A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: SEGURANÇA JURÍDICA OU JUSTIÇA DAS DECISÕES?*



A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: SEGURANÇA JURÍDICA OU JUSTIÇA DAS DECISÕES?*

Vitor Costa Haidar **

SUMÁRIO: Introdução; 1 Algumas considerações sobre a coisa julgada; 2 A coisa julgada como fundamento do Estado Democrático de Direito; 3 A sentença inconstitucional transitada em julgado; 4 Finalidade da coisa julgada: a questão da segurança jurídica versus justiça das decisões; Conclusão; Referências

RESUMO

O presente artigo analisa o instituto da coisa julgada formada por sentença que afronta princípios e/ou preceitos emanados da Constituição, isto é, a "coisa julgada inconstitucional". Considera tal instituto como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, elucidando sua importância no seio do Direito Processual Brasileiro, relacionada com o anseio social de segurança jurídica. Discute, todavia, a intangibilidade da coisa julgada ante sentenças inconstitucionais, realçando a posição doutrinária quanto ao tema.

PALAVRAS-CHAVE: Coisa Julgada. Relativização. Segurança Jurídica. Justiça.

Introdução
O Direito Processual tem por escopo primordial a garantia da tutela jurídica justa aos cidadãos, isto é, a garantia de que todos que se utilizem das vias jurisdicionais possam ser providos com sentenças justas e seguras, caracterizando a função pacificadora da jurisdição no Estado Democrático de Direito .
Neste sentido, a coisa julgada corresponde a um dos institutos capazes de imprimir segurança ao ordenamento jurídico brasileiro, assegurando aos seus subordinados a imutabilidade das decisões emanadas do poder jurisdicional.
Entretanto, vislumbra-se no âmbito doutrinário-jurisprudencial brasileiro a existência de dissenso quanto a intangibilidade e perpetuação absoluta das sentenças transitadas em julgado, haja vista que, por vezes, tais sentenças podem estar eivadas de inconstitucionalidade, atacando frontalmente a nossa Lei Suprema.
Destarte, questiona-se a prevalência da coisa julgada em face de descumprimento de preceitos e princípios constitucionais. De início, serão feitas algumas considerações sobre o instituto, esboçando suas características gerais bem como sua função na prestação da tutela jurisdicional pelo Estado, para em seguida tratar da sentença inconstitucional transitada em julgado, demonstrando seus resultados no plano fático. Após, serão abordadas as hipóteses em que é legalmente autorizada a relativização da coisa julgada, e por fim, esboçaremos uma proposta de lege ferenda apresentada por Alexandre Freitas Câmara para solucionar o atual embate acerca da relativização da coisa julgada.

1 Algumas considerações sobre a coisa julgada
Quando um conflito de interesses (lide) é levado ao Judiciário, após a prolação da sentença, é facultado às partes a interposição de recursos no fito submeter o reexame da decisão a outro órgão jurisdicional hierarquicamente superior (princípio do duplo grau de revisão das decisões judiciais).
Entretanto, os recursos não são ilimitados no sistema processual civil brasileiro, posto que, em um determinado momento, torna-se irrecorrível a decisão judicial em decorrência terem esgotado os recursos legalmente previstos. Outrossim, não se pode olvidar que há um prazo para a interposição dos recursos, sendo que, não sendo estes interpostos no prazo previsto, as partes perderão o direito de recorrer, tornando-se igualmente irrecorrível a decisão judicial, que passa a transitar em julgado.
É justamente deste aspecto, da irrecorribilidade e intangibilidade do provimento judicial, que surge a coisa julgada. Dentre as inúmeras definições para o instituto, a mais difundida doutrinariamente é a elaborada por Enrico Tullio Liebman, que a conceitua como "a imutabilidade do comando emergente da sentença", isto é, "a imutabilidade da sentença em sua existência formal, e ainda dos efeitos dela provenientes".
Ponto de extrema relevância é a distinção feita pela doutrina entre coisa julgada formal e coisa julgada material. A primeira diz respeito à imutabilidade da sentença, consistente na "imutabilidade da decisão judicial dentro do processo em que foi proferida" , impedindo que em determinado processo se reabra a discussão já encerrada com o esgotamento dos recursos que foram ou podiam ser interpostos . Já a coisa julgada material corresponde à "indiscutibilidade da decisão judicial no processo em que foi produzida e em qualquer outro processo" , isto é, cuida da imutabilidade do conteúdo da sentença, que faz com que o objeto da decisão de mérito se torne indiscutível e imutável dentro feito, e em qualquer outro processo futuro .
Nesta senda, vislumbra-se que a coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal, haja vista ser impossível a formação daquela sem esta . Assim é que, toda coisa julgada material também é coisa julgada formal. Registra-se, ainda, que a coisa julgada material só é produzida em sentenças de mérito, isto é, nas hipóteses enumeradas no artigo 269 do Código de Processo Civil. Nas sentenças terminativas, isto é, nas que não analisam o mérito devido à concorrência de qualquer das hipóteses do artigo 267 do CPC, será produzida apenas a coisa julgada formal, uma vez que o mérito não é resolvido.
Assim é que, para que uma determinada decisão judicial receba a autoridade de coisa julgada material, deverão ser verificados alguns pressupostos. Primeiro, há de ser uma decisão jurisdicional, tendo em vista que a coisa julgada é característica exclusiva dessa espécie de ato estatal; além disso, tal decisão há de versar sobre o mérito da causa (pedido/causa de pedir, lide, objeto da demanda), prolatada com fulcro nas hipóteses do art. 269 do CPC (decisões que certifiquem a existência ou inexistência de algum direito); ademais, o mérito deve ser examinado em cognição exauriente, isto é, deve ser analisado pelo órgão jurisdicional de forma plena e completa; por fim, é necessário que a decisão jurisdicional padeça de preclusão máxima, em outras palavras, que tenha se formado a coisa julgada material.
Outro ponto importante diz respeito aos efeitos gerados pela coisa julgada material e pela coisa julgada formal. Esta produz efeitos endoprocessuais, isto é, torna inafastável e indiscutível a sentença de mérito transitada em julgado (que não admite mais recursos), tornando obrigatório o comando emergente da sentença. Já a coisa julgada material, produz efeitos extraprocessuais, isto é, vincula as partes e o juízo de qualquer outro processo, impossibilitando que o mérito da decisão seja rediscutido em ação judicial futura. Ou seja,
implica na proibição de que a mesma ação ? com elementos idênticos: partes, causa de pedir e pedido ? seja re-ajuizada .
Há que se falar ainda sobre os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada. Os primeiros dizem respeito a quem se submete aos seus efeitos; os segundos investigam quais partes da sentença são acobertadas pela autoridade de coisa julgada.
O Código de Processo Civil assinala expressamente em seu artigo 469 as partes da sentença que não fazem coisa julgada, resultando o entendimento que apenas o dispositivo da sentença, entendido como a norma que contém a norma concreta produzida para o caso, é apto a revestir-se da autoridade de coisa julgada. Afirme-se ainda, quanto às questões prejudiciais constantes na fundamentação da sentença, que as mesmas não são alcançadas pela autoridade de coisa julgada, salvo se tiverem sido suscitadas via ação declaratória incidental, ocasião em que serão resolvidas também no dispositivo da sentença.
A respeito dos limites subjetivos da coisa julgada, o artigo 472, do CPC preceitua que "a sentença faz coisa julgada entre as partes as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros". Logo, a regra geral adotada pelo sistema processual pátrio é que a coisa julgada só se opera inter partes, tornando-se intangível e indiscutível apenas para as partes, não podendo atingir terceiros de forma negativa ou positiva, como corolário do princípio constitucional/processual do contraditório e do devido processo legal. Todavia, em algumas hipóteses, tal regra será insuficiente, como nos casos de substituição processual, em que a coisa julgada se operará para substituto e substituído (como no caso de ações populares, ações civis públicas, ou ações coletivas em prol de interesses metaindividuais.).
Por fim, há de se tratar da natureza jurídica do instituto em pauta. Também neste ponto a doutrina se divide, considerando-a, distintamente, i)um efeito da sentença , ii)uma qualidade da sentença ou iii)uma situação jurídica .

2 A coisa julgada como fundamento do Estado Democrático de Direito
A doutrina mundial confere à coisa julgada o status de elemento de existência do Estado Democrático de Direito, uma vez que o instituto imprime o valor segurança jurídica às decisões judiciais. Assim é que a coisa julgada assume projeção constitucional, sendo amparada pelo artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição, e pelo artigo 1º, como fundamento da República.
Neste sentido, Nelson Nery Jr. afirma que:
Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito (...)

Assim sendo, a coisa julgada diz respeito a instituto constitucional criado para propiciar segurança às relações jurídico-sociais, sendo fundamento do Estado Democrático de Direito e, portanto, de importância imensurável para os valores e princípios perseguidos por este. Consoante já foi mencionado, visa-se pelo processo a tutela jurisdicional "adequada e justa"; todavia, na execução de tal objetivo, valor não menos importante é a segurança da mesma tutela jurisdicional, materializada no instituto da coisa julgada.
Deste modo, na hipótese de conflito entre esses dois valores (justiça e segurança da sentença), "o sistema constitucional brasileiro resolve o choque optando pelo valor segurança (coisa julgada), que deve prevalecer em relação à justiça, que será sacrificada" . Trata-se, entretanto, de opção política, posto que o Estado Democrático de Direito é fundado no respeito à segurança jurídica, consistente na observância da coisa julgada.
Não se quer aqui "pregar" o desvalor da justiça diante da segurança jurídica. O que se quer é tão-somente ressaltar que o risco político de uma sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco de se instaurar a insegurança geral com a relativização ? tendo como parâmetro a injustiça ? da coisa julgada .
Logo, o princípio do Estado Democrático de Direito, constante no artigo 1º da Carta Magna, trata-se de uma das bases sobre as quais se erige a República brasileira, que, como foi suso mencionado, não é apenas "de Direito" ? contendo normas legais emanadas do Estado no fito de regular suas atividades bem como as dos particulares . É, principalmente Estado Democrático de Direito, como afirma Nelson Nery Jr., sendo "necessário que esse Estado de Direito, legal, seja democrático, instituído e regulado por princípios que se traduzam no bem-estar de todos, na igualdade, na solidariedade" , destacando, neste toar, a imprescindibilidade da coisa julgada para a subsistência deste Estado.
Do mesmo entendimento compartilha Fredie Didier, quando afirma que "a coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não assegura a justiça das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a definitividade da solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida".

3 A sentença inconstitucional transitada em julgado
Devido a sua relevância no seio do Direito Processual e Constitucional, durante séculos a coisa julgada sempre foi vista como algo absoluto, intocável, um verdadeiro dogma . Houve na doutrina quem afirmasse que "a coisa julgada faz branco preto; origina e cria as coisas; transforma o quadrado em redondo; altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro" .
Ocorre que, hodiernamente, se fala na relativização/desconsideração/ flexibilização da coisa julgada. Entende a doutrina que, em alguns casos, a coisa julgada deverá ser relativizada em prol de outros valores mais importantes para o direito e para a própria sociedade. É o caso da sentença inconstitucional que transita em julgado.
Alexandre Câmara afirma que "a inconstitucionalidade é o mais grave vício que pode acometer um ato jurídico" , e, por esta razão é que existem instrumentos hábeis a controlar a constitucionalidade de leis e atos normativos emanados do Poder Público. Todavia, não se pode olvidar que também as decisões judiciais podem padecer do mencionado vício, contrariando comandos constitucionais.
Em nosso sistema processual, o mencionado controle de constitucionalidade das decisões judiciais é feito, precipuamente, pelo Supremo Tribunal Federal via recurso extraordinário, com fulcro no artigo 102, III, alínea a. Além do recurso extraordinário, existem em nosso sistema outros meios legais de revisão da coisa julgada, como a ação rescisória (art. 485, CPC), os embargos do devedor na execução por título judicial (art. 741, I, CPC), a impugnação com base na existência de erro material, a impugnação da sentença inconstitucional (com base no art. 475-L, §1º e 741, parágrafo único do CPC), a revisão criminal (art. 622, CPP) e a coisa julgada segundo o resultado da lide (art. 18, LAP e art. 103, CDC).
Com efeito, surge o problema quando a sentença inconstitucional transita em julgado, pondo-se em xeque a "eficácia sanatória geral" da coisa julgada. O Ministro José Augusto Delgado, um dos primeiros juristas a manifestar-se sobre tema no país, defende que "as sentenças que ofendem a Constituição nunca terão força de coisa julgada, e poderão, a qualquer tempo, ser desconstituídas no seu âmago mais consistente que é a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito à Constituição e da entrega da justiça ". Complementando, afirma ainda que, não obstante a importância da segurança jurídica, esta deve ceder "quando princípios de maior hierarquia postos no ordenamento jurídico são violados pela sentença, por acima de todo esse aparato de estabilidade jurídica, ser necessário prevalecer o sentimento do justo e da confiabilidade nas instituições".
Discordando de tal pensamento, Alexandre Freitas Câmara entende que "a sentença, mesmo a inconstitucional, é alcançada pela autoridade de coisa julgada" e acrescenta que "a questão posta à consideração dos juristas (...) não é a de saber se a sentença inconstitucional transita ou não em julgado, mas a de saber se, uma vez transitada em julgado poderá seu conteúdo ser revisto em processo posterior".
Contrário às teses da relativização Luiz Guilherme Marinoni sustenta que "de nada se adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente", e completa afirmando que "se a definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela possa simplesmente ser desconsiderada". Conclui aduzindo que "admitir que o Estado-Juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica em aceitar que o Estado-Juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de ?relativizar? a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça".
No mesmo sentido, Nelson Nery Jr . assevera que "entre o justo absoluto, utópico, e o justo possível, realizável, o sistema constitucional brasileiro (...) optou pelo segundo, que é consubstanciado na segurança jurídica da coisa julgada material. Descumprir a coisa julgada é negar o próprio Estado Democrático de Direito, fundamento da República brasileira".
Destarte, vislumbra-se grande divergência doutrinária quanto a o que se fazer no caso de sentença inconstitucional transitada em julgado, confrontando-se dois valores de extrema importância para qualquer sistema processual: a segurança jurídica, representada pela coisa julgada material, e a justiça das sentenças, utilizada como fundamento para dos defensores da relativização.
Contudo, posiciona-se aqui conforme o pensamento de Alexandre Freitas Câmara , segundo o qual
infere-se do sistema jurídico vigente a possibilidade de relativização de garantias constitucionais como decorrência da aplicação do princípio da razoabilidade, o qual é consagrado na Constituição através de seu artigo 5º, LIV, que trata do devido processo legal. Assim é que diante de um conflito entre valores constitucionais, está o intérprete autorizado a afastar o menos relevante para proteger o mais relevante, o que fará através da ponderação dos interesses em disputa.

Assim é que, a sentença transitada em julgado que contrarie a Constituição deve ser, a qualquer tempo, desconsiderada/relativizada, tendo em vista o grande desvalor assumido pela inconstitucionalidade em nosso sistema processual.

4 Finalidade da coisa julgada: a questão da segurança jurídica versus justiça das decisões

A figura da coisa julgada está intimamente atrelada ao princípio da segurança jurídica ? elemento essencial ao Estado Democrático de Direito ? que confere estabilidade às decisões proferidas pelo Poder Público. Sobre esse ponto aduz Dinamarco:

Sendo um elemento imunizador dos efeitos que a sentença projeta para fora do processo e sobre a vida exterior dos litigantes, sua utilidade consiste em assegurar estabilidade a esses efeitos, impedindo que voltem a ser questionados depois de definitivamente estabelecidos por sentença não mais sujeita a recurso. A garantia constitucional e a disciplina legal da coisa julgada recebem legitimidade política e social da capacidade, que têm, de conferir segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos da sentença.

Nesse sentido, também, são cabíveis os dizeres de Wambier e Medina: (2003, p. 21-22):
A coisa julgada é instituto cuja função é estender ou projetar os efeitos da sentença indefinidamente para o futuro. Com isso, pretende-se zelar pela segurança 2 extrínseca das relações jurídicas, de certo modo em complementação ao instituto da preclusão, cuja função primordial é garantir a segurança intrínseca do processo, pois que assegura a irreversibilidade das situações jurídicas cristalizadas endoprocessualmente. Esta segurança extrínseca das relações jurídicas gerada pela coisa julgada material traduz-se na impossibilidade de que haja outra decisão sobre a mesma pretensão.

Vê-se, portanto, que a garantia da coisa julgada encerra a proteção ao valor da segurança nas relações jurídicas, por meio da estabilidade conferida às decisões judiciais. O objetivo é impedir que as lides sejam estendidas ad eternum, isto é, que em algum momento tenham um ponto final.
A justiça, por sua vez, constitui outro ideal almejado pelo sistema jurídico e goza de status constitucional, por meio da garantia do acesso à justiça (artigo 5º, inciso XXXV). Esta necessidade de obtenção de soluções justas é o que se pode entender, a grosso modo, pelo que se passou a denominar de ordem jurídica justa.
Ocorre que enfrentamos hoje um movimento de mitigação das garantias constitucionais, partindo da premissa que não há garantia constitucional absoluta e que outros valores devem ser sopesados, como, por exemplo, a observância à moralidade, à legalidade.
Conforme registra Porto (2003, p. 26-27), a relativização da coisa julgada não constitui matéria nova. Isso porque há muito o nosso sistema processual admite tal possibilidade pelo manejo da ação rescisória e em determinadas hipóteses expressamente elencadas no artigo 485 do Código de Processo Civil. E continua o autor:
A novidade está, portanto, nesta ?terceira onda? que admite a relativização da coisa julgada para além as hipóteses nominadas e, igualmente, para além da forma consagrada pela ordem jurídica processual, ou seja, a proposta através de catálogo expresso e técnica determinada, usada para invalidar o pronunciamento jurisdicional transitado em julgado, é superada, nascendo nova e informalizada esparígia processual. [...] Nas hipóteses elencadas e que dão origem a esta ?terceira onda? de relativização, representada pela possibilidade de mitigar a garantia da coisa julgada por nova decisão jurisdicional, há forte apelo de índole axiológica, vez que são identificadas situações ? em tese ? excepcionalíssimas e de extrema injustiça concreta, com o fito de justificar a superação da decisão transitada em julgado.

Assim, temos que o conflito posto (ou melhor, um dos) em discussão reside no choque representado pela justiça concreta de um lado e de outro pela segurança jurídica, ainda que isso venha a custar uma eventual e aparente injustiça individual. Seria, como bem posto por Maia (2003, p. 262), "uma espécie de patologia jurídica a existência de atos judiciários acobertados pela certeza e segurança, não obstante a conter injustiças gritantes" .
No entanto, um dos caminhos que nos parece ser mais adequado para que se consiga evitar a cristalização de situações indesejáveis, ou seja, a subsistência, para ?todo o sempre?, de decisões que afrontam o sistema, está previsto pelo art. 485, inc. V, do CPC, decisões em que tenham feito incidir princípios, que deveriam ter sido afastados, ou em que se tenham feito afastado princípios, que deveriam necessariamente ter sido aplicados na busca da ?solução normativa?.

Conclusão
Enquanto instrumento de efetivação do princípio da segurança jurídica, a coisa julgada é instituto fundamental para assegurar a pacificação social com justiça, e o efetivo acesso à ordem jurídica justa. Essa, no entanto, é apenas uma face da questão. Outros princípios têm grande importância para o alcance dos escopos do processo e da ordem jurídica como um todo. Diante do conflito entre o princípio da segurança jurídica e outros princípios de grande relevância, é necessário analisar, de acordo com as particularidades do caso concreto, qual princípio tem maior importância para a concretização desses escopos.
Concluindo-se, pois, em chegar a um possível equilíbrio entre a garantia da coisa julgada, instrumento de efetivação da segurança das relações jurídicas, e as demais garantias, valores e princípios constitucionais, sempre com vistas à produção de resultados que levem à pacificação social com justiça. Tal tarefa não se mostra tão fácil.






REFERÊNCIAS
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Autor: Vitor Costa Haidar


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