Foi feito por mim.



Foi feito por mim!
Dia desses, visitando minha mãe, estivemos olhando sua "lata de tesouros", é uma lata quadrada, bem antiga, de biscoitos sortidos, vermelha, com desenhos de biscoitos. Agora ela já está desbotada, o que torna o seu vermelho mais escuro, e algumas partes mostram sinais de ferrugem. Porém, o mais importante, é o seu teor. Desde menina, gostava muito de olhar, escondido, essa lata. Dentro dela sempre houve coisas interessantes, acredito que sem nenhum valor financeiro, exceto por um relógio de pulso e um brinco perdido.
Os principais "tesouros" são alguns bilhetes de amigos, algumas cartas, uma flor seca e cuidadosamente embrulhada em um papel de seda ? sempre me perguntei quem teria dado essa flor a ela, ou se a flor trazia à lembrança de minha mãe uma data especial ?, um papel de bala cuidadosamente dobrada como um beijo, algumas fotos que, por algum motivo que só minha mãe sabe, não ficam na caixa de fotografias, e sim na "lata de tesouros"; há um porta-jóias de cristal que guarda o relógio de pulso, de corda, que parou de repente em uma hora qualquer de um dia e ano remotos ? e não sei dizer se foi um dia especial ou um dia qualquer, em que as coisas acontecem e não sabemos nem o que foi ?, um brinco encantador que se perdeu de seu par, tem uma pedra furta cor, em que se sobressai o vermelho. Sempre gostei de olhar para esse brinco e vê-lo reluzir a luz do sol; tinha também uma corrente dourada, grossa, com um pingente grande com flores dos dois lados, que não era de ouro, ela já não está mais na lata de tesouros, acredito que em algumas de nossas explorações, escondidas, eu e meus irmãos acabamos por perder essa corrente. Minha mãe nunca disse nada, penso que ela sempre soube de nossas explorações e secretamente ria de nós, ou temia por ver os seus tesouros sendo explorados. Hoje percebo que poucas coisas foram acrescentadas à "lata dos tesouros", e me pergunto se, à medida que a vida passa, focamos o nosso olhar em outras coisas, ou o encantamento diminui e já não temos mais tanta necessidade de guardar tesouros materiais, pequenas coisas que nos trazem à memória fatos importantes e significativos. Alguns objetos que são capazes de suscitar cheiros, trazer aromas, cores e sensações distantes, que fazem o olhar recuperar o brilho e o coração suavizar.
O fato é que nesse dia, ao olhar a "lata de tesouros", deparei-me com um cartão do dia das mães, coisa que nunca havia chamado minha atenção, um cartão que eu mesma fiz; fiquei emocionada, o meu cartão tinha espaço na "lata de tesouros" de minha mãe. Não só o meu cartão, alguns cartões feitos por meus irmãos também estavam lá. O cartão dado por mim era bem simples, uma folha sulfite dobrada ao meio, uma gravura de santa pregada no centro, e vê-se que foi recortada por mãos ainda inábeis, uma borda feita a lápis, e nela está colado chá mate. Ao abrir o cartão, deparamo-nos com linhas traçadas com uma régua, as linhas trazem palavras simples, uma mensagem de amor. Reconheci minha letra, pequena, já meio bordada, pareceu-me forte, apesar de pequena. No fim, meu nome; escrito inteirinho em letra cursiva, sem misturas de letra de imprensa, costume que adquiri muito tempo depois.
Que surpresa agradável, lembrei-me do dia que fiz, na escola, esse cartão, da forma como a professora nos preparou para essa confecção, desde a dobra do papel até a colagem do mate, última coisa feita. Lembro-me como foi agradável colocar o cartão, no meio da noite, sobre o fogão, para que ela o encontrasse no outro dia, no dia das mães, bem cedinho, quando fosse fazer o café.
Depois desse dia, passamos por inúmeras dificuldades, tanto financeiras como psicologias, as dores das perdas, as inevitáveis perdas vieram. À medida que nos recuperamos, tempos depois, consegui, em outras ocasiões, comprar tantos outros presentes do dia das mães, melhores que o cartão, mais caros, mais úteis, e nenhum deles foi parar na "lata de tesouros", isso significou muito para a minha vida pessoal e profissional.
Daquele dia na sala de aula, fazendo o cartão, até estar na sala de aula orientando a confecção de um cartão, passou-se muito tempo, embora tenha passado muito rápido. Sou professora, profissão escolhida desde muito jovem, sempre me imaginei sendo professora e sou feliz, gosto muito do que faço, embora já tenha feito muita bobagem. A gente comete pecados em sala de aula, a certeza é que sempre quis fazer o melhor, mas nos nós fazemos professora na caminhada, aprendemos a cada dia com a experiência e muito, muito estudo; há que se ter consciência ao escolher essa profissão de que os livros e as pesquisas farão parte de nossa vida eternamente, assim como a visão clara de que o mundo muda constantemente, e nós precisamos mudar com ele. É inaceitável em um mundo globalizado o profissional que permanece nas mesmas práticas eternamente, não que as antigas práticas possam ser descartadas, afinal, o conhecimento se faz sucessivamente, e cada nova geração precisa avançar os conhecimentos que estão postos; é assim, foi assim que o homem avançou na construção de seus conhecimentos no decorrer do tempo. Após essas reflexões entre o quanto foi significativo para minha mãe o tal cartão e o quanto foi importante para mim fazê-lo, transferi essa aprendizagem para a minha sala de aula e lembrei-me, com muita alegria, do dia dos índios da década de 90, não me lembro exatamente em que ano isso ocorreu. O fato é que depois de muito conversar com as crianças de etapa II ? na época eram crianças com 6 anos de idade ?, sobre os índios, pesquisamos em livros, revistas, jornais muitas coisas sobre a vida deles. As crianças também traziam de casa coisas sobre os índios, seus costumes, alimentação, aos poucos esse tema ficou comum. Verificamos que muito havia mudado nos costumes dos índios, sua forma de viver, habitação e alimentação já não eram mais as mesmas; enfim, foi um período de muitas descobertas. Chegou o grande dia, a escola toda estava mobilizada para comemorar esse dia, se é que há o que ser comemorado atualmente. Enquanto as outras crianças faziam cocar com cartolina e pintavam as penas recortadas com eficiência pela professora, todas padronizadas, do mesmo tamanho, muitas pintadas das mesmas cores, nós fizemos uma grande folia na sala. Levei muitos jornais, fita crepe ? abençoada fita crepe ?, grampeador, grampos, barbante, tesouras e durex; liberamos o meio da sala de aula amontoando as mesas e cadeiras nos cantos, e tudo isso foi para o chão. Deixamos fixadas pelas paredes as imagens de índios que havíamos conseguido durante nossas pesquisas; obviamente evitamos os estereótipos. A proposta foi observar as gravuras e construir, cada um à sua maneira, vestimentas e adornos parecidos com os dos índios, foi uma festa. Recorta, pica, gruda, grampeia, pede ajuda aqui, experimenta a saia, mede, ajusta, acerta a fita crepe, dobra o jornal, coloca na cabeça, recorta linhas imaginárias, experimenta, olha no espelho, desfila aqui, um copia o modelo do outro, tesoura passa de mão em mão, um choro ali, outro acolá, um corte maior, despenca o cocar, cai a saia... sem choro, é só grudar, pega o grampeador, ajusta um pouco mais e o sorriso volta a enfeitar o rosto. Posso fazer mais um, tem cocar, tem colar, tem saia, tem tornozeleira, dá até para fazer arco e flecha... ufa... que dia... pode fazer moradia do índio também? Pode, mas se for grande não vai dar para levar embora... e a tarde passou. Na hora de ir para casa, cada um se enfeita, para em frente ao espelho e faz a sua pintura, riscos grossos, riscos finos, cores variadas, olha a gravura, volta para o espelho. E assim, meio a contra gosto, vão saindo, olham para a sala, está organizada, os picotes que sobraram já foram para o lixo, o restante de jornal foi para caixa, as mesas voltaram aos seus lugares.
No corredor, alguns dos cocares despencavam e cobriam os olhos, os recortes foram muito grandes, a base ficou sem sustentação, não tinha problema, era só erguer a cabeça; algumas saias estavam compridas, algumas largas e acabavam descendo mais do que o previsto, e assim se foram, cada um com a sua obra, a sua pintura, a sua autonomia, a sua construção, a sua aprendizagem, a sua alegria, a confiança em sua própria capacidade.
Meu coração gelou, os cocares e as penas das outras crianças estavam, de fato, muito bonitos, pinturas primorosas e tão iguais que pensei: eles vão querer essas penas recortadas com perfeição e tão coloridas, mas a alegria continuou. Quando chegaram ao portão, um avô olhou para tudo aquilo e disse: ? Meu Deus, o que foi que aconteceu? O susto era pelas obras feitas com jornais, meu sorriso ficou meio amarelo; as crianças falaram ao mesmo tempo sobre o que tinha acontecido, meu coração sorriu, eles haviam construído muitos conhecimentos, o objetivo fora atingido.
Relato isso para refletirmos sobre o nosso papel de educadores, que certamente não é o de fazer para o aluno, mas sim fazer com o aluno. O produto final é importante, mas não é o melhor, o caminho é muito gostoso e rico. Depois desse dia, tive muitas recaídas, dúvidas, incertezas; lia daqui, discutia dali, buscava novas propostas, e sempre lembrando das expressões das crianças dessa Etapa II quando pesquisamos sobre os índios. A cobrança das famílias me animava, essa participação é importante, e cabia a mim, a educadora, a especialista, explicar o meu fazer pedagógico, quais as intenções, quais objetivos estavam postos em cada atividade. Quem coordena esse processo é o educador, ele tem formação para isso, e deve ter argumentação para o seu trabalho. É nesse contexto que convido os educadores a discutirem sobre a questão das datas comemorativas, por que elas existem e qual é o papel da escola frente a essas datas. Não precisamos ser radicais e abolir as datas, mas esse trabalho precisa ser pedagógico, enriquecedor, ir ao encontro da função social da escola.
A Educação Infantil tem fundamental responsabilidade nesse contexto. Esse é o momento em que as estruturas básicas estão se formando e acompanharão o indivíduo por toda a sua vida; assim, questões como consumo, organização do pensamento refletido na oralização, trabalho em grupo, autonomia, conservação do ambiente e materiais, reflexão sobre diferentes assuntos, compreensão do significado dessas datas comemorativas, entre tantas outras coisas, expressam que o compromisso da escola não é confeccionar lembranças, muitos menos comprar lembranças, e sim discutir e produzir. A criança precisa desenvolver a sua autoconfiança e autoestima, condições imprescindíveis para a aprendizagem e atuação significativa na sociedade. É em momentos como esse que o educador consegue atuar como sujeito de transformação social, quando não se deixa levar pelos apelos publicitários, pela situação posta. O educador não pode aceitar algo como verdade imutável e indiscutível simplesmente porque "as coisas sempre foram assim", o mundo muda constantemente. As estruturas familiares mudaram em meio a tantas outras mudanças que nos pegam de surpresa, porque estávamos com a mente fixa no que sempre foi e não percebemos que gradativamente o quadro se alterava. Enfim, é isso, o quadro se alterou; muitos não estão satisfeitos com a sociedade posta. Nós precisamos nos perguntar que sociedade queremos e o que cabe a nós fazer para transformá-la; no entanto, não podemos nos encher de frases saudosistas e desejar que a sociedade volte a ser o que era, isso não acontecerá. Nosso trabalho precisa pautar-se no real, naquilo que temos em nossas mãos.


Encerro esse convite à reflexão com mais algumas perguntas:
1- A criança gosta mais de levar para casa um trabalho feito pelo professor ou um feito por ela?
2- Se o professor acredita que a criança não sabe fazer, quando ela vai aprender, se o professor faz por ela?
3- Qual é o objetivo em pedir a colaboração da mãe para comprar uma "lembrança" escolhida por você para que a criança entregue para ela ou para o pai?
4- Quanto tempo o professor gasta dando acabamento ou fazendo atividades para as crianças?
5- Quem deve saber as necessidades educativas de cada faixa etária?
6- É senso comum que a escola assumiu muitas responsabilidades que, inicialmente, não faziam parte de sua função; entre elas, o assistencialismo. Se nós estamos em comum acordo nesse discurso, porque queremos entregar às nossas crianças ovos de páscoa, "lembranças" de dia das crianças e presentes de natal? Esse é o papel da escola?
7- Quais sentimentos invadem a criança quando simplificamos a páscoa pelos seus ovos, sabendo que muitas crianças não receberão nenhum ovo?
8- Tendo ciência de que algumas crianças não receberão ovos, cabe à escola garantir que ela o receba nesse espaço?
9- O que pensa uma criança ao comemorar o dia das mães ou dos pais se ela não os tem?
10- Quando falamos que mãe é puro amor, como reage interna ou externamente uma criança cuja mãe não é puro amor?
11- Qual é a função social da escola?
12- Qual a importância da educação infantil para o desenvolvimento da criança.
Após responder a essas questões, voltemos nossos olhares à função social da escola e permitamos que esse espaço sagrado, a escola, possibilite o crescimento de nossas crianças, desenvolvendo suas habilidades e competências através dos conteúdos clássicos, e antes da próxima data comemorativa vamos buscar estabelecer nossos reais objetivos.

ROMANI. Raquel Ramos,

Autor: Raquel Ramos Romani


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