METAENUNCIAÇÃO E CHARGE





ANÁLISE METADISCURSIVA NO TEXTO CHARGE

Adriana Sales BARROS
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


INTRODUCÃO

As questões implicadas nesta reflexão pontuam a leitura como gesto imbricada na constituição dos sujeitos no texto charge, cuja meta é analisar, através da palavra, as possibilidades de sentido presentes no discurso dos indivíduos constituídos em sujeito, a partir da ideologia e do inconsciente; como também observar como os sujeitos constituídos expressam suas posições frente à realidade social, remetendo a um só tempo à apreensão de um sentido unívoco e ao trabalho sobre a plurivocalidade do sentido a partir das charges. O intuito é analisar o discurso de denúncia, no referido texto, através da constituição do sujeito e sua posição frente à realidade social que o configura como tal. Assim as questões acima estão ancoradas em uma reflexão que integra os campos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa Pêcheux (1983) da teoria da enunciação bakhtiniana (1993), ambas balizadas pela teoria de Jaqueline Authier-Revuz (1995) com a Modalização Autonímica; abordagem metaenunciativa os procedimentos metodológicos de análise configuram o arquivo discursivo com charges publicadas no Jornal da Paraíba, elencadas conforme os temas sociais propostos no período da coleta de dados. A análise contemplou a descrição lingüística dos elementos formais e a interpretação constituída na alteridade com o outro da interlocução, do discurso considerando a alternância de sentidos no movimento de deslocamentos entre o mesmo e o heterogêneo. O gesto de leitura construído na análise aponta uma releitura plural com resgate da identidade/alteridade pela via da representação discursiva, possibilitando uma nova visão histórica e cultural da qual faça parte a humanidade.
Ao olharmos o discurso da imprensa escrita, que é o nosso objeto de análise, constatamos que a representação discursiva da charge denuncia questões sociais de conflitos, cuja cristalização é configurada, na charge, através do imaginário coletivo, que abordaremos a leitura como gesto.
Charge deriva do idioma francês e significa "atacar". Entre os anos de 1770 a 1830, a charge tornou-se uma arma que acirrava as rixas existentes entre os países europeus, principalmente aqueles que fossem inimigos da França.
Porém foi apenas no século XIX que a charge tornou-se um conceito jornalístico, principalmente nos Estados Unidos em jornais como The Chicago Press, The Boston Post e The Washington Today, nos quais as charges eram utilizadas para criticar ações do governo americano ou simplesmente ridicularizar ações de grupos políticos que buscavam obter o poder. No Brasil, o italiano Ângelo Augustini, em meados de 1894, foi o pioneiro na publicação da charge para fins jornalísticos e ilustrativos. Mas foi apenas no começo do século XX, que a charge ganhou proporções e conteúdo como meio de comunicação de massa no mundo. Não apenas como uma forma de atacar e satirizar situações, mas como um transmissor de idéias de fácil assimilação pela sociedade leitora, independente de ser ou não alfabetizada, o uso de uma linguagem não verbal pelo desenho passou a informar circunstancias vivida pela sociedade, bem mais que matérias inteiras escritas no jornal não conseguia. Descobriu-se então, que a função do chargista merecia destaque na mídia impressa e, a partir dos anos 30, a charge passou a ocupar um local de destaque nas paginas de opinião dos principais jornais do mundo.
Na cidade de Campina Grande, a charge foi introduzida anonimamente em 1932, numa publicação chamada "A Rolha", que criticava duramente as ações do governo municipal na época. Foi somente em 1957, com a fundação do jornal O Diário da Borborema que a charge em Campina passou a ter uma autoria. Considera-se, atualmente, o desenhista Deodato Borges o pai do humorismo gráfico e dos quadrinhos na Paraíba, dividindo os méritos com o pessoense Luzardo Alves. Principais figuras e introdutores do gênero no estado.
A charge hoje continua mantendo o seu papel de formar e informar as pessoas através da sátira. Ela continua se modernizando ao mesmo passo que surgem novas tecnologias para a sua confecção. Também se amplia a função do chargista, que não se limita mais as páginas dos jornais como antes. Charges ganham a cada dia importância no chamado novo jornalismo, que desponta nos sítios virtuais da internet.

POSTULACÕES TEÓRICAS

É com base na configuração textual charge que apresento as contribuições teóricas advindas dos campos que norteiam essa reflexão. Começo por Pêcheux com fundamentos à luz de novas configurações no tocante a análise do discurso de linha francesa, reconfigurada como AD-3. Em seguida destaco a concepção bakhtiniana de dialogismo e alteridade, concluo ambas balizadas por Jaqueline Authier-Revuz no que refere-se a abordagem metaenunciativa com entrecruzamento de seus dois campos: o da metalinguagem e o da enunciação figurados através da modalização autonímica, inscritos sob as formas das não-coincidências do dizer, nos quais o dizer se mostra alterado a partir da posição ocupada pelo sujeito, bem como do seu atravessamento como forma de um lado e como espaço de equívoco do outro lado. A fim de verificar como acontece esse "jogo" entre o mesmo e o diverso constituído na charge numa relação de alteridade, entre o sujeito produtor e o sujeito leitor.
AD-3, cuja fundamentação contempla as contribuições vindas de Michel de Certeau, Jean Jaques Courtine, Jean-Marie Marandim, Jean Claude Milner e J. Authier-Revuz. Essa reflexão é norteada pela reconfiguração, especialmente no que diz respeito ao terreno da lingüística e aos últimos nomes citados, em particular a Authier-Revuz no campo específico da enunciação. É válido ressaltar que ao deslocar a noção língua baseada nas postulações teóricas de Saussure, e centrá-las nas postulações teóricas de Milner (1987), Pêcheux não abandona a noção anterior, mesmo porque Milner também concebe a língua como um sistema de signos. Porém, a amplia incluindo o conceito de la langue, ou seja, é com base no real que Pêcheux associa as noções de língua acima citadas. O real se constitui de duas faces complementares, quais sejam: a face do representável baseado no conceito de língua saussureano, cujas propriedades são a permanência, univocidade e regularidade, e a face do não representável, na qual a noção de la langue baseada em Lacan da ênfase a noção de inconsciente, tendo relação com o equívoco, a incompletude sem existência lógica que se manifesta em casos como o ato falho.
A AD-3 reconfigurada por Pêcheux, norteada no campo da lingüística pelos estudiosos acima referidos, é indicadora de direções que evocam outros estudiosos e suas respectivas contribuições.
Neste espaço focalizo os deslocamentos ocorridos sobre a noção de sujeito, para isso pontuo na reflexão de Pêcheux, no que diz respeito às críticas recebidas relativas à questão da interpelação e da forma ? sujeito em Les vérités de la Palice. Contra o retorno idealista de um primado da teoria sobre a prática, Pêcheux afirma seu inconformismo com o assujeitamento ideológico total e, recorrendo à expressão lacaniana, que segundo Teixeira (2000) dá título ao seu artigo, diz:
O que falta é essa causa, na medida em que ela se "manifesta" incessantemente e sob mil formas (o lapso, o ato falho, etc.) no próprio sujeito, pois os traços inconscientes do significante não são jamais "apagados" ou "esquecidos", mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non sens do sujeito dividido. (PÊCHEUX, 1978, p. 300)
É só nesse artigo que o autor (1988, p. 300) rever sem complacência a ilusão de um sujeito-ego-pleno, em que nada falha. Ao que me parece, é justamente aí que falha essa noção de sujeito, em virtude de uma leitura parcial do texto de Lacan, ou seja, o equívoco está em coincidir o Outro lacaniano com o sujeito althusseriano. Fica evidente que não foi considerado que esse Outro é desejante e por isso não pode ser capturado totalmente no domínio do simbólico. Assim, em La vérités de la palice, não está evidenciado a dimensão dessa falta.
Fica entendido que, na AD-3, o deslocamento ocorrido não apaga a interpelação ideológica. Pêcheux (1992, p. 17) acrescenta que a mesma não é um ritual sem falhas, o que está atrás da palavra é uma outra palavra (e não um sentido) e há um ponto (o lapso por exemplo) em que o ritual vacila.
O deslocamento direciona a Teoria do Discurso para além das homogeneizações, numa perspectiva mais afinada com a psicanálise, cujos questionamentos tematizam a problemática da heterogeneidade.
Há ainda o deslocamento realizado no que diz respeito à noção de condições de produção (CP?s) para acontecimento discursivo, definido por Pêcheux (1983b) como o ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória. Na interpretação de Guilhaumou & Maldidier (1994, p. 166):
O acontecimento discursivo não se confunde nem com a notícia, nem com o fato designado pelo poder, nem mesmo com o acontecimento construído pelo historiador. Ele é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado.

A retificação incide na reorientação da análise na direção da singularidade do acontecimento discursivo. Contribuição vinda de Marandim (apud Teixeira, 2000) cuja pesquisa coloca o discurso sob o signo da heterogeneidade.
É nesse momento que se dá o deslocamento da relação entre interdiscurso e historicidade. Como afirma Teixeira (2000, p. 180), "o desaparecimento do corte que funda a história, entre o passado, seu objeto e o presente, lugar de sua prática".
É pelo conceito de acontecimento que Pêcheux (ibid) se aproxima da psicanálise. Dito de outra forma, a noção de historicidade na AD-3 recusa-se a ser "lembrança daquilo que aconteceu". Não há fronteiras separando um lado de lá de um lado de cá nos discursos, mas um trabalho da memória, realizado na linguagem. Afinal, desde Les vérites de la Palice, em termos ainda abstratos, Pêcheux enuncia o que viria se tornar o ponto central das pesquisas após 1980: a reinscrição sempre dissimulada no intradiscurso da presença do interdiscurso, que ele define como "a presença de um não-dito, sem fronteira localizável" (MALDIDIER, 1990, p. 14).
Nesse espaço de rupturas, emerge a heterogeneidade. Entendida na perspectiva da AD-3, como uma heterogeneidade radical, que abala a homogeneidade imaginária do sujeito e do seu dizer.
Outro deslocamento ocorre baseado nessa perspectiva; o objeto de análise é tratado "para além da leitura de Grandes Textos para a escuta das circulações cotidianas, tomadas no ordinário dos sentidos" (PÊCHEUX, 1983b, p. 48).
É na reflexão sobre a noção de sujeito e sua relação com a psicanálise que resultam as condições para uma nova visão da enunciação, livre da problemática da ilusão subjetiva. Na seqüência a apresentação do esboço teórico sob o qual está ancorado o pensamento bakhtiniano no âmbito dos estudos da linguagem no que refere-se as noções de dialogismo, alteridade e outro.
Na visão bakhtiniana, o dialogismo é visto como princípio constitutivo da linguagem, não uma linguagem ao nível de frase, mas num âmbito discursivo, quer dizer, o foco é na concepção de língua que ultrapasse os limites da morfologia e sintaxe. A concepção de língua aqui adotada leva em conta o sujeito que a mobiliza, que a torna viva, historicizada, social, língua em que o outro é inscrito não linearmente pelo locutor. É como se o locutor desse lugar ao outro nas malhas do seu próprio discurso. A palavra do sujeito é sempre formada a partir da sua relação com o(s) outro(s) ? seu(s) interlocutor(es).
O dialogismo é a condição para que sentidos sejam constituídos. As contradições se cruzam no interior das palavras que formam o discurso. Assim, de maneira sucessiva e contínua, os discursos são vistos em outros discursos ecoando. Seguindo essa mesma orientação, o outro, além de estar fisicamente em contato com o eu, implanta-se no discurso do que enuncia, o que é, para Mikhail Bakhtin, o cerne da questão dialógica. De acordo com a visão bakhtiniana, é possível perceber o ressôo de várias vozes permeando a língua em uso. O outro é apreendido pelo eu enquanto discurso. Interagindo com o outro, o enunciador integra o discurso outro no momento em que produz seu próprio discurso. Trata-se de uma relação de doação, troca, empréstimo de discursos. O sujeito é tido como ambivalente do ponto de vista da linguagem. Através dela, ele enuncia e é enunciado; a alteridade só é enxergada a partir da interação e somente por ela passa a existir, fato que é abarcado de forma determinante pela questão do dialogismo. O sujeito não pode ser concebido como homogêneo; ele é e está no outro, assim como o outro está no eu, constituindo-o.
Bakhtin estabelece um elo entre a linguagem e seu caráter social, permitindo a visão de uma produção essencialmente sócio-histórica, razão pela qual se atribui ao evento lingüístico um cunho ideológico. Na visão bakhtiniana, falar em dialogismo é falar nas relações que o discurso mantém com a enunciação, com o contexto sócio-histórico e com o outro.
O princípio dialógico funda a alteridade como constituinte do ser humano e de seus discursos. Reconhecer a dialogia é encarar a diferença, uma vez que é a palavra do outro que nos traz o mundo exterior.

Nossa fala, isto é, nossos enunciados (...) estão repletos de palavras dos outros. (Elas) introduzem sua própria expressividade, eu tom valorativo, que assimilamos,reestruturamos, modificamos. (...) Em todo o enunciado, contanto que o examinemos com apuro, (...) descobriremos as palavras do "outro" ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes de alteridade (BAKHTIN, 1979, p. 314 ?318).
Pode-se conceituar alteridade como a possibilidade de enxergar o outro como elemento necessário para a constituição do sujeito falante; a interação pode ser entendida como todas as formas de relação entre participantes (no caso, o eu e o outro), na qual haja proximidade. Por falar em proximidade, pode-se entender melhor que, mesmo o outro constituindo o eu, não é possível tê-los como unidade desde sempre. Em um primeiro momento, são duas entidades lingüísticas diferentes, isto é, são dois que se tornam um, já que o outro passa a constituir a fala do sujeito quando a língua é posta em uso, a relação dialógica é polêmica, não há passividade. Nela, o discurso é um jogo, é movimento, tentativa de transformação e mesmo subversão dos sentidos. O sentido de um discurso jamais é o último: a produção de sentidos é infinita. O que faz evoluir um diálogo entre enunciados é essa possibilidade sem fim de sentidos esquecidos que voltam à memória, provocando neles a renovação dentro de outros contextos.
Derivado do princípio da relação dialógica polêmica, estabelecido pelo sujeito produtor de discursos em um contexto social, Bakhtin instituiu um método para seu trabalho que, segundo Todorov (ibid.), seria a interpretação ou a compreensão responsiva ativa.
Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto tenso, que traz em seu cerne uma resposta, já que implica sujeitos. O ser humano, juntamente com seu discurso, sempre presume destinatários e suas respostas. A compreensão de um enunciado vivo é sempre prenhe de respostas (BAKHTIN, 1979). "A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica" (BAKHTIN, 1929, p. 132). O sujeito que produz um discurso não quer uma compreensão passiva que somente levaria à repetição de seu pensamento, mas almeja respostas que evidenciem adesão, concordância ou, contrariamente, objeção às idéias expostas. O sujeito bakhtiniano gera respostas, toma atitudes, constituindo-se um sujeito não totalmente interpelado.
Mesmo o enunciado, a unidade concreta produzida pelo ato enunciativo, é definido por Bakhtin (1930 e 1979) como uma expressão lingüística orientada para o outro. Assim, a construção de um discurso levará em consideração a representação que um sujeito tem de seu destinatário, bem como a ressonância dialógica produzida por seus enunciados já proferidos e todos os enunciados de outros sobre o mesmo assunto, retidos em sua memória. "Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado" (BAKHTIN, 1979, p. 325).
Essa "responsividade" implica um juízo de valor que, partindo da relação do enunciado com a realidade, com seu autor e com os outros enunciados anteriores, traz para o discurso os elementos ideológicos que o constituem.

Todo enunciado (discurso, conferência, etc.) é concebido em função de um ouvinte, ou seja, de sua compreensão e de sua resposta, bem como de sua percepção avaliativa (concordância ou discordância). (BAKHTIN, 1930, p. 292)

Faz parte da "orientação social" do enunciado em direção a um outro sujeito colocar em evidência a questão dos valores que também é uma questão ideológica. "Viver significa ocupar uma posição de valores em cada um dos aspectos da vida, já que as categorias fundamentais de valores são o eu e o outro" (BAKHTIN, 1979, p. 201).
Da parte do autor do enunciado, esse avaliará seu destinatário e por aí modelará a forma e o modo de produção de seus enunciados, que serão diversos conforme a situação social e importância de seu interlocutor, bem como suas posições, convicções e pontos de vista.
É no enunciado que se dá o contato entre a língua e a realidade. A escolha das palavras para a construção de um enunciado leva em conta outros enunciados de outros sujeitos, em relação aos quais o locutor se posiciona. Assim, quando reproduzimos o discurso do outro, nele podemos captar uma dupla expressão: a original, do outro e a expressão atualizada que é por nós introduzida no enunciado do qual vai fazer parte.
Em conseqüência, não só ao locutor cabem os direitos sobre as palavras, mas também ao ouvinte e a todos cujas vozes são ouvidas naquele discurso. A palavra é um drama com três personagens que é representado fora do autor.
Por isso o processo de compreensão do enunciado é visto por Bakhtin como uma relação que envolve os participantes e onde quem compreende torna-se o terceiro no "diálogo". O primeiro é o locutor, o segundo é o destinatário próximo, de quem se espera uma compreensão responsiva, e o terceiro é o superdestinatário superior, de quem o locutor prevê uma compreensão responsiva ideal e que pode adquirir, dependendo da época. Segundo Bakhtin (ibid., p. 356), "uma identidade concreta viável (Deus, a verdade absoluta), o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc.", porque para todo discurso é imprescindível uma resposta. Na busca pela compreensão, o discurso vai longe, torna-se um elo, entra em um diálogo onde o sentido, além de não ter mais fim, contém toda a memória coletiva do dizer.
De fato, para Bakhtin a produção do discurso envolve um trio, composto pelo autor, pelo destinatário e por todas as vozes-outras que sempre já nele habitavam, pois o "diálogo" é o acontecimento do encontro e interação com a palavra do(s) outro(s). A alteridade é, para o autor, um processo dialógico em que o elemento comum é o discurso.
Segue abordagem pautada na a perspectiva teórica proposta por Authier-Revuz, cujo foco é a metaenunciacão pontuada sob as formas das não-coincidências do dizer.
Nessa perspectiva, "a modalidade autonímica é a forma que implica uma atividade linguageira caracterizada por dois campos, quais sejam o da auto-representacão do dizer e o da metaenunciacão. No que diz respeito a primeira característica é configurada no campo da linguagem permite circunscrição do fato de reflexibilidade através de algumas oposições que viabiliza o encontro da língua com a fala, o discurso, o sujeito. Segundo Authier-Revuz (op. cit), concerne a metalinguagem natural, aquela da função de Jakobson e do trabalho fundador de J. Rey Debove. Acrescenta que ela manifesta o "poder de reflexividade" das línguas naturais (...) a existência desse poder das línguas naturais, questiona a existência de um lugar de exterioridade à linguagem. Dito de outra forma falta um lugar de domínio real fora da linguagem. Há na contestação da metalinguagem, uma clivagem radical. Clivagem entre a ordem interna e a externa ? enunciação. Para Authier- Revuz (1995, p. 8 ? 15), "não há, para o "ser falante" que é o homem, lugar fora da ordem da linguagem, na e pela qual ele é constituído como sujeito". As especificações no campo da metalinguagem são constituídas e ao mesmo tempo constitutivas com as especificações do campo da enunciação, sem que um seja diluído em prol do outro. Quanto ao metaenunciativo (AUTHIER- REVUZ,1998.p.177), diz que "é discurso sobre a linguagem em geral, sobre um outro discurso, sobre o discurso do outro na interação, no diálogo". E por fim, afirma está a auto-representação da linguagem relacionada à "opacificação, colocando em jogo, via autonímia, a forma significante do dizer".
É com base na Modalização Autonímica - configuração formal, que a estudiosa operacionaliza o modo como o dizer acontece em sua linearidade e em sua dimensão imaginária, em relação ao real, ou seja, a tríplice aliança o imaginário, o simbólico e o real.
A configuração enunciativa em questão é atravessada por dois campos, com especificações diversas, às vezes opostas. São as especificações no campo da linguagem ? metalinguagem ? e as especificações no campo do dizer. Para o objetivo desta reflexão, evidenciaremos as especificações no campo da metalinguagem, centralizando através das formas metaenunciativas o outro como constitutivo do diálogo entre sujeitos, entre discurso; legitimados na relação de não-coincidência entre as palavras e as coisas e das palavras com elas mesmas.
A costura aparente no tecido do dizer, captura a falha constitutiva do sujeito, capturadas no campo da enunciação ? complexidade enunciativa ? e sua relação com os dois outros tipos de não- coincidências que dizem respeito ao real da língua, através materialização lingüística. No dizer de (TEIXEIRA, 2000, p. 162), "como forma de um lado, como espaço de equívoco, de outro ? e, por isso, são tratados sob a ótica da psicanálise lacaniana.
A configuração enunciativa, Modalização Autonímica como forma de enunciação, comporta a representação do dizer. Aqui é o lugar do encontro, feito a partir da língua, com a fala o discurso e o sujeito. Nesse momento se dá a explicitação com os exteriores teóricos da lingüística. Neles a descrição é apoiada. Podemos dizer que os dois se afetam, sendo que cada um focaliza aspectos diferentes, sob pontos de vista diferentes.
O ponto de vista defendido aqui consiste em partir sistematicamente das formas da língua. Como dito antes, o foco é a Modalização Autonímica e as especificações no campo da metalinguagem, bem como seu encadeamento com os exteriores que o constitui, ou seja, a estratégia utilizada parte do que é marcado, diretamente observável, sendo fundado pelo desejo do(s) sujeito(s) constituído(s) no ato da enunciação. De acordo com Auhtier-Revuz, (apud TEIXEIRA, 2000, p. 3-45), no conjunto das formas de reflexibilidade metalingüística, o subconjunto da reflexibilidade do dizer sobre ele mesmo que singulariza as formas da modalização autonímica, organizada em três propriedades pelas quais elas podem ser descritas:
1. Formas metaenunciativas;
2. Formas estritamente reflexivas;
3. Formas opacificantes.
No que diz respeito à primeira propriedade, caracteriza-se por referir um segmento já dado (é uma menção), a formação interna da palavra. Quanto a segunda propriedade, corresponde ao desdobramento do dizer (a menção e o uso). E quanto a terceira propriedade, considerada pela autora (apud TEIXEIRA, 2000, p.156) como fundamental, são as formas de representação do dizer que põem em jogo, "as palavras que se referem ao dizer". É essa interposição, no dizer, da consideração as forma pela qual ele é feito que Authier-Revuz (1995, p. 25) chama de opacificação.
De acordo com a autora, a Modalização Autonímica é um fato de enunciação modalizado por uma representação opacificante e descrita como fatos pontuais de não-coincidência.
Considerando a dimensão teórica proposta por ela, a MA concentra a dupla heterogeneidade como junção do dialogismo bakhtiniano configurado na materialidade da língua afetada pela a língua. Nesse quadro figuram: língua/a língua, acontecimento, interlocutores e discursos. Eles afetam de não um o funcionamento da enunciação, que se apresenta como alterada no duplo sentido de alteração e alteridade.
Segundo Authier-Revuz (1998, p. 20), são quatro os campos de não-coincidências nos quais o dizer se mostra localmente alterado:
1. A não- coincidência interlocutiva;
2. A não-coincidência do discurso consigo mesmo;
3. A não-coincidência entre as palavras e as coisas;
4. A não-coincidência das palavras com elas mesmas.
Os quatro tipos de não-coincidências acima descritos são categorizados em seis tipos que parte do que é linguisticamente marcado ao que depende exclusivamente da interpretação. Podemos dizer que essa categorização nomeia as formas da Modalização Autonímica, mostrando o deslocamento das formas descritivas para as formas interpretativas, sem que uma apague a outra. Authier-Revuz (1998, p. 19?20) expõe os seis tipos de forma:
1. Formas explicitamente metaenunciativas "completas" (ex: X, eu emprego esta palavra se bem que; ela faz eu diria X?; o que eu chamo X?). Há a referência a pessoa, ao tempo, ao ato de enunciação.
2. Formas explicitamente metaenunciativas que implicam um eu digo X? (ex: X? se eu posso dizer...).
3. Formas explicitamente metalinguísticas, com um autônimo X? ou Y? (ex: X? a palavra X?; é inconveniente...). Há comentário, explicação e julgamento.
4. Formas sem elemento autônimo ou sem elemento metalingüístico unívoco (ex: X?, quer dizer Y...). Esse conjunto de formas pressupõe elementos contextuais e interpretativos. Presença de expressões que objetivam a comentar, explicar outras expressões.
5. Sinais tipográficos (aspas, itálico) e de entonação.
6. Formas puramente interpretativas (alusões, discurso indireto livre, jogo de palavras não marcado), que abrem para a heterogeneidade constitutiva.
De acordo com a exposição acima, percebemos que a autora abre o campo para as formas não marcadas, puramente interpretativas do dizer, embora concentre sua reflexão sobre as formas marcadas.
Nessa categorização, a possibilidade de tratar do que não é descritível no fio discursivo, mas que está presente, referindo a um outro. Nesse aspecto está o interesse em analisar a charge abaixo, pontuando As não-coincidências do dizer: da descrição a interpretação na configuração textual e na constituição dos sujeitos na Charge
Texto charge sobre política interna.

A charge foi publicada no Jornal da Paraíba em 23/03/2006.

(1) "... Né não, é so um eleitor que acreditou nas promessas dos políticos"

Conforme propõe Authier-Revuz (1982), o locutor faz uso das palavras no fio do seu discurso, e ao mesmo tempo, ele a mostra. Assim a figura normal de utilizador das palavras é desdobrada, momentaneamente, por uma outra figura, a de observador das palavras utilizadas. Apresento o acontecimento textual charge, que legitima o acima dito. Na cristalização textual a descrição caracterizadora do arquivo legitimado na figura estereotipada no imaginário coletivo do palhaço como sendo a imagem da alegria. É no momento dessa captura que a não coincidência dos interlocutores e dos discursos com eles mesmos acontece. Temos aí inscrito numa relação de justaposição o palhaço/eleitor; a autonímia, ou seja, tome um signo, fale dele e você terá uma autonímia, no seu uso metaenunciativo, por se inscrever no dizer do enunciador, que enuncia a propósito de sua enunciação, duplicando. Dito de outra forma a menção da justaposição palhaço/eleitor, é duplicada por uma representação desse dizer. Qual seja? O deslocamento do significado de ambas provocando uma ruptura na relação entre os interlocutores e nos discursos aí instituídos. Quanto a alteridade no discurso, se apresenta de duas maneiras. Entre a transparência e a opacidade, cuja ferramenta de análise é a auto-representação opacificante do dizer em certas formas de duplicação. Destaco aquilo que diz respeito à reformulação de "maneiras de dizer", própria da modalização autonímica, na fala do filho:

(2) "Ó mãe é um palhaço".

Ocorre a auto representação reflexiva, ou seja, a autonímia; a menção a palavra palhaço é a legitimação do statuto do que seja o palhaço; aquele que alegra. Entretanto é na fala da mãe:

(3) "Né, não, é só um eleitor..."

Torna o dizer duplicado, através do deslocamento realizado no que refere-se ao uso da expressão "palhaço" opacificando-a e inscrevendo num outro lugar discursivo, cuja, alteridade desloca também o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre discurso. Dito de outra forma as não-coincidências do dizer. Vale acrescentar que houve o bloqueio da sinonímia para que assim pudesse haver os deslocamentos realizados. Se está no campo da modalidade autonímica, quando se tem o bloqueio da sinonímia ? a modalidade autonímica se dá através do bloqueio da sinonímia, que viabiliza a abertura para o deslocamento. Isso é a reflexividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente reflexão esteve pautada pelo interesse em realizar uma análise metaenunciativa no texto charge através do encadeamento das teorias na linha da análise do discurso francesa, da teoria da enunciação e o dialogismo/alteridade em Bakhtin, ambas inscritas no quadro da teoria de Authier-Revuz com reflexões em torno da Modalização Autonímica em seus dois campos: o da metalinguagem e o da enunciação, configurados sob as quatro formas das não-coincidências: a não-coincidência interlocutiva entre dois sujeitos não-simetrizáveis, a não-coincidência do discurso consigo mesmo, constitutivamente afetado pelo jogo em si mesmo de outros discursos, a não-coincidência das palavras consigo mesmas, constantemente afetadas de outros sentidos, de outras palavras pela polissemia, pela homonímia. Enfim a não-coincidência entre as palavras e as coisas, as formas de desdobramento opacificante da enunciação capturadas no desenvolvimento contínuo do fio do discurso. Estas examinadas pela psicanálise lacaniana no que diz respeito ao atravessamento do sujeito, clivado entre o uso que faz das palavras no discurso; ao mesmo tempo sendo utilizador das palavras e observador delas. Aquelas que se mostram no fio do discurso na relação com o outro interlocutor e com os outros discursos.
Para a realização da análise desses efeitos de sentido, é necessário que se reflita sobre os participantes da relação discursiva: o sujeito que produz e o que recebe a produção (discurso), bem como sobre os fatores internos e externos que a determinam. Já para pontuar o movimento e os efeitos de sentidos, foi destacado as não-coincidências do dizer, a charge e o discurso, descrevendo a estrutura do dito e interpretando a memória sócio-histórica do dizer, bem como seu atravessamento pelo sujeito de natureza psicanalítica constituído pela falta, que enuncia sem saber o que diz, uma fala que diz muito sobre este saber, e as alternâncias de sentidos no movimento de deslizamentos entre a linearidade e a descontinuidade e também foi mostrado como, resistindo a acomodamentos e subvertendo o mesmo, um acontecimento discursivo torna-se o lugar de sentidos heterogêneos.

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Autor: Adriana Sales Barros


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