tradicionalmente tem um ensino de boa qualidade", "que professor excelente! A forma como ele ensina é espetacular!", "fulano fez carreira brilhante no ensino, e hoje é um emérito educador" são comuns, e refletem bem o conceito que as pessoas construíram, ao longo do tempo, sobre a forma como se trata e se trabalha o conhecimento na escola.
Isso é coisa arraigada em nossa cultura, e muito tempo vai passar, até que a figura do educador não seja associada ao ensino, como principal foco pedagógico. Será uma revolução cultural, do ponto de vista educativo, longa e meticulosa. É que ela tem de começar, primeiro (e isso já está acontecendo, felizmente, embora ainda a passos lentos), no seio dos sistemas de educação. É aí que ela deve iniciar-se e tomar corpo, não com o propósito único de desassociar o "professor" do "ensino", como opção epistemológica, simplesmente, porque isso, apenas, nada repercute no processo de aprendizagem, mas como uma necessidade premente de transceder a forma como é realizada a alfabetização, alçando-a da categoria de ensino, para o status de construção do conhecimento da leitura e da escrita.
E por que tudo isso? Só para prestigiar as teorias de Piaget e Vygotsky, já que é nelas, principalmente, que se inspira o construtivismo? Nada disso. Não se trata de prestigiar ou desprestigiar essas ou outras teorias quaisquer, porque, na esfera da ciência, as coisas não acontecem obedecendo a uma relação de prestígio, mas à custa de muito trabalho, perseverança e dedicação. Esta palavra não permeia as produções científicas, salvo pela sociedade, para adjetivar cientistas de renome, autores de pesquisas sérias e construtores de teorias revolucionárias, como, aliás, são estes nomes acima citados, dentre outros . Mas é exatamente porque essas teorias existem e porque não devem, de maneira alguma, ser ignoradas, na sua existência e na sua essência, por quem faz educação, seja enquanto professor, coordenador de área ou disciplina, gestor ou especialista.
Podemos afirmar que realmente a existência delas não é ignorada mesmo ? o que não pode ser afirmado, integralmente, quanto a sua essência -, já que para alguns elas revolucionam mesmo a educação, pela nova realidade educativa que desvelam, tirando o foco do ensino, somente, e colocando-o, também, no aprendizado, e que, para outros, elas não passam de modismos, aos quais não se pode pensar em não aderir, para não serem tachados de "arquaicos".
A distância que existe hoje, entre o ensino tradicional e o paradigma educativo construtivista, é o principal problema que realmente necessita ser superado, o quanto antes, para não se perder mais tempo, no que diz respeito ao desenvolvimento das crianças, cujos caminhos de vida foram no passado e ainda são fortemente influenciados pela escola. É aproximar a prática da teoria de vanguarda, é atualizar o processo. Os sistemas educacionais de inspiração tradicional precisam redimir-se, junto às sucessivas gerações passadas e presentes, por ter-lhes prejudicado o desenvolvimento, sufocado vocações, desvirtuado carreiras ? quem sabe? ? brilhantes.
Da perspectiva pedagógica, e conforme mencionam Ferreiro e Teberosky (1999), o problema da aprendizagem da leitura e da escrita ancora-se nos métodos de ensino. Segundo elas, a preocupação dos educadores tem consistido em buscar o melhor método, aquele que encerra maior eficácia, e que dá os melhores resultados, relativizando ( ou ignorando, mesmo) a principal "peça" do processo, o sujeito da aprendizagem. Do transmitir ao orientar o aprendizado há uma distância enorme a ser percorrida. Isso implica em toda uma reconfiguração do processo, passando por toda uma re-análise curricular e uma reavaliação da prática pedagógica e docente. De uma perspectiva construtivista, a alfabetização, que, como dizem Ferreiro e Teberosky (1999), "estava centrada na avaliação dos métodos de ensino", como algo externo à criança, e que a ela deveria ser transmitida, passa a ser vista como um processo de construção do aprendizado da leitura e da escrita, e assume novo significado na educação. A aquisição da lectoescrita agora, como qualquer outro aprendizado, passa a ser algo construído a partir da interação da criança com o professor, com o código escrito e também com outras crianças, assumindo posto importante como parte integrante do desenvolvimento da criança, por passar a ser algo construído por ela, implicando em modificações na sua estrutura psicológica. Oliveira faz a seguinte observação:


Vygotsky enfatiza em sua obra, a importância dos processos de aprendizado. Para ele, desde o nascimento da criança, o aprendizado está relacionado ao desenvolvimento e é "um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas". Existe um processo de desenvolvimento, em parte definido pelo processo de maturação do organismo individual, pertencente à espécie humana, mas é o aprendizado que possibilita o despertar de processos internos de desenvolvimento que, não fosse o contato do indivíduo com certo ambiente cultural, não ocorreriam (OLIVEIRA, 1997, p. 56).
Ai está. Despede-se o processo de aprendizagem do âmbito da transmissão, através da ênfase nos métodos, como o entendia a concepção empirista, principal marco teórico do modelo tradicional de ensino. Agora, aprender a ler e escrever não é mais "desenvolver uma habilidade" por meio de métodos eficientes de ensino, mas construir o conhecimento, significando isso assimilação, acomodação, construção de estruturas psicológicas e desenvolvimento, num contexto cultural.
O termo "despede-se" não está significando, aqui, evidentemente, um fato consumado, porque, como sabemos, esse fenômeno (passagem do ensino tradicional ao aprendizado, nos moldes construtivistas) longe está ainda de ser uma realidade concreta e universal, a ser viabilizada na prática, não como uma mistura das concepções tradicional e construtivista, mas como modelo construtivista integral, respeitando-se a dimensão dialética do processo de ensino e aprendizado, e o meio social em que está inserido o aprendiz.
Pelo menos no Brasil isso ainda não acontece, salvo algumas tentativas pioneiras,bem ou mal sucedidas. O termo "despede-se", portanto, tem a intenção de colocar o construtivismo como uma possibilidade real, amparada cientificamente, à disposição dos sistemas e das instituições educacionais e dos professores, a quem cabe historicamente conceber, construir e implementar uma práxis educativa do tamanho das reais necessidades humanas e sociais.

b) O processo de alfabetização, numa perspectiva construtivista

Neste item pretendemos aprofundar um pouco as nossas reflexões sobre o processo mesmo de alfabetização, desta vez não tomando como referência a alfabetização nos moldes tradicionais, salvo quando for necessário para a compreensão de um raciocínio, mas refletindo mais acerca dos pressupostos teórico-metodológicos que fundamentam a aprendizagem da leitura e escrita, partindo da concepção construtivista.
As idéias revolucionárias que surgiram nas últimas décadas, sobre as novas perspectivas do processo de alfabetização, têm como um dos seus principais expoentes a pesquisadora Argentina Emília Ferreiro. Em Ferreiro (2001, p. 9) esta pesquisadora elege e admite oficialmente como principal referência de sua pesquisa sobre leitura e escrita a teoria de Piaget, outro pesquisador por demais conhecido no meio educacional, pela importância de sua obra, no contexto da produção do conhecimento científico, na área de educação, mesmo não tendo sido ele mesmo um profissional da educação ou mesmo um pesquisador de problemas educacionais, diretamente.
Ferreiro, nessa mesma obra, enfatiza que Piaget, por sua vez, no desenvolvimento das pesquisas que culminaram com a sistematização da sua teoria, partiu de uma pergunta fundamental, que guiou suas investigações epistemológicas e psicológicas: como se passa de um estado de menor conhecimento a um estado de maior conhecimento? E acrescenta:
Para responder a esta pergunta, em primeiro lugar é preciso procurar identificar os modos de organização relativamente estáveis que podem caracterizar os níveis sucessivos de conhecimento em um dado domínio; todavia, o problema central é compreender os processos de passagem de um modo de organização conceitual a outro, explicar a construção do conhecimento (FERREIRO, 2001, p. 9).
Pronto. Ai está. Compreender os processos de passagem de um modo conceitual a outro, explicar como se constrói, como se elabora o conhecimento. Entendo que melhor idéia para se começar uma reflexão sobre como aprender a ler e da escrever é difícil de se encontrar. É nesta seara que pretendemos aportar, no âmbito deste trabalho, exatamente porque tem sido este problema que muitas inquietações tem nos provocado, desde que começamos a atuar como professor no nível de ensino hoje equivalente ao ensino fundamental. Não fomos exatamente alfabetizador, mas pudemos testemunhar, nas séries mais elevadas daquele nível de ensino, como alguns alunos ali chegavam desprovidos do domínio completo da leitura e da escrita, e como isso muito contribuía para obstaculizar-lhes o aprendizado de outros conteúdos.
Este nunca deixou de ser um aspecto preocupante, tendo em vista que vem reincidindo insistentemente na educação, ao longo do tempo, e tem acompanhado alguns alunos até o nível da universidade, causando sérios transtornos durante o curso de graduação e, mais tarde, no exercício profissional.
Acreditamos que o entendimento do fenômeno da construção do conhecimento tem se constituído no grande problema que a maioria dos professores e educadores enfrenta no seu dia-a-dia, qualquer que seja a área em que atuem, qualquer que seja o tipo de conhecimento (físico, lógico-matemático ou arbitrário convencional) que estejam, em dado momento, trabalhando em sala de aula.
Trabalhar o conhecimento sem compreender como o ser humano o constrói, sem ter consciência de como se dá a evolução ou passagem de um modo conceitual a outro, realmente é algo no mínimo esquisito, para profissionais da educação. É reduzir o fazer do educador a um exercício mecânico, fundamentado apenas no senso comum, desprezando o componente científico, que, através das teorias já mencionadas, vem tentando desvelar uma realidade tão fundamental, não só para alfabetizadores, mas para qualquer instância em que existam sujeitos cognoscentes.
Não se pode afirmar que as teorias existentes já dão conta de cobrir todas as demandas de compreensão da forma como é construído o conhecimento pelo indivíduo (e certamente isso não vai ser possível nunca). Entretanto, as teorias de Piaget e Vygotsky ? para citar as mais conhecidas - constituem hoje o paradigma educacional da aprendizagem, e o mínimo que o educador pode fazer é não ignorá-las. Mais do que isso, por uma questão de responsabilidade profissional e social, o educador está obrigado a conhecer a essência dessas teorias, num grau de profundidade que lhe permitam seu nível de formação e suas condições de trabalho.
Não se pode desconsiderar que o ofício de professor, ainda nos dias atuais, é permeado por sérias e múltiplas dificuldades, e a formação continuada, a reciclagem, como é mais conhecida, é a mais premente. Sua ausência desmotiva os estudos tão imprescindíveis ao docente, e este, sem a ajuda de técnicos educacionais, tornam-se completamente desmotivados e desencorajados a ousar uma leitura de livros teóricos da área de educação. Ele sabe, e com razão, que nada ou muito pouco entenderiam e terminam "deixando como está prá ver como é que fica".
Vamos formular o nosso primeiro questionamento deste item, relacionado ao problema da aprendizagem da leitura e da escrita, como forma de iniciarmos as nossas reflexões. Começamos pelo que entendemos ser o ponto fundamental do processo: será que as crianças entram na escola regular, sem nada saberem sobre a escrita? Essa indagação procede, porque muitas escolas ? por que não dizer, quase todas ? tratam as suas crianças em idade de alfabetização, como se elas nada soubessem a respeito da escrita. Este procedimento decorre do fato de que as escolas não aceitavam, até há bem pouco tempo (e, como dissemos, muitas não aceitam até hoje) as produções das crianças como tendo valor lingüístico e por isso consideravam essas produções como qualquer outra coisa, menos como produção escrita.
Emília Ferreiro dá uma contribuição definitiva, acerca disso, quando categoricamente afirma: As produções escrita das crianças ? que antes eram consideradas meras garatujas ? adquiriram um novo significado. Agora sabemos interpretá-as como escritas verdadeiras que não se assentam nos princípios básicos do sistema alfabético, mas às quais não falta uma sistematização. São escritas que se baseiam em outros princípios. As crianças podem usar letras como as nossas, e escrever "em outro sistema", assim como, no início da aquisição da linguagem oral, podem utilizar palavras da linguagem ambiente, mas com diferentes regras de combinação (FERREIRO, 2001, p. 83).
Com este depoimento desmistifica-se a condição da criança que cruza o batente da escola regular em busca de alfabetizar-se.
Liliana Tolchinsky Landsmann é mais uma referência credenciada que vem subscrever essa conclusão a que chegou Ferreiro, quando afirma, em (LANDSMANN, 1993) que as crianças sabem sobre escrita muito antes de começarem a usá-la com propósitos de comunicação.
Agora, ao contrário de antes, não se admite mais, salvo por ignorância ou síndrome de pré-aposentadoria, achar engraçado o que a criança produz como escrita, mas não entender e aceitar que aquilo é escrita sim, ao invés de considerá-lo umas coisinhas feias, próprias da idade, que passarão com o tempo, porque o que interessa mesmo é o sistema de escrita convencional dos adultos, que é o que a escola adota e leva a sério.
É nesse ponto que um grande equívoco tem-se perpetuado e trazido, durante longo tempo, conseqüências negativas para a aprendizagem da leitura e escrita. A escola, que não tinha conhecimento desse detalhe, não levava em consideração o que se pode chamar de conhecimentos prévios da criança sobre a escrita. Resultado, desconsiderava tudo isso e impunha a aprendizagem do sistema oficial, partindo do zero, causando os impactos negativos que culminavam (e culminam, nos tempos atuais) em bloqueios mentais e até desistências e evasões.
O que se espera que a escola faça, a partir do conhecimento desse aspecto, é que, ao invés de ignorar as produções escritas das crianças, passe a respeitá-las e trabalhe na perspectiva de, a partir delas, iniciar um processo de transição para o sistema oficial, obedecendo ao ritmo de cada criança e fundamentado numa metodologia sócio-interacionista.
Uma outra questão não menos importante do que a anterior, é esta que apresentamos também na forma de uma pergunta: é a aquisição do sistema alfabético de escrita, a aprendizagem de um código de transcrição, ou é um objeto de conhecimento?
Elucidar essa questão é imprescindível, porque, dependendo da concepção que se tenha da maneira como se realiza o aprendizado da leitura e da escrita, os métodos aos quais se recorre e as práticas pedagógicas daí decorrentes podem tomar rumos completamente diferentes
Mais uma vez Piaget, citado por Emília Ferreiro em (FERREIRO, 1999), define esta questão, ao introduzir a escrita como objeto de conhecimento. Se a escrita, agora, é um objeto de conhecimento e não mais a aprendizagem de um código, algo que vem do exterior e pode ser transmitido, então surge a figura do sujeito cognoscente, que é o sujeito que procura adquirir o conhecimento, que está inquieto com algum fenômeno que lhe chamou a atenção e deseja saber porque determinada coisa acontece da forma como acontece.
É o caso da aquisição da escrita. Sendo ela entendida como a aprendizagem de um código, dispensa a inserção, no processo, de um sujeito cognoscente, porque esse código deverá ser inserido na mente do aluno, não por meio de uma operação mental, resultante da interação desse aluno com o código, mas por outra via, a mnemônica, a repetição etc. Entra aí o conceito de sujeito passivo, que recebe, exercita, repete, copia, ao qual se contrapõe o conceito de sujeito cognoscente, ativo, que interage, observa, compara, desconstrói, refaz, assimila, acomoda, equilibra.
Aprender a ler e escrever, da forma construtivista, portanto como objetos de conhecimento, revoluciona toda a prática pedagógica até então consumada nas escolas e desautoriza a figura do professor como dono de um conhecimento a ser distribuído às crianças na forma de pequenas "rações" diárias.
Acreditamos que muita gente, quando tomou conhecimento da teoria genética de Piaget, bem como da concepção construtivista, já se fez a seguinte pergunta: "mas as pessoas têm aprendido a ler e escrever ao longo do tempo, e o método historicamente utilizado não tem sido outro que a transmissão do código escrito aos alunos. Se esta maneira de ensinar estivesse errada, ninguém teria aprendido.
Sem pretender sistematizar uma tese explicativa acerca deste questionamento, faremos algumas reflexões a respeito, até porque entendemos que a dúvida procede, levando-se em conta que os fundamentos da teoria genética ainda não são suficientemente conhecidos, o que causa certa confusão entre professores sobre o que está errado no ensino tradicional e o que está certo no aprendizado da leitura e da escrita, considerado de uma perspectiva construtivista.
Pensamos que não é exatamente a questão dos erros e dos acertos do processo, o que se põe em foco, quando se discute o modelo tradicional de ensinar versus o modelo construtivista de produzir o conhecimento, em nosso caso, o conhecimento da leitura e da escrita, mas sim a concepção que se tem sobre se a alfabetização é a aprendizagem de um código escrito ou um objeto de conhecimento.
Quem ainda não teve a preocupação de tentar um aprofundamento, mínimo que seja, neste assunto, não vê diferença alguma entre uma coisa e outra. É que nos livros, artigos científicos e similares, esse aspecto da realidade educacional é tratado amiúde, com o aprofundamento e o rigor científico que o assunto merece, mas, por isso mesmo, o labirinto do detalhe e o hermetismo da linguagem científica usada criam uma cortina que o separa do entendimento de muita gente, dando maior longevidade às confusões cognitivas e aos equívocos conceituais.
Quando se diz que a alfabetização se reduz à aprendizagem de um código escrito, está-se mexendo com todas as ovelhas do pasto e colocando-as, todas, de um lado só da gleba. Isto é, está-se, para começar, optando por uma posição epistemológica, o empirismo, e uma abordagem pedagógica, a tradicional, com todos os desdobramentos, estritos, pertinentes a essa opção. Por exemplo, admite-se que o código escrito é um conhecimento externo ao sujeito, que deve ser inculcado de fora para dentro. Para que isso aconteça, a função mental do aprendiz que vai ser mais solicitada será a memória, e os esforços físicos mais requisitados serão os exercícios de fixação e a repetição. Mais este conhecimento, assim adquirido, não vai ajudar muito no desenvolvimento mental da criança, porque ele pode ficar meio imobilizado, na memória, por um longo tempo, e vai dificultar o estabelecimento de suas relações com outros aspectos da realidade, afastando o indivíduo do entendimento sistêmico dessa realidade.
Assim a criança vai aprender a escrita? Vai sim, meio de forma mecânica, mas vai. Com o passar do tempo o indivíduo que dá continuidade aos estudos escolares "vai tirando da gaveta" as palavras e frases de que necessita, para escrever um texto simples, primeiro, depois um de um pouco mais de complexidade, a leitura vai acompanhando o ritmo, e a coisa vai andando. Só que, dessa forma, o percurso se torna mais longo e mais difícil. Assim, muita gente fica prá trás, na caminhada. Muitos, muitos mesmo, param a poucos metros do ponto de partida, outros (também muitos) nem chegam a deslocar-se, e alguns poucos se tornam grandes leitores e escritores.
O que aconteceu, então, com esses "alguns poucos" privilegiados? Penso, primeiro, que eles se impuseram um grande esforço e, principalmente, transgrediram, deram um novo tratamento ao processo, mudaram por conta e risco os conceitos que tinham sobre o código escrito e foram vitoriosos (aprenderam a construir, à margem da escola e apesar dela, o conhecimento verdadeiro da leitura e da escrita introduzindo no processo a reflexão, que não existe na transmissão feita pelo modelo tradicional).
Mas quem ainda não ouviu falar dos alfabetos funcionais, que, segundo as estatísticas, há aos montes por aí? O que são eles, senão aqueles a quem foi inculcado o ensino da leitura e da escrita, aqueles que fizeram estoques destas informações nas suas "gavetas", mais não lograram adquirir a função alfabética, que é, nada mais nada menos, a operação permitida pelo instrumento escrita e pelo instrumento leitura? Eles até podem olhar uma palavra e pronunciá-la, podem até escrever uma palavra que alguém lhe dite, mas o que não conseguem é ler ou escrever uma frase e dar-lhe um sentido. Não seria algo parecido com a hipótese de alguém olhar para um bisturi e não atinar para o que ele serve, para a função dele? É que o bisturi é um instrumento cuja função só faz sentido para quem, como o médico, vive num contexto em que se curam pessoas utilizando-se instrumentos diversos, em que o bisturi é um deles. Para o médico o bisturi tem uma função determinada e faz sentido.
Para o aluno submetido a um ensino, onde teve de lidar com palavras soltas, ditadas pelo professor para ele escrever, sob pressão, sem que tivesse sido respeitado o seu tempo, o seu ritmo, bem como as hipóteses que anteriormente havia formulado acerca da escrita, é factível que esse aluno, num outro contexto, possa olhar um anúncio, ler uma ou mais palavras ali dispostas, mas não se dar conta da mensagem que elas tentam transmitir.
Focamos, nesta reflexão, a forma como é ensinado, de um modo geral, o código escrito, mas a mesma situação se estende a todos e quaisquer conteúdos que forem transmitidos pelo método tradicional, porque eles, da mesma forma, trazem em si a marca da imposição, do poder, do engessamento, da passividade, da linearidade de pensamento, da heteronomia, da falta de criatividade e do desrespeito à subjetividade.
Agora, viremos a página e analisemos o aprendizado da leitura e da escrita do ponto de vista do construtivismo. O código escrito, agora, é posto como um objeto de conhecimento, o que implica que há também um sujeito da aprendizagem, que é o sujeito cognoscente. Como vimos anteriormente, o sujeito cognoscente é o que busca o conhecimento, é aquele se interessa, que está ávido por apropriar-se do objeto de conhecimento. Ambos, sujeito e objeto, vão se relacionar, um vai agir sobre o outro, vão, portanto, interagir, numa arena em que o sujeito tem como pano de fundo a formulação de hipóteses e a reflexão.
No caso do código escrito, tomado aqui como objeto de conhecimento, a criança vai ser apresentada a ele, na escola, formalmente, digamos assim, porque ele não lhe é completamente um ilustre desconhecido. Ela já fazia idéia de quem se tratava, porque já o tinha visto em casa ou na rua, já tinha ouvido falar dele, já tinha as suas próprias representações a seu respeito , mesmo que agora, passando a conhecê-lo "pessoalmente", estranhe de uma ou outra coisa que imaginava fosse diferente nele. Referimos ao fato, mencionado em outra parte deste trabalho, de que as crianças, ao entrarem na escola, já trazem consigo algum conhecimento da leitura e da escrita, não como coisa herdada geneticamente, mas como resultado da sua própria experiência, enquanto ser no meio do mundo.
Pois bem, sujeito e objeto juntos, na escola. A proposta é que não se tente dar a este aluno o conhecimento do objeto, como se ao docente fosse facultado o direito de doar conhecimentos aos seus aprendizes, mas que se faculte ao aluno interagir com o objeto, num processo em que entram em jogo inúmeras atividades mentais como testes das hipóteses subjacentes, formulação de hipóteses novas, decepções, ressignificações, assimilações e acomodações, na construção de novos esquemas ou novas estruturas mentais, que resultam num percurso de desenvolvimento psicológico, tudo isso em harmonia com o estágio mental que o aluno vive. Uma vez que é o sujeito que vai construir o seu próprio conhecimento a partir das atividades propostas pela escola, necessário se faz que o nível intelectual dessas atividades nem subestime a capacidade intelectual dele, naquele momento, nem esteja acima do seu desenvolvimento, tornando-a sem sentido para ele. Sobre isso Oliveira, adverte:
O processo de ensino-aprendizado na escola deve ser construído, então, tomando como ponto de partida o nível de desenvolvimento real da criança ? num determinado momento e com relação a um determinado conteúdo a ser desenvolvido ? e como ponto de chegada os objetivos estabelecidos pela escola, supostamente adequados à faixa etária e ao nível de conhecimentos e habilidades de cada grupo de crianças (OLIVEIRA, 1997, p. 62).
Como se pode depreender disso tudo, o processo de ensino-aprendizado, agora, gira em torno do aluno e não em torno do conteúdo e muito menos do professor. Agora aparecem conceitos como "nível de desenvolvimento mental do indivíduo", "nível das atividades propostas", por exemplo, que dão uma nova face ao modo como se adquire o conhecimento, na escola.
Não é mais o professor o pivô do que acontece em sala de aula, com poderes para decidir tudo, como o programa, as atividades e o modo de realizá-las, os ritmos, os tempos e os comportamentos. Um outro ator ? antes mero coadjuvante ?, agora entra em cena na condição de estrela, com a prerrogativa de interferir no roteiro, alterando-o, ajustando-o ao seu modo de interpretar e não o contrário. Os seus conceitos, para os fenômenos de sua experiência, nascem como resultado de suas ações físicas e mentais sobre o objeto, de dentro para fora, portanto, e não lhe são impostos de fora para dentro, num processo de digestão muitas vezes difícil e penoso, que pode deixar-lhe seqüelas para o resto da vida, como, por exemplo, aversão a escolas e a tudo que diz respeito a estudos.
O estudo, visto do ponto de vista construtivista, quando mediado com habilidade e competência pelo docente, torna-se um mister prazeroso, porque dá ao aluno a sensação boa de estar descobrindo, desvelando aspectos da realidade, no caso particular, aqui, de estar interpretando o sistema de escrita.
O terceiro assunto que trataremos, para fechar este item não é propriamente um questionamento. Pretendemos tratar da evolução da escrita na criança, partindo de uma perspectiva construtivista
Começamos pelo que entendemos ser o ponto fundamental da evolução da escrita, que Ana Maria Kaufman em (KAUFMAN, 1994), tão bem acentua quando afirma que todos os conhecimentos das crianças devem entrar juntos com elas, ao ingressarem na escola. Esta recomendação de imediato remete o processo de conhecimento do sistema de escrita à proposta construtivista, em que a criança, ao iniciar a sua alfabetização na escola, não vai ter que abrir mão das idéias que já trazia consigo, a respeito do que é ler e escrever, tendo que deparar-se com uma coisa nova, partindo do zero, fazendo o que lhe ordenam.
Esta recomendação dá um novo rumo ao processo, e sinaliza para um ensino do sistema de escrita que não é nem espontaneísta, dado que não prevê que as crianças permaneçam o tempo todo fazendo o que bem entenderem, em sala de aula, como se o aprendizado fosse condicionado apenas pela maturação biológica, e que, no tempo certo, cada criança aprenderia naturalmente, como num insight, a ler e escrever, nem, por outro lado, um ensino diretivista, fortemente pautado nas intervenções do professor, em que cada passo da criança, no âmbito de sala de aula, tenha de ser para cumprir à risca determinações prévias, estabelecidas pelo docente.
Nem uma coisa nem outra, é o que recomenda o paradigma atual da alfabetização de crianças, onde o domínio do código escrito é uma aquisição elaborada pelo indivíduo, num processo de interação entre sujeito e objeto de conhecimento, ou seja, entre o aluno e o sistema de escrita, em que se obedece a todo um itinerário evolutivo, respeitando-se o nível conceptual em que cada criança se encontra quando cruza o batente da escola; e para se conhecer o nível conceptual de cada criança, é preciso que o professor se dê ao trabalho de elaborar todo um plano de procedimentos, para diagnosticar com precisão os conhecimentos anteriores dela, a fim de que tenha plenas condições de propor atividades que insiram-se no seu nível de desenvolvimento proximal. Teberosky (1992, p. 72), adverte: "[...] acreditamos que o olhar evolutivo sobre o fato educativo não tem por que ser estreito. Ao longo das mútuas relações no âmbito psicopedagógico, no entanto, a perspectiva estreita tem predominado".
Essa perspectiva estreita, a que se refere Ana Teberosky, recai exatamente sobre a forma de pensar o ensino da leitura e da escrita como algo imposto de fora ao aluno, tirando-lhe o direito de encarar o objeto de conhecimento, estudá-lo, cercá-lo, observá-lo e desenvolver idéias a respeito do seu funcionamento, idéias essas que vão se aproximando aos poucos, em ritmos diversos, daquela realidade, até culminarem com o ato de identidade da relação idéias/sistema de escrita, ocasião em que se dá, por parte da criança, o domínio pleno da alfabetização.
Como já mencionamos que é preciso levar-se em conta os níveis de conceptualização da crianças, durante o seu processo de aquisição da lectoescrita, a fim de se poder proporcionar a elas evoluir nesse itinerário, faremos, a seguir, uma reflexão acerca desses níveis conceptuais, que se traduzem pelas hipóteses formuladas pelo indivíduo, durante a aprendizagem da língua escrita, como mencionamos antes, até haver a coincidência de suas idéias com o real significado do sistema gráfico.
Tomamos como padrão os quatro níveis conceptuais mais importantes, que regularmente são descritos pelos principais teóricos da alfabetização, acompanhados de uma análise por nível.
1. Nível pré-silábico ? neste nível a criança já faz uma diferenciação entre o modo de representação icônico e não-icônico, ou seja, entende que desenho é diferente de escrita e leva em consideração os eixos qualitativo e quantitativo, exigindo uma variedade de letras na palavra (afastando a possibilidade de repetição) e uma quantidade mínima de letras (em geral não menos de três) para poder ler ou escrever uma palavra. Neste nível ainda não há correspondência alguma entre as letras e os sons.
2. Nível silábico ? nível em que ocorre o início da fonetização, caracterizada pela relação entre as letras e os significantes sonoros. Uma característica marcante deste nível diz respeito ao fato de que a criança acrescenta ao seu conceituário a hipótese de que, a cada sílaba oral, corresponde uma letra, de modo que pode ou não levar em conta o seu valor sonoro convencional. Por exemplo, uma criança, neste nível de conceptualização, pode escrever a palavra "boneca" da seguinte forma: e n o, em que cada letra representa uma sílaba desta palavra, mas nenhuma delas tem a ver com o valor sonoro da sílaba que representa. Mas uma outra criança, num estágio um pouco mais adiantado, desse nível, pode escrever a mesma palavra (boneca) usando as letras o e a, em que, cada letra pertence realmente à silaba que representa e está em harmonia com seu valor sonoro.
3. Nível silábico-alfabético ? trata-se de um nível de consceptualização em que a criança trabalha com as hipóteses silábica e a alfabética, simultaneamente. As escritas produzidas neste período são familiares aos professores da primeira série, e são do tipo PTO, quando se intenciona escrever PATO, ou MIPSA, quando a intenção é escrever MARIPOSA, (KAUFMAN, 1994). Segundo esta mesma autora, ao longo do tempo esse tipo de escrita tem preocupado e confundido professores, porque, no entender deles, a escrita assim produzida era (e é ainda, para muitos docentes) tomada como omissões de letras, e crianças que assim procediam eram tidas como disléxicas, sujeitas a serem encaminhadas para consultório psicopedagógico.
4. Nível alfabético ? as produções escritas agora obedecem a uma correspondência entre fonemas e letras, ao contrário do nível silábico, em que essa correspondência era feita entre fonemas e sílabas.
Vale ressaltar, ainda com base em Kaufman (1994), que esta categoria inclui produções cuja amplitude foge ao âmbito do nível alfabético estrito, porque vão desde as que ainda apresentam traços silábicos e trocas de letras, até as que mostram avanços, porque, mais do que trabalharem corretamente o domínio da correspondência fonema-letra, mostram certa preocupação ortográfica, sinalizando algum cuidado em separar palavras, na escrita de orações.
Com relação às hipóteses anteriores, a hipótese alfabética mostra um avanço considerável, porque ela faculta a complementaridade entre a leitura e a escrita, levando-se em conta que o escrito já pode ser lido, tanto por quem escreve, como por outras pessoas alfabetizadas.
Entendemos que a descoberta desses níveis conceptuais, que resultou das pesquisas de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, publicadas no livro Psicogênese da Língua Escrita, constitui-se num marco teórico de fundamental importância para o processo de alfabetização, porque criou uma nova e paradigmática perspectiva de ensino da leitura e da escrita, que absolutamente não pode mais ser ignorada por nenhum profissional da educação, esteja ele diretamente em sala de aula em que existam crianças aprendendo a interpretar o sistema de escrita, ou tenha ele qualquer função vinculada a este nível de ensino.
Os docentes, as escolas que alfabetizam e por extensão a comunidade educativa em geral, ganharam um inestimável presente, com esta produção científica, porque as práticas pedagógicas que secularmente reproduziram equívocos graves durante a alfabetização de crianças, agora podem fundamentar-se num referencial confiável, porque científico, e realmente revolucionário, que mostra caminhos novos mais eficazes e menos sofridos para os sujeitos mirins da aprendizagem.
c) Implicações pedagógicas
Todas as reflexões feitas até agora, sejam aquelas cujo foco restringiu-se ao modelo tradicional de ensino, sejam as que se inspiraram na proposta construtivista, os seus desdobramentos pedagógicos precisam ser analisados, a fim de que elas não caiam na malha da aparência, em que determinada escola mostra uma fachada construtivista mas, na prática pedagógica, em nada se diferencia das escolas tradicionais.
A intenção ou não de se desenvolver uma prática pedagógica revela-se no dia-a-dia da sala de aula. No caso de se optar por uma prática pedagógica construtivista, as atividades devem abranger aspectos básicos do construtivismo. E esses aspectos revelam-se na concepção de aluno ativo, no diálogo, em atividades grupais, em desenvolvimento do raciocínio do aluno, em professor orientador/mediador e por aí a fora.
As atividades precisam ter significado para o aluno, sem o que distantes ficarão de despertar o seu interesse. Este aspecto é por demais conhecido de todos os que militam levando em conta o referencial construtivista. E mais do que despertar o interesse do aluno, o significado dos conteúdos e atividades propostos tornam-se necessários, porquanto são eles que fazem a articulação do indivíduo com o meio, são eles que permitem ao sujeito agir sobre o meio, transformando-o de acordo com suas necessidades. Como diz Marta Kohl de Oliveira (OLIVEIRA, 1997, p. 48), "São os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se no ?filtro? através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele."
A experimentação é outro aspecto que também está presente na prática pedagógica construtivista. É no contato direto com o objeto de conhecimento, explorando-o, reconhecendo-o, manipulando-o que os conceitos do sujeito são construídos, mesmo que, num primeiro momento, não sejam conceitos que reflitam na plenitude uma realidade específica. São "erros" que na concepção tradicional de ensino não são aceitos, sendo, por isso, rechaçados veementemente, mas que no construtivismo passam a ter uma nova conotação, e a serem tomados como um instrumento que induz a novas reflexões, refinando e ressignificando conceitos Servem para avaliar o nível conceitual do aluno até ali, naquele estágio em que ele se encontra, e permitir novos avanços cognitivos, continuadamente.
Dessa perspectiva o ensino contextualizado passa a ser prioritário, porque, primeiro, o sujeito precisa conhecer e atribuir significados ao meio que o rodeia, que sente, sobre o qual age, para depois estender esses significados a outras realidades mais distantes e externas ao seu contexto. O percurso no sentido contrário, pode causar sérios prejuízos ao aprendizado, porque esvazia-o de significado, levando ao desinteresse e até a evasões e desistências, se nos permitem repetir este fato.
A idéia de cooperação também está sempre presente no modelo construtivista de ensino, mas não se restringe apenas a se opor ao individualismo, enquanto posicionamento sócio político cultural. É que a noção de ajuda, de diálogo, de zona de desenvolvimento proximal (de Vygotsky), presentes nesta concepção, evocam atividades em grupo, de modo que todos os seus componentes participem ativamente, propondo, aceitando, rejeitando idéias, em que o grupo avança e recua como um todo sintonizado, chegando, todos, ao final da tarefa, com novas estruturas mentais construídas, embora os seus níveis de assimilação variem de indivíduo para indivíduo, de acordo com o nível de complexidade conceitual prévia de cada um.
São bem-vindas práticas pedagógicas. Não confundir, entretanto, práticas pedagógicas que facultam a reflexão com práticas que ensinam a pensar. Não são a mesma coisa. Na realidade, não se ensina a pensar. A criança sabe fazê-lo (KAUFMAN, 1994). O que se precisa é de um ambiente escolar que permita a reflexão, mas criar esse ambiente não é fácil. O professor precisa de tempo para compreender e processar uma situação nova, bem como ter acesso a uma capacitação adequada, que lhe permita a cooperação com seus pares.
Dentro desse universo reflexivo, a alfabetização é privilegiada, do ponto de vista construtivista, porque foi por este nível de ensino que ela começou, haja vista que tomou como pressuposto teórico a "Epistemologia Genética" de Piaget e a "Psicogênese da Língua Escrita" de Emília Ferreiro, ambas desenvolvidas através de pesquisas com crianças. As obras destes autores, em que pese não terem desenvolvido uma metodologia sistematizada e específica, voltada para o aprendizado da leitura e escrita, abrem um leque de possibilidades de se reunirem, sem limitações, instrumentos didático-pedagógicos que permitam desenvolver práticas pedagógicas circunscritas à teoria construtivista.


CAPÍTULO V


5. CONCLUSÃO

Fizemos uma caminhada pelas trilhas do que entendemos ser o alicerce do itinerário educativo formal de todos quantos têm a sorte de viver a experiência escolar, começando pela idade correta, pelo menos no ensino fundamental. Aqueles que, mais do que isso, antes passam pela educação infantil, mais completa é a sua felicidade.
Não pensamos ter feito uma caminhada por completo sistemática, no sentido de termos explorado todos os pensamentos e produções científicas no campo da alfabetização, e muito menos nos enganamos em pensar que trabalhamos este assunto em sua completa profundidade. Esta é uma produção monográfica, parte integrante de um curso de pós-graduação lato sensu, e também a nossa primeira produção científica, de caráter teórico-bibliográfico, fatos que nos permitem sermos compreendidos em nossa condição de pesquisador iniciante e em nossa modesta produção.
Coerentes com nossa proposta, procuramos nortear este trabalho focando a aquisição da lectoescrita de uma perspectiva construtivista, mas não conseguimos evitar análises e comparações, aqui e ali, entre esta perspectiva de ensino e o modelo tradicional de laborar o processo de alfabetização em sala de aula.
Reforçando as idéias que já tínhamos, antes de começarmos a leitura de alguns dos mais importantes autores e pesquisadores que tratam do processo de alfabetização, para nós ficaram mais claros os equívocos e danos cometidos pela escola, historicamente, ao tratar a leitura e a escrita como um "pacote" a ser fornecido pelo docente, autoritária e friamente, ao aluno, e este como um ente receptivo, armazenador, a decorar e reproduzir ? não só os pacotes imediatos da sala de aula, mas provavelmente os pacotes sociais, políticos e econômicos da vida, de forma mecânica, passiva e linear.
Ficaram claros para nós os motivos que levaram as escolas, pelo menos nos seus níveis iniciais, a se transformarem em bichos papões, em barreiras instransponíveis, em algo aborrecido, para muitos e muitos alunos, que logo no começo de suas carreiras estudantis desprezaram-nas, uns para sempre e outros por algum tempo, apenas, porque tiveram de a ela retornar, por sorte, por pressão da família ou outros motivos.
O peso da teoria genética de Piaget e das contribuições de Vygotsky ao novo paradigma do aprendizado, para nós consolidaram a noção que já tínhamos em processo ? às vezes vacilante -, de que, salvo por irrupção de uma nova teoria, que venha mostrar uma outra face desta realidade e propor novos rumos ao ensino da leitura e da escrita, não se pode fazer vistas grossas à proposta construtivista de se lidar com a interpretação do sistema de escrita.
Os argumentos de autores contemporâneos relevantes como Emília Ferreiro, Ana Teberosky, Fernando Becker, Luiz Carlos Cagliari, Ana Luiza Bustamante Smolka, Liliana Tolchinsky Landsman e Rheta DeVries, além de Ana Maria Kaufman, para recordar nossas mais recentes leituras, têm crédito suficiente para encorajarem docentes relutantes a tomá-los como referência e norte de suas atividades de ensino, e presentearem seus alunos ? num gesto de humildade e respeito ? com um ensino mais em harmonia com o pensamento contemporâneo.
A compreensão do que pensam os alunos sobre a lectoescrita, antes de entrarem na escola, é um fato que saiu do anonimato e do esquecimento, e hoje ocupa lugar de destaque no cenário das primeiras letras. Essa coisa de se pegar alunos "virgens", como se os tivesse tirado agorinha da caixa, para abrir suas cabeças e nelas depositar conteúdos, não dá mais para se sustentar como algo razoável. Há que se saber, primeiro, o que e porque pensam, para, ou dar continuidade a esse pensamento, porque ele está certo, ou, processualmente, reconstruí-lo noutra direção, quando ele não se encontrar, ainda, no caminho certo.
Hoje, aqueles que não aderiram à proposta construtivista, por desconhecê-la ou por terem alguma restrição contra ela, o que é louvável, neste caso, desde que se apresente argumento coerente e fundamentado, mesmo estes não são capazes de defenderem o ensino tradicional, por faltar-lhes argumentos e alicerces científicos.
As nossas constatações sobre os níveis de conceptualização dos alunos, durante o processo de aprendizado do código escrito, foi algo que realmente desmistificou por completo tudo o que tínhamos pensado equivocadamente sobre a alfabetização. Entendemos que hoje não restam dúvidas de que, se o docente trabalha nas séries iniciais do ensino fundamental com uma proposta de construção do conhecimento, realmente conhecendo a fundo e levando a sério as hipóteses dos alunos durante o processo, sabendo identificá-las no momento oportuno e pondo-as em prática; e se tudo isso estiver aliado a uma metodologia de trabalho pautada no diálogo, na construção grupal, na interação e no estímulo ao raciocínio, as coisas vão mudar, como se diz popularmente, da água para o vinho.
O fazer pedagógico transformar-se-á em algo prazeroso tanto para alunos como para professores. Quem não se sente bem, satisfeito e entusiasmado, quando dá por si em um momento de construção, de descoberta? Dá até para sonhar com uma escola em que todos, do diretor ao pessoal de serviços gerais, sentir-se-ão orgulhosos do trabalho que realizam, pela sensação de fazerem parte de uma instituição educacional em que não mais se obriga o aluno a "digerir" coisas que nem sempre (ou nunca) fazem sentido para ele, mas uma instituição que tem competência para proporcionar ao aluno, equilibradamente, todos os instrumentos de que ele necessita para construir os seus saberes, para desenvolver-se integralmente.
Os alunos, nesse contexto, vão enxergar a escola e as pessoas que nela trabalham com outros olhos, olhos de respeito, de admiração, de carinho. É que a escola, dessa nova perspectiva, vai aparecer na foto não mais como instituição excludente, opressora, fria, classificadora e reprodutora de modelos superados, mas como uma instituição promotora do saber, da autonomia e da liberdade de criar, ousar e transgredir prescrições com ranço de atraso.
Nada melhor, então, para o aluno, poder alfabetizar-se em uma escola dessas, porque o seu prazer pelos estudos vai começar cedo, e cedo ele vai aprender a aprender, vai sentir-se confiante de si, talvez no momento mais adequado de sua vida.
Finalmente, alertamos para o fato de que, neste trabalho, não foi intenção nossa, em momento algum, alardear o Construtivismo, enquanto teoria do aprendizado, gratuitamente. Quem fizer uma leitura atenta desta reflexão, perceberá que o tempo todo enfatizamos as questões do ensino de conteúdos com o viés de fora para dentro, do aluno passivo, do método mecânico e repetitivo, enfim, do modo tradicional (empirista) de ensinar, ao mesmo tempo que investimos na idéia contraposta do aluno como sujeito produtor do seu próprio conhecimento, em interação com o objeto que pretende conhecer, com a supervisão orientadora do professor.
Estivemos embasando todo o nosso itinerário reflexivo em autores consagrados, cujas idéias ainda não encontraram opositores convincentes e que, portanto, continuam em vigência no meio científico. Tivemos a preocupação, ao longo de todo o texto, de manter em dia o argumento de que, em termos de ciência, não se torce por esta ou aquela teoria, mas se permanece fiel ao "paradigmático", isto é, às teses que mais se aproximam do real, constituindo, de forma sistemática, um conjunto de conhecimentos aceitos, num determinado período histórico, sem se importar com o porte dos nomes envolvidos, nem se fascinar ingenuamente com o fulgor impactante das idéias.



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Autor: Nilton Rodrigues De Souza


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