Devaneios de uma artista solitária



À sombra errante de um tronco pouco frondoso, armo o cavalete, antecipando os momentos de deleite que terei novamente. Com as mãos trêmulas, ajeito a tela. Sobre a palheta, despejo um pouco de cada tinta. Os pincéis, o diluente e as espátulas me aguardam.
Numa cerimônia repetitiva, procuro uma posição confortável, mas que me torne o mais omissa possível atrás das pedras. Estou pronta. Num silêncio que só é quebrado pelas ondas na praia e pelo grasnar casual de alguma gaivota, escuto o pulsar acelerado de meu coração dentro do peito.
De repente, lá vem ele! O vento forte traz-lhe os cabelos muito pretos para o rosto, o que o faz erguer a mão para afastá-los num gesto que revela o quanto está distraído. Seu andar preguiçoso lembra o de um puma, sonolento e saciado depois de uma lauta refeição. Tem uma estatura avantajada, fato que lhe confere certo ar de respeito e, mesmo as pernas longas possuem sua graça. O rosto de traços marcantes é uma constante que sempre conduz a um segundo olhar e, olhando de novo, é difícil parar. Seu magnetismo está em todos os gestos, mesmo neste momento de profundo relaxamento onde pensa estar sozinho. Nada é premeditado. Ele é a mais pura obra de arte que a natureza resolveu criar. Sua voz, seu riso, seu cheiro... Tudo nele parece me atrair. Eu estou profundamente embriagada nesta sensação de enlevo.
Começo a pintar, sempre atenta a seus passos, mas procurando não deixá-lo notar que o observo. Penso quanto deve ser bom poder recostar a cabeça naquele peito largo, aspirar-lhe o cheiro que sinto quando passa por mim. E suas mãos! Grandes, fortes e tão incrivelmente belas! Seus olhos, de um preto intenso, inspiram as nuvens carregadas de chuva que escorrem do pincel, num plano mágico e celeste direto na superfície da tela. Meus dedos são destros mestres da criação do belo. Meu coração e minha alma gotejam na palma de minhas mãos. Os riscos vão surgindo numa miríade de cores que, a luz do sol, brilham, saltam e dançam antes de se lançarem, fugazes, para dentro de mim. E, à medida que ele se aproxima, os versos desenhados na tela se invertem, trocam de estrofe e o pincel em minha mão treme perigosamente. Já posso ver seu rosto, seus traços belos. Algo o faz sorrir. Inspiro a poesia desse sorriso e a declamo na tela em tons de branco e escarlate. A imensidão do mar é mera moldura para sua paisagem irretratável. Uma canção de luzes e sombras ressoa na penumbra da minha alma solitária. Ele vem se aproximando. Posso sentir o toque suave de suas mãos numa carícia que fala das flores. Num instante, deslizo o pincel em ângulo para reter o relevo dessa imagem. Sinto sua presença cada vez mais perto. Meu coração é um louco no peito, gritando as cores que se juntam para formar uma única paisagem. São todas elas componentes de um cenário surreal. Todas falam de amor. E o sonho se repete a cada dia que o vejo passar. Assim, me encolho atrás das pedras, receosa de que sinta o odor do diluente e venha verificar. Sinto seu cheiro, mesmo através do aroma que se desprende da tela. Dou os últimos retoques em pinceladas errantes e incertas. Ele está partindo. Vejo agora apenas suas costas. Paro, relaxo num suspiro entre aliviado e pesaroso. Afasto alguns passos e contemplo o resultado de minha criação. Recolho os pincéis, as tintas e os outros materiais e os coloco dentro do estojo. Cuidadosamente, retiro a tela e desmonto o cavalete. A paz invade minha alma. Então, saio de meu esconderijo e ganho a praia. Facilmente encontro as pegadas deixadas por ele. Vou pelo mesmo caminho, mas paro logo adiante. Entro pela porta dos fundos, inspirando o cheiro embriagador de tinta fresca e de tinta secando. No meio de tantos outros, coloco mais um quadro. Satisfeita, sento-me na varanda com um copo de suco gelado. O sol está se pondo. No dia seguinte, mais um quadro se juntará aos outros. Contemplo o céu. A nostalgia, silenciosamente senta ao meu lado. Não dizemos nada uma para a outra. Simplesmente porque somos companheiras tão antigas que não temos mais assunto. Dentro de mim, eu sei que ele vai estar lá amanhã, à mesma hora e com o mesmo olhar distante. E dentro de seu coração, talvez exista o mesmo vazio que há no meu. Mas se eu sair de detrás da pedra, ou se ele sentir o cheiro da tinta fresca, nunca mais poderá caminhar pela praia pensando que está só... E eu não terei mais a minha fonte de inspiração...

Autor: Silvana Rosa Dos Santos


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